A rivalidade entre Estados Unidos e China, com Lanxin Xiang
O renomado intelectual chinês falou sobre o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA e as novas estratégias adotadas por Washington para conter a ascensão da China — ações que têm repercussões profundas no cenário internacional.
A volta de Donald Trump à Casa Branca pode ser uma “boa notícia do ponto de vista de Beijing” a médio prazo, ainda que, em um primeiro momento, o presidente norte-americano tenha anunciado medidas que parecem configurar uma guerra comercial e tecnológica com a nova superpotência asiática. A “boa notícia”, segundo o professor chinês Lanxin Xiang, é que Trump não está interessado na independência de Taiwan, nem em direitos humanos e democracia, estes sim temas espinhosos para o regime de Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês.
“O regime chinês se preocupa menos com a guerra comercial de Trump do que com a possibilidade de uma confrontação militar com os EUA por causa de Taiwan. Com Trump, podemos ter certeza de que não haverá guerra com os Estados Unidos da América em decorrência de algum incidente envolvendo Taiwan. Isso torna mais fácil para Beijing definir sua estratégia para a ilha a médio prazo”, explicou Xiang, especialista em relações entre China, EUA e Europa, professor emérito de história e relações internacionais no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (IHEID, Genebra), membro do Centro Stimson (think tank sediado em Washington D.C.) e ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança, ligado à Escola de Direito e Ciência Política da Universidade de Xangai, criado pelo presidente Xi Jinping.
Embora tenha desenvolvido grande parte de seus estudos e sua carreira acadêmica no Ocidente, Lanxin Xiang, nascido em Nanquim (uma das antigas capitais da China), mantém sua cidadania chinesa, conhece bem o regime e é uma voz qualificada para entender o pensamento de Beijing. Desde 2014, ele já participou de outros quatro debates presenciais ou online organizados pela Fundação Fernando Henrique Cardoso (veja os resumos abaixo).
Segundo Xiang, Beijing tem consciência de que a balança comercial entre a China e os EUA estava desequilibrada e que seria necessário um ajuste. “Beijing reconhece que o desequilíbrio comercial com os EUA havia saído de controle e não tem problemas em lidar com isso. É claro que as tarifas de até 150% sobre produtos chineses inicialmente anunciadas por Trump eram inaceitáveis, mas hoje mesmo o presidente americano anunciou um acordo com a China em que as tarifas sobre produtos chineses serão de 55%, o que é aceitável para Beijing”, disse, referindo-se ao anúncio feito por Trump, em sua rede social, de que um acordo havia sido alcançado ao final de negociações em Genebra entre representantes dos dois países.
Em 2024, os EUA exportaram US$ 144,5 bilhões em bens para a China, enquanto a China exportou US$ 439,7 bilhões para os EUA. Com isso, o saldo da balança entre os dois países foi de déficit de US$ 295,2 bilhões para os norte-americanos, um aumento de mais de quatro vezes em relação ao déficit observado em 1999. Nesses vinte e cinco anos, o déficit americano na balança comercial com a China aumentou ininterruptamente até atingir o pico de US$ 418,3 bilhões em 2018, declinando nos anos subsequentes, mas se mantendo em valores elevados.
“A China sabe que apostar em tarifas extremamente altas não vai dar certo, e Trump também já percebeu isso. Tarifas de 55%, de um lado, e 10%, de outro, é algo aceitável porque Beijing reconhece que algo precisava ser feito para reequilibrar a relação comercial entre os países”, afirmou o palestrante.
Xiang argumentou que as tensões comerciais são administráveis. O importante é a afirmação de Trump de que os EUA “não serão mais a polícia do mundo”. Essa afirmação, destacou ele, fez parte do discurso de posse do presidente americano. A disposição dos Estados Unidos de deixar de ser a polícia do mundo “reduz a tensão entre as duas superpotências”. “Ao deixar claro que não deseja se envolver em um conflito militar do outro lado do planeta, Trump reconhece a influência chinesa no Leste Asiático”, afirmou.
