Debates
09 de novembro de 2022

O Brasil que sai das urnas

O Brasil dobrou mesmo à direita? O que explica a imensa votação de Lula? Para responder estas e outras questões, conversamos com três cientistas sociais: Arilson Favareto, Esther Solano e Luiz Augusto Campos.

Passadas as eleições de 2022, o governo Lula terá uma janela de oportunidade para se aproximar do eleitorado evangélico mais moderado, que se sentiu incomodado com a excessiva politização dos cultos em favor do atual presidente, Jair Bolsonaro, derrotado em sua tentativa de reeleição. Para ter êxito em definir uma nova relação, o futuro governo deve evitar iniciativas que causem rejeição do eleitorado cristão conservador e, ao mesmo tempo, avançar em políticas públicas direcionadas às famílias, sobretudo as que mais precisam do apoio do Estado para ter uma vida digna, segura e com perspectivas de melhoria.

“O campo democrático tem como desafio entender os medos e as angústias que foram tão explorados pela extrema direita nos últimos anos, em vez de fazer pouco deles ou folclorizá-los. É fundamental compreender como esses sentimentos se conectam à experiência de vida, às ideias, crenças e afetos das famílias evangélicas, e buscar uma reconexão com elas por meio de políticas públicas que, de fato, valorizem a família”, disse a socióloga espanhola radicada no Brasil Esther Solano, que se dedica há vários anos a estudar o eleitorado brasileiro a partir de pesquisas qualitativas com grupos focais.

O novo governo também terá a oportunidade de buscar uma aproximação com a população das cidades médias e pequenas do interior do país, próximas ao mundo rural, cujas economias têm sido impulsionadas pelas receitas do agronegócio, em particular na região Centro-Oeste. “É fato que o agronegócio apoiou majoritariamente Bolsonaro, mas o perfil do voto nas áreas rurais e interioranas, inclusive daquelas impactadas pela presença da agricultura e da pecuária, é mais heterogêneo do que uma visão impressionista ou imediatista poderia nos levar a crer”, disse o sociólogo Arilson Favareto, pesquisador do CEBRAP, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Meio-ambiente, Desenvolvimento e Sustentabilidade.

“É preciso deixar de lado as generalizações e os preconceitos e tentar entender as diferentes realidades existentes hoje no interior do Brasil”, disse Favaretto.

Segundo o professor do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC (UFABC), faltam projetos de desenvolvimento socioeconômico, sustentáveis, voltados a esses novos centros, que têm tido melhor desempenho econômico do que as metrópoles e precisam de um olhar mais atento e nuançado por parte das autoridades públicas. “É preciso deixar de lado as generalizações e os preconceitos e tentar entender as diferentes realidades existentes hoje no interior do Brasil, de Norte a Sul e mesmo dentro de cada região do país”, disse Favaretto.

“Até colegas que trabalhavam no Ministério das Cidades (extinto em 2019) brincavam que ele poderia ser chamado de Ministério das Metrópoles, pois não há políticas específicas que atendam às necessidades dos municípios de pequeno e médio porte das diferentes regiões do país, seja na Amazônia ou na região Sul, para pegar dois extremos. Há regiões que se viram por conta própria, mas o Estado precisa estar presente para garantir a segurança e a legalidade. Já outras dependem fortemente de transferências públicas. É importante que o governo Lula dê atenção a esse “novo rural” que está surgindo com força e que veio para ficar”, afirmou.

“Classe social é uma clivagem fundamental na definição do voto das pessoas, mas raça é desimportante? Não. O importante é a gente superar essa divisão entre classe social e raça, que foi dominante nas décadas de 1970 e 1980, quando se discutia se o problema no Brasil era de raça ou de classe social. Na verdade, o problema é como essas duas coisas se interseccionam. Quando a gente pesquisa as classes médias negras, aí sim a gente vê um peso grande da questão racial nas escolhas eleitorais porque são grupos que, por já terem superado o estigma de classe, percebem muito nitidamente a discriminação”, explicou o sociólogo Luiz Augusto Campos, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) do IESP-UERJ.

Os três cientistas sociais foram convidados pela Fundação FHC para fazer uma leitura mais aprofundada dos resultados eleitorais de 2022, deixando de lado estereótipos e buscando compreender tendências das relações sociais pela ótica da religião, geografia econômica (rural-urbano) e raça.

Mulheres das periferias são a porta de entrada para dialogar com o mundo evangélico

Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), iniciou sua fala dizendo que “2018 foi amador comparado com o que aconteceu em 2022” no universo das igrejas pentecostais e neopentecostais. “Durante a campanha deste ano, houve uma satanização do PT e do projeto da esquerda, com a repetição nos cultos de que o fiel que votasse em Lula iria para o inferno ou seria expulso da comunidade, o que provocou muito medo, sobretudo nas periferias, onde a igreja evangélica é frequentemente o principal local de acolhimento e apoio para as famílias religiosas carentes”, explicou a socióloga.

“Mas, embora esse discurso tenha sido eficaz no sentido de garantir a maioria dos votos evangélicos para Bolsonaro, vimos pouco a pouco surgir um sentimento de rejeição ao excesso de politização dos cultos e à tentativa de manipulação do voto, sobretudo em um eleitorado evangélico mais moderado. Em minhas pesquisas qualitativas com grupos focais, ouvi pessoas dizendo frases como “os pastores dizem que os cristãos serão perseguidos no caso de um governo Lula, mas nós já estamos sofrendo perseguição dentro das igrejas”, disse a pesquisadora.

