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Utopias e experiência pública na democracia - Uma conversa entre FHC e Fernando Gabeira

/ Transmissão online - via Zoom




“Por mais que a gente critique a democracia, é muito melhor viver nela. Na ditadura, vivemos com medo. Neste momento, é preciso assumir uma posição clara contra os abusos autoritários, dentro e fora do Brasil”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Expor-se, neste momento crucial, significa dizer que existe um golpe em doses homeopáticas em curso no país. Ele está vindo com a capitulação progressiva das instituições. Para parar esse processo, é fundamental pregar a união de todas as forças democráticas”, afirmou o jornalista Fernando Gabeira.

O diálogo entre os dois Fernandos é o segundo do ciclo de debates online “Um Intelectual na Política”, que marca os 90 anos de FHC, completados em 18 de junho, e o lançamento de suas memórias, com o mesmo título, pela Companhia das Letras. No encontro, eles falaram sobre as respectivas formações intelectual e política, influências e experiências da juventude e atuação na idade adulta. Trocaram ideias sobre Revolução Cubana, Marx, Sartre e o existencialismo, Golpe de 64, exílio, Maio de 68, ambientalismo, Diretas Já, pautas identitárias, avanços e retrocessos do período democrático.

“Gabeira é dez anos mais jovem, isso faz diferença na juventude e agora, na velhice, mais ainda. Na geração dele, houve muita crença em Cuba e na ideia de revolução socialista. Decepcionada com os crimes de Stalin, a minha geração era mais cética. Pessoalmente, sempre tive uma postura mais institucional, de lutar pela redemocratização do país jogando com as regras, sem rupturas. Isso não quer dizer ser conservador ou reacionário. Como sociólogo, sempre estive atento às transformações. As mudanças só acontecem quando a sociedade se movimenta. Vi isso de perto na França em Maio de 1968, quando os estudantes saíram às ruas por mais liberdade e justiça”, disse FHC.

“Cresci em um bairro operário de Juiz de Fora (MG) e aos 17, 18 anos me envolvi com a luta estudantil. Nessa época, me apaixonei por Sartre, Simone de Beauvoir e o existencialismo. Após o golpe de 64, assim como outros jovens de esquerda, achei que era necessária uma política de enfrentamento ao regime militar. Entrei para a luta armada, fui preso e exilado (em 1970). Ao chegar à Europa, tive contato com outros movimentos que não existiam no Brasil: a luta das mulheres, dos homossexuais, a consciência ecológica. Achei que esses elementos deveriam compor uma pauta mais progressista também por aqui”, contou Gabeira.

Ao retornar ao país em 1979, com a Lei da Anistia, Gabeira publicou "O que é isso, companheiro?". Nesse livro, além de relatar a sua experiência como militante que adere à luta armada, em particular o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick em 1969, ele faz uma reflexão crítica e autocrítica da esquerda marxista-leninista. Na década de 80, tornou-se uma voz relevante na defesa das causas das minorias e do meio ambiente e, em 1989, candidatou-se à Presidência da República pelo Partido Verde (PV). Em 1994, foi eleito para a Câmara dos Deputados, onde exerceu diversos mandatos, ora pelo PV ora pelo PT. Após deixar a política, passou a trabalhar exclusivamente como jornalista e escritor.

        ‘Políticas identitárias sem a devida mediação’

Embora tenha sido um precursor das chamadas pautas identitárias, Gabeira criticou a forma como elas foram conduzidas politicamente nas últimas duas décadas no Brasil. “O cientista político norte-americano Mark Lilla afirma que o grande crescimento das lutas identitárias nos Estados Unidos neste século teve responsabilidade pela vitória de Trump (em 2016), pois aqueles que não pertenciam a algum grupo identitário específico foram esquecidos, assim como as pautas, digamos, nacionais, relevantes para toda a população. Eu acho que algo semelhante aconteceu por aqui e explica, em parte, a eleição de Bolsonaro”, disse.