China vai ultrapassar os EUA economicamente, mas não tem ambições militares globais
“Qual o risco de Beijing realizar algum exercício militar de maiores proporções no Estreito de Taiwan para testar Washington?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC. “Isso é uma invenção dos think tanks americanos e de integrantes do antigo governo Biden (2021-2025), que considerava a soberania de Taiwan uma questão crucial para os EUA e as relações sino-americanas. Trump não está nem aí para isso. Acredito que há boas chances de, em algum momento, Trump e Xi chegarem a um acordo em que o primeiro deixaria claro que não apoia a independência de Taiwan”, respondeu.
Após a Segunda Guerra Mundial, a China enfrentou uma guerra civil entre o governo nacionalista (Kuomintang) e os comunistas. Em 1949, os nacionalistas, liderados por Chiang Kai-shek, foram derrotados e se refugiaram em Taiwan, estabelecendo um governo autônomo, autointitulado República da China, a menos de 200km da costa chinesa.
Sob a liderança do PC chinês, a República Popular da China afirma existir uma só China e reivindica soberania sobre o território de Taiwan. Quando restabeleceram relações diplomáticas com a China em 1979, os Estados Unidos reconheceram a existência de uma só China, mas apenas admitiram, sem apoiá-la, a pretensão de soberania sobre Taiwan. Embora tenham relações oficiais com a China e não as tenham com Taiwan, os Estados Unidos não são indiferentes ao destino da “província rebelde”. Essa ambiguidade faz de Taiwan um ponto sensível da relação entre os dois países. Em anos recentes, visitas de parlamentares americanos à ilha, em particular de Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos Deputados, foram consideradas provocações inaceitáveis por Beijin. Em resposta, a China intensificou exercícios militares no estreito que a separa de Taiwan.
Segundo Xiang, Trump seria “o primeiro presidente americano a não questionar a legitimidade do regime chinês”. “Diferentemente das democracias liberais ocidentais, onde o poder é dividido em três instâncias (Executivo, Legislativo e Judiciário), na China o poder é visto como algo integrado e indivisível. O regime tem que garantir segurança, estabilidade e resultados, na forma de desenvolvimento sócio-econômico. Isso nunca foi entendido pelos líderes ocidentais.”
“Na sua visão, quanto tempo vai levar para a China superar os EUA nos campos econômico e militar?”, perguntou Fausto. “Acredito que em dez anos o PIB chinês vai superar o PIB americano, mas militarmente não vejo a China como uma ameaça aos EUA. Beijing não tem uma agenda de segurança global e não pretende ter bases militares e tropas mundo afora. Trump quer que os EUA continuem líderes mundiais sem entrar em guerras. Para Beijing, isso é suficiente”, respondeu Xiang.
Em 2024, em dólares correntes, o PIB dos EUA foi de US$ 29,2 trilhões, enquanto o chinês foi de US$ 18,3 trilhões, o segundo maior do mundo, mas a taxa de crescimento da China tem sido sistematicamente superior à americana. Se essa tendência permite vislumbrar no futuro não tão distante a ultrapassagem da economia americana pela economia chinesa, em termos de renda per capita a distância ainda é enorme. Com uma população mais de quatro vezes maior, a China tem um PIB per capita cerca de três vezes menor que o americano.
Ainda segundo Xiang, a China não tem uma estratégia de dominação global apoiada por uma força militar, mas sim de ser cada vez mais influente no mundo por meio de investimentos em outros países, seja em projetos de infraestrutura ou em empresas estratégicas, e do comércio internacional, com foco crescente em produtos industrializados de maior valor agregado.
Países latino-americanos não se curvarão aos interesses dos EUA em detrimento da China
“Os países da América Latina, inclusive o Brasil, são importantes fontes de matéria prima para a China. O que aconteceria se o governo norte-americano tentasse reduzir a crescente influência chinesa na região, dificultando o acesso a matérias primas?”, perguntou Fausto.