Segundo Solano, findas as eleições, as pessoas mais moderadas querem paz, estabilidade e união em prol do futuro do país, “querem sentar à mesa com a família no domingo e conviver sem brigas por causa da política”. “Se souber fazer uma leitura apurada do real desejo e das necessidades das pessoas, há possibilidades interessantes a serem exploradas”, continuou a palestrante.

Solano destacou que as mulheres evangélicas das periferias podem ser uma porta de entrada para um diálogo construtivo entre o novo governo e o mundo pentecostal e neopentecostal. “Essas mulheres mais vulneráveis foram o alvo preferencial da narrativa de que a esquerda tinha um projeto de destruição da família brasileira, mas ao mesmo tempo elas precisam de políticas públicas consistentes para seus filhos e seu núcleo familiar. A prioridade do governo Lula deve ser recolocar o tema da família no lugar onde, em um Estado laico como determina a Constituição brasileira, ele sempre deveria estar, ou seja, em políticas públicas que beneficiem a todos, mas sobretudo aqueles que mais precisam”, disse.

Solano lembrou, no entanto, que não adianta buscar diálogo com a comunidade evangélica apenas nos períodos eleitorais, ou seja, a cada dois anos: “Não pode interromper o diálogo depois que ganhou as eleições, é fundamental estabelecer uma relação política, no sentido mais amplo, e que seja permanente e construtiva, para angariar apoio a um projeto de Brasil progressista e humano durante os quatro anos de governo. Não é possível construir um reencantamento com a democracia se não estivermos efetivamente presentes no território, trabalhando em parceria com o ecossistema religioso de apoio social.”

Também é importante entender que as periferias dos anos 1970 e 1980, que os movimentos de esquerda católicos conheciam bem, mudaram muito. “Hoje a ideia da meritocracia e do empreendedorismo está bastante disseminada nas comunidades periféricas. Vamos dialogar com essa nova mentalidade, valorizada pelas igrejas neopentecostais? Que políticas públicas fazem sentido nas periferias do século 21?”, perguntou.

Para Solano, é hora de deixar de lado o discurso identitário mais radical e buscar estabelecer conexões com inteligência, moderação e estratégia. “As mulheres religiosas têm uma boa dose de conservadorismo, mas estão abertas ao diálogo quando a sua vida e a de sua família estão em jogo. É possível conversar sobre o papel da mulher na sociedade, os desafios do trabalho feminino, violência doméstica, saúde e educação dos filhos, entre outros assuntos. Por isso, elas são a melhor porta de entrada para a desradicalização do mundo pentecostal e neopentecostal”, concluiu.

Agenda ambiental precisa retomar a legalidade, mas com pragmatismo

Favaretto começou sua apresentação desmistificando a ideia de que o Brasil mais dinâmico economicamente, incluindo o interior onde o agronegócio viceja, teria votado em Bolsonaro, enquanto Lula teria vencido nas regiões menos desenvolvidas e mais pobres. Muitas vezes, o “moderno” e o “atrasado” coexistem. “O Brasil rural não é homogêneo. Mesmo se considerarmos as regiões produtoras de commodities, há diferenças para as quais precisamos chamar a atenção. Em Matopiba (território que inclui partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), o ex-presidente Lula venceu em quase todos os municípios”, disse.

Segundo o pesquisador, em algumas áreas do Centro Oeste e do Norte do país as pessoas têm a sensação de que nos últimos anos “tem circulado dinheiro como nunca” e que isso  tem a ver com a visão de que “agora pode tudo”, colocada em prática pelo governo Bolsonaro. “A desregulamentação e a diminuição da fiscalização ambiental dos últimos anos foi vista como uma oportunidade por setores socioeconômicos de algumas regiões do país. Já outros grupos, inclusive ligados ao agronegócio, entendem que podem perder com esse vale tudo e exigem a presença do Estado para proteger o meio ambiente e combater a criminalidade”, disse.

Segundo Favaretto, a agenda ambiental do novo governo deve ser pautada pela retomada da legalidade, mas “com um elevado grau de pragmatismo com o objetivo de apresentar resultados no curto prazo e, assim, diminuir o custo político das decisões que vierem a ser tomadas”.

Por fim, o palestrante criticou um modelo de desenvolvimento apoiado sobretudo na produção de commodities, assim como um possível retorno ao social desenvolvimentismo experimentado pelos governos petistas entre 2002 e 2016. “Ambos me parecem projetos com fôlego limitado. O futuro está no desenvolvimento sustentável, na inovação tecnológica e na integração entre os mundos rural e urbano”, concluiu.

Brasil vive apartheid institucional

Para Luiz Augusto Campos, autor e co-autor de diversos artigos e livros sobre raça e política, dentre eles “Raça e Eleições no Brasil” e “Ação Afirmativa: conceito, história e debates”, existe uma espécie de “apartheid institucional” na relação entre Estado e sociedade no Brasil.

“Quem utiliza os serviços públicos como o SUS e a escola pública, mesmo sendo eles ineficientes ou insuficientes, são principalmente os brasileiros com renda mais baixa, sobretudo os homens, mulheres e crianças negras e os mais pobres. Mas quem formula essas políticas são, em geral, homens brancos de classe média e alta”, disse o professor de sociologia e ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).

“Para melhorar a efetividade das políticas e dos serviços públicos, temos de dar um salto na representatividade e na qualidade da classe política brasileira. Nas eleições recentes, houve progressos incrementais, mas precisamos de políticas mais ousadas para superarmos mais rapidamente a sub-representação de gênero e raça nos meios decisórios”, disse Campos.

Assista ao vídeo completo do webinar. 

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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