Estados Unidos, China (e Rússia): o mundo vive uma nova Guerra Fria?
Neste webinar, conversamos com David Shambaugh e Lanxin Xiang, dois estudiosos respeitados nos EUA e na China, sobre esta que é a mais importante relação bilateral de nossa época.
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, não invadiria a Ucrânia se não tivesse certeza de contar com o apoio velado da China. A relação entre Moscou e Pequim no longo prazo parece mais sólida do que os Estados Unidos avaliam ser, pois há uma convergência entre os interesses nacionais e geopolíticos russos e chineses. Estas foram duas das principais mensagens do webinar “Parceiros, adversários ou inimigos: o que esperar das relações EUA-China no futuro próximo”, que reuniu dois especialistas nas relações sino-americanas, um norte-americano e um chinês.
“Putin foi a Pequim para a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno (em 4 de fevereiro de 2022) e se encontrou com o presidente Xi Jinping, quando assinaram um documento de cerca de 20 páginas. Desde então, o líder russo aumentou a pressão sobre a Ucrânia. Se a relação entre Moscou e Pequim não estivesse tão próxima, Putin não estaria sendo tão agressivo. A China é cúmplice da invasão russa da Ucrânia”, afirmou David Shambaugh, professor titular de Ciências Políticas e Relações Internacionais e diretor do China Policy Program na Elliott School of International Affairs da The George Washington University.
“Prefiro não fazer acusações, mas creio haver uma convergência bastante forte entre os interesses nacionais da Rússia e da China, não tanto do ponto de vista econômico, mas sobretudo em questões geopolíticas. Creio que não há nem haverá uma aliança entre China e Rússia, mas enquanto a atual situação de guerra fria existir, inclusive agora com a entrada da Rússia, a relação entre Pequim e Moscou estará em terreno bem mais sólido”, disse Lanxin Xiang, professor de História e Política Internacional no Institute of International and Development Studies (IHEID, Genebra).
Lanxin salientou que a China é simpática a Putin quando o presidente russo condena a expansão da Otan (aliança militar ocidental liderada pelos EUA) em direção à antiga fronteira da União Soviética. “As preocupações da Rússia relativas à sua segurança não foram levadas em consideração pela Otan (desde a dissolução da URSS em 1991). E, sem dúvida, existe por trás a questão de Taiwan, que é central para Pequim. A soberania da China sobre Taiwan nunca estará em discussão”, afirmou o diretor do think tank Institute of Security Policy (ISP), sediado em Xangai.
Para Lanxin, “os EUA, a única superpotência que restou no planeta (após o fim da União Soviética), conseguiu afastar tanto a Rússia como a China, ao mesmo tempo”, o que acabou resultando em uma aproximação entre Pequim e Moscou.
“Concordo que as relações entre Rússia e China nunca estiveram tão próximas. Os Estados Unidos estão prontos para isso? Creio que não”, disse David Shambaugh.
“Concordo que as relações entre Rússia e China nunca estiveram tão próximas (desde o fim da URSS). Os Estados Unidos estão prontos para isso? Creio que não. Washington vê a atual aproximação entre Moscou e Pequim como um movimento tático, não como uma possível parceria estratégica mais profunda e de longo prazo”, disse Shambaugh.
Em 23 de fevereiro, a China condenou as sanções à Rússia anunciadas pelo governo norte-americano no dia anterior e criticou os EUA e a Otan: “Já pensaram nas consequências de encurralar uma grande potência?”, perguntou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês. Em 24 de fevereiro, a Rússia iniciou a guerra contra a Ucrânia.
O evento, realizado no aniversário de 50 anos da visita do presidente Richard Nixon a Pequim, foi uma parceria entre a Fundação FHC e o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), com mediação da jornalista Cláudia Trevisan e do cientista político Sergio Fausto, respectivamente diretores do CEBC e da Fundação FHC. Assista aqui ao vídeo na íntegra do webinar.
Guerra Fria já é realidade e pode levar a conflito militar entre EUA e China
“Há pouco mais de dois anos, Henry Kissinger (ex-secretário de Estado norte-americano) alertou que os EUA e a China estariam à beira de uma nova guerra fria. Creio que já passamos desse ponto e não há dúvida de que estamos em plena guerra fria, talvez não tenhamos chegado ao auge dela, mas já estamos nela”, disse Lanxin.
O historiador fez um paralelo entre o momento atual e a situação anterior à eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). “Nos meses e anos anteriores a 1914, as principais potências mundiais estavam a ponto de entrar em conflito e bastou um incidente (o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, em Sarajevo, na Bósnia) para detonar a Primeira Guerra Mundial. Caso haja algum incidente envolvendo Taiwan, por exemplo, a situação pode sair do controle e levar a um conflito bem maior entre os EUA e a China”, alertou o palestrante chinês.
“Não creio que já estejamos vivendo uma Guerra Fria 2.0, mas talvez uma Guerra Fria 1.5”, disse David Shambaugh. “Para evitar um desastre de proporção mundial, proponho que Washington e Pequim olhem para as lições aprendidas durante a Guerra Fria no século 20, e recuperem alguns mecanismos de contenção de riscos e estabilização utilizados naquela época”, continuou.