Segundo o jornalista, “os governos de esquerda que tivemos recentemente absorveram essas pautas, mas não tinham uma visão clara sobre elas. Então, a política deles passou a ser a política defendida pelos movimentos identitários, sendo que políticas de Estado devem ter instrumentos de mediação com o restante da sociedade. Esse processo abriu uma brecha para a direita criar ficções que contribuíram para sua vitória em 2018.”

Como exemplo, ele citou a educação sexual nas escolas: “É uma proposta importantíssima, mas, como o Brasil é um país bastante conservador, para introduzi-la é essencial haver uma negociação com as famílias, que querem ter autoridade sobre a educação dos filhos. Faltou habilidade na introdução da proposta.”

“Os temas identitários são importantes, mas não podemos reduzir tudo a eles, existem questões que são nacionais, internacionais ou mesmo globais. Como presidente, busquei avançar em temas como a luta contra o racismo e pelos direitos das mulheres, mas evitando criar conflitos desnecessários. Ao tratar de identidade, é preciso ser cauteloso, entender o contexto, ou você corre o risco de terminar isolado”, concordou FHC.

Segundo o ex-presidente, “há muita coisa nova acontecendo no mundo e os políticos precisam ter contato com os jovens, ou ficam fossilizados”.

Segundo o ex-presidente, “há muita coisa nova acontecendo no mundo e os políticos precisam ter contato com os jovens, ou ficam fossilizados”. “Antes da pandemia, recebia estudantes com frequência na Fundação, tanto de escolas públicas como privadas. Vejo muita disposição neles de lutar por um Brasil melhor. O político precisa conversar com os jovens, reconhecer seus erros, rever suas ideias. É difícil se expor, mas é importante para estabelecer uma conexão com a juventude.”

          União pela democracia

Ambos afirmaram ser favoráveis a uma candidatura que represente o centro na eleição presidencial de 2022. “Sou a favor de uma terceira via, mas alguém tem que dar carne e osso a essa ideia. Quem vai ser capaz de encarná-la? Quero ver os pré-candidatos que estão por aí se jogarem. Ou eles se jogam com convicção ou não vai”, disse FHC.

“Presidente, o que o sr. diria àqueles que afirmam que seu recente encontro com o ex-presidente Lula matou a terceira via?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, moderador do encontro. “Sou um ser político, converso com quem tenho que conversar, ainda mais em um período de dificuldade. Conheço o Lula há mais de 40 anos, nem sempre concordo com ele, mas nunca me neguei a encontrá-lo. O Lula e eu temos uma coisa em comum: quando foi presidente, ele não tentou quebrar a democracia; eu também não. Temos de nos unir em defesa da democracia agora, enquanto ainda podemos dizer livremente o que pensamos”, respondeu. 

“O Fernando Henrique não precisa salvar a terceira via, porque seria uma salvação biônica. A consolidação de uma terceira via depende dos candidatos a representá-la. Cadê o homem de centro que fale com seu público com carisma e eficiência? Eles parecem tímidos, não se apresentam”, concordou Gabeira. 

Como exemplo de união entre diferentes lados, o jornalista citou o recente acordo entre partidos de direita e esquerda em Israel, que tirou o poderoso premiê Bibi Netanyahu do poder após 12 anos. Lembrou também da ampla frente de oposição formada na Hungria em 2019, que resultou na eleição de Gergely Karácsony para a Prefeitura de Budapeste, uma importante derrota política do premiê Viktor Orban, que governa o país com mãos de ferro desde 2010.

“Há momentos em que é necessário colocar as divergências de lado e trabalhar pela convergência. As forças heterogêneas comprometidas com a democracia precisam dialogar, pois ela está ameaçada. O momento é de união do campo democrático”, concluiu Gabeira. 

          Saiba mais:

Assista à palestra de Steven Levitsky, autor de “Como as democracias morrem”, na Fundação FHC.

Veja: O mundo sob pandemia - um diálogo entre Manuel Castells e FHC.

          Leia também:

Um intelectual na política: inquietação, formação e prática política.

O desafio de revitalizar a democracia enquanto é tempo - Por Larry Diamond.

Liberdade de Expressão: vale tudo ou há limites?

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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