“Isso pode causar alguma tensão, mas a Doutrina Monroe acabou. Não funciona mais. Duvido que os países latino-americanos, que são independentes, se dobrarão à pressão dos EUA. Não é do interesse nacional deles”, disse.
Estabelecida em 1823 pelo então presidente James Monroe, a Doutrina Monroe se baseava no princípio da “América para os americanos”, com o objetivo principal de afastar a influência europeia sobre os países americanos que estavam em meio a processos de independência no século 19. Ela se tornou um pilar da política externa americana por décadas e foi usada para justificar diversas ações, incluindo intervenções militares e políticas na América Latina no século 20.
Não acredito que Trump tenha a intenção de dividir o mundo entre EUA, China e Rússia. Ele não gosta da União Europeia, mas não vai entregar a Europa para os russos. O que ele quer é que os países europeus assumam mais responsabilidade na defesa do continente europeu. Assim como quer que a China, o Japão, as duas Coreias e outros países asiáticos se entendam entre eles, sem esperar envolvimento militar dos EUA na Ásia.
Lanxin Xiang, professor emérito de História e Relações Internacionais no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento (IHEID, Genebra)
Ataque de Trump ao multilateralismo preocupa Beijing
Segundo o palestrante, uma coisa preocupa Beijing: o ataque de Trump às instâncias do multilateralismo, como a ONU, a OMC e a OMS, entre outras instituições globais: “Demorou muito para a República Popular da China entender o multilateralismo, que foi inventado pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Mas, depois que a China se tornou membro da Organização Mundial do Comércio (2001), o país teve um grande desenvolvimento econômico. Beijing se apaixonou pelo multilateralismo. E não vai seguir o exemplo de Trump, que quer destruir tudo o que, ironicamente, seu próprio país criou”, disse.
“Qual é a sua opinião sobre a teoria de que Trump estaria disposto a dividir o mundo entre os EUA, a China e a Rússia?”, perguntou Cláudia Trevisan, diretora executiva do Centro Empresarial Brasil China, que assistiu ao webinar.
“Não acredito que Trump tenha a intenção de dividir o mundo entre esses três grandes países. Ele não gosta da União Europeia, mas não vai entregar a Europa para os russos. O que ele quer é que os países europeus assumam mais responsabilidade na defesa do continente europeu. Assim como quer que a China, o Japão, as duas Coreias e outros países asiáticos se entendam entre eles, sem esperar envolvimento militar dos EUA na Ásia. Não é só uma questão de dinheiro. Ele realmente acredita nisso”, disse Xiang.
“Pouco antes do início da invasão da Ucrânia, há três anos, Xi Jinping e Vladimir Putin se reuniram e ambos os governos emitiram um comunicado conjunto em que falavam de uma ‘amizade sem limites’ entre os dois países. Qual o limite dessa amizade?”, perguntou o diretor da Fundação FHC já ao final do webinar. Devido a uma falha de internet, o palestrante não conseguiu responder, mas enviou uma breve resposta por escrito posteriormente.
“A expressão ‘parceria ilimitada’ foi deliberadamente distorcida, com o objetivo de parecer uma licença gratuita para a Rússia fazer qualquer coisa. A frase original em chinês é ‘sem limites superiores’ (上不封顶), ou seja não há áreas ‘proibidas’ de cooperação entre os dois países, mas o fortalecimento da cooperação estratégica bilateral entre Beijing e Moscou não é direcionado a terceiros países nem afetado pela mudança do ambiente internacional e por mudanças circunstanciais em outros países”, escreveu.
Veja como foram os quatro debates anteriores com Lanxin Xiang:
Dezembro de 2014: China: desafios internos e projeção global
Outubro de 2016: A China sob Xi Jinping: o que quer e o que pode o líder chinês?
Fevereiro de 2022: Estados Unidos, China (e Rússia): o mundo vive uma nova Guerra Fria?
Junho de 2023: A década da definição: os EUA e a China vão conviver pacificamente?
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.