Shambaugh referiu-se a diversas medidas de redução de crise e construção de confiança que foram colocadas em prática entre o final dos anos 1940 e o final dos anos 1980 para impedir que a rivalidade entre Washington e Moscou resultasse em um conflito nuclear. “Há todo um kit de ferramentas que os EUA e a Otan, de um lado, e a URSS e o Pacto de Varsóvia, do outro, utilizaram durante a Guerra Fria e que poderiam ser úteis agora para conter as atuais fricções entre os EUA e a China”, afirmou.
“Desde o Governo de Barack Obama (2009-2017), Washington tem proposto a Pequim algumas medidas de construção de confiança, mas o lado chinês tem se recusado até mesmo a discutir alternativas. Se não tivermos mecanismos de contenção de riscos em funcionamento, o atual antagonismo pode se aprofundar e, se isso acontecer, uma guerra de verdade entre os dois países não é algo inimaginável”, disse Shambaugh.
Competição entre EUA e China é o novo normal e deve ser gerida com responsabilidade
Para o palestrante norte-americano, a disputa entre as duas principais potências mundiais do século 21 é profunda, sistêmica e veio para ficar. “É o novo normal, todos temos que nos acostumar com essa nova situação. Mas essa competição precisa ser administrada de forma responsável, como propôs o governo Joe Biden no documento sobre a estratégia dos EUA na região do Índico-Pacífico, lançado em meados de fevereiro”, explicou.
“Não há dúvida de que as relações sino-americanas são o principal elemento geoestratégico dos assuntos internacionais atualmente, com impactos e efeitos colaterais em muitos outros países, inclusive o Brasil. Pequim e Washington precisam agir como adultos, pois o divórcio, neste caso, não é uma solução”, disse.
Shambaugh – que é conselheiro no Comitê Nacional de Relações EUA-China e membro vitalício do Council on Foreign Relations e do U.S. Asia-Pacific Council – sugeriu que sejam erguidos guardrails para impedir que a rivalidade EUA-China resvale para um conflito armado.
“É muito importante que os Estados Unidos e a China tenham a capacidade de colocar limites a conflitos em potencial e consigam avançar em áreas onde é possível haver uma cooperação, como no tema da não-proliferação nuclear e no combate à mudança climática, por exemplo”, disse.
“O único conceito novo surgido após a chegada do presidente Joe Biden à Casa Branca é justamente este de que a China e os EUA precisam erguer uma espécie de guardrail para evitar que a situação saia de controle, mas em Pequim as perguntas que todos fazem é ‘de que material ele será feito?’, ‘qual será sua altura?’, ou ‘ele será no padrão americano ou chinês?’. As autoridades civis e militares chinesas desconfiam que os EUA pretendem construir um guardrail baseado no modelo americano, e isso Pequim não vai aceitar”, explicou Lanxin.
Para o professor chinês, tanto a população como as autoridades chinesas têm a crescente percepção de que o Ocidente está em declínio e o Oriente em ascensão. Assim, o diálogo entre as partes deve ocorrer, a partir de agora, sobre novas bases.
“Não é mais possível continuar com essa tutela sobre a China que o Ocidente buscou colocar em prática nos últimos quatro séculos, pelo menos. O extraordinário desenvolvimento econômico chinês dos últimos 40 anos não aconteceu somente porque a China abraçou valores ocidentais, como a economia de mercado. Ele é resultado, em parte, das próprias tradições culturais, políticas e econômicas chinesas, que são milenares. O Ocidente precisa aceitar que a China recuperou sua força e de agora em diante será um ator central no futuro do planeta ”, concluiu.
Brasil deve evitar se tornar dependente do comércio com a China
Já na parte final da conversa, os dois palestrantes falaram das perspectivas das relações entre o Brasil e a China, que desde 2008 ultrapassou os EUA, tornando-se o maior parceiro comercial brasileiro. O Brasil também é o principal destino dos investimentos chineses na América do Sul.
“Não sou economista nem especialista em comércio exterior, mas minha sugestão é a de que o Brasil evite se tornar muito dependente da China, diversificando suas exportações para outros países da Ásia e do Pacífico, para a Europa e também para seus vizinhos. Creio que a América Latina se verá na mesma situação que os países do Sudeste Asiático, que nos últimos anos vêm tentando reduzir sua dependência da China. Quanto mais parceiros comerciais o Brasil tiver, melhor”, disse Shambaugh.
“Antes, quando se falava de Brasil, os chineses só conheciam os livros de Jorge Amado. Isso mudou significativamente nas últimas duas décadas. É falsa a impressão de que o Brasil apenas exporta matérias primas para a China e importa produtos manufaturados. As exportações brasileiras incluem, por exemplo, aviões de médio porte (fabricados pela Embraer). A China é um grande mercado automobilístico, e o Brasil pode se beneficiar disso. Creio que as trocas comerciais entre os dois países, assim como os investimentos chineses no Brasil, vão muito bem e podem evoluir ainda mais”, disse Lanxin.
Ainda segundo o palestrante chinês, as relações comerciais entre a China e a América Latina representam algo muito novo e promissor: “A estratégia chinesa de investir pesadamente na América do Sul tem se mostrado mais bem sucedida do que em outras partes do mundo, incluindo a África e a Ásia Central. Um dos motivos disso é que a relação política entre Pequim e os governos sul-americanos têm se caracterizado pela cooperação econômica e pela estabilidade política. É fundamental manter isso”, concluiu.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.