China: desafios internos e projeção global
Nosso convidado foi Lanxin Xiang, professor da Graduate Institute of Geneva e da School of Advanced International Studies, da John Hopkins University, para discutir os rumos da economia e da política chinesas e os desafios enfrentados pelo país.
Natural da China, filho de pais que lutaram contra a ocupação japonesa e ocuparam posições importantes no governo chinês, Xiang esteve no primeiro grupo de estudantes enviados ao exterior por Deng Xiao Ping, após o início das reformas econômicas que tornaram aquele país a segunda maior potência do mundo. Com uma carreira acadêmica destacada nos Estados Unidos e na Europa, com vários livros publicados sobre a história e as relações internacionais chinesas nos séculos 19 e 20, Xiang mantém vínculos estreitos com a China, onde dá aulas na Fudan University em Xangai e na Universidade da China para Negócios Estrangeiros em Pequim. O atual primeiro ministro, Li Keqiang, foi seu colega de classe no ensino médio.
Em sua palestra, Xiang ressaltou desde logo o caráter único da atual liderança chinesa. Nascida após a revolução que levou Mao Tsetung ao poder em 1949, os membros da geração que hoje comanda o país vivenciaram dois momentos críticos do regime instalado pelo líder revolucionário. Primeiro, ainda crianças, o Grande Salto Adiante (1958-1961), período marcado pela desastrosa tentativa de impor a industrialização acelerada, encerrado depois de causar fome em massa e a morte de mais de 30 milhões de pessoas, Segundo, já adolescentes, a Revolução Cultural (1966-1976), que buscou esculpir à força o “homem novo” pelo extermínio dos hábitos e mentalidades tradicionais e burgueses, o que levou ao fechamento das universidades, à prisão e ao fuzilamento de intelectuais e profissionais qualificados. Nesse período, muitos jovens foram apartados de suas famílias e levados a trabalhar em fazendas do estado para fins de “reeducação cultural”. “É uma geração que, definitivamente, passou por muitas coisas, e é capaz de compreender os problemas existentes em diferentes níveis da sociedade”, frisou Xiang, com a experiência de ter passado, ele próprio, quatro anos em um “centro de reeducação”.
O fato de que sejam líderes determinados, forjados em condições de adversidade, não significa necessariamente que serão capazes de levar a China a superar os grandes desafios com as quais ela se enfrenta, reconheceu Xiang. No entanto, ele se mostrou relativamente otimista quanto à capacidade de seu país completar com sucesso a transição de uma economia orientada para a exportação em direção a uma economia em que o consumo interno se torne o principal motor do crescimento. O risco estaria em que, em meio a esse processo, já em curso, uma eventual desaceleração maior da economia venha a exacerbar tensões sociais que possam colocar em xeque o controle político do Partido Comunista. Daí a preocupação das autoridades chinesas em não permitir um crescimento inferior a 7,5% ao ano.
O desafio é antes político que estritamente econômico, afirmou Xiang. Para a estabilidade do país, o risco de um desempenho econômico mais fraco é agravado pela crise de legitimidade que afeta o governo, a mais grave desde que o Partido Comunista estabeleceu seu monopólio inconteste sobre o poder. O historiador e especialista em relações internacionais colocou ênfase na expressão “crise de legitimidade”, explicando-a nos seguintes termos: nos últimos anos, à medida que o comunismo perdeu força ideológica, o governo chinês pregou o retorno aos valores do confucionismo, para o qual a legitimidade das autoridades depende de seu comportamento ético, ou seja, de que exerçam o poder não em proveito próprio, mas em prol da coletividade; ocorre que, embora a economia tenha crescido a taxas muito elevadas e a pobreza se reduzido, a corrupção alcançou níveis sem precedentes, beneficiando principalmente os membros do Partido Comunista, de alto a baixo, e concorrendo, segundo Xiang de maneira decisiva, para o aumento das desigualdades sociais. Daí a crise de legitimidade.
Para responder a essa crise, o governo tem conduzido uma vasta campanha anticorrupção. Muitos críticos enxergam nessa iniciativa um expediente político voltado exclusivamente a concentrar maiores poderes nas mãos de Xi Jinping, marginalizando reais e potenciais adversários do atual presidente. Xiang disse discordar dessa visão. Para ele, se trata de uma mudança institucional de alcance duradouro. Prova disso estaria no fato de que vem sendo acompanhada de reformas do sistema de justiça. A importância da criação de tribunais com maior independência em relação ao Partido não tem sido devidamente avaliada pelos analistas ocidentais, concluiu em tom crítico.
Xiang sustentou a tese de que a atual liderança compreende o que está em jogo, se não forem estabelecidos freios institucionais à corrupção: em última análise, a própria sobrevivência do Partido Comunista. Para evitar esse cenário, a construção progressiva de um Poder Judiciário com alguma independência é vista como essencial. Nessa perspectiva, Xiang prevê também uma abertura gradual rumo a um maior grau de pluralismo político no regime chinês, dentro dos limites fixados pela posição do Partido Comunista, hoje monopólica, amanhã, quem sabe, “apenas” dominante. Uma transição à democracia, em sua opinião, não faz parte das possibilidades históricas da China no futuro previsível.
Na área internacional, Xiang afirmou que a estratégia da nova liderança se mantém dentro da doutrina da “ascensão pacífica”. Seria equivocado o diagnóstico, hoje prevalecente em parte do establishment americano, de que a China teria se afastado daquela doutrina e abraçado um nacionalismo agressivo. É verdade que Xiang revelou preocupação com as repercussões de um eventual incidente militar entre seu país e alguns de seus vizinhos, em especial o Japão, em torno da soberania de ilhas no Mar Leste da China. Na sua visão, porém, a liderança chinesa não tem como objetivo provocar conflitos militares com seus vizinhos. Ao contrário, estaria empenhada em reforçar os laços econômicos com eles, como teria ficado claro na reunião da Asian-Pacific Cooperation (APEC) realizada em Pequim no mês de novembro último. Haveria, isto sim, uma percepção cada vez mais generalizada na elite política chinesa de que o chamado “pivô para a Ásia”, anunciado pelos Estados Unidos em 2012, representaria uma estratégia norte-americana de contenção econômica e militar da ascensão chinesa. Segundo Xiang, residiria aí o motivo de uma assertividade maior da política externa chinesa em sua esfera de influência imediata.
Para contrabalançar as perspectivas menos favoráveis nas relações com os Estados Unidos, a China teria reorientado as prioridades de sua política externa em direção à Europa e à Rússia. A primeira é vista como um “outro Ocidente”, menos propensa ao conflito geopolítico do que os Estados Unidos, ao passo que a Rússia é uma importante compradora de produtos industrializados chineses e será uma significativa provedora de energia, quando o gasoduto que ligará a Sibéria aos grandes centros consumidores chineses estiver concluído nos próximos anos, conforme acordo assinado entre os dois países em maio de 2014. Da mesma estratégia de contrabalançar a influência dos Estados Unidos, acrescentou Xiang, faria parte o fortalecimento dos BRICs, para o que a criação de um banco pertencente aos países-membro do bloco, em julho deste ano, representou um passo importante. Nenhuma dessas iniciativas, porém, exime a liderança chinesa de buscar novas bases de cooperação com Washington, concluiu.