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Renda Básica Universal: chegou a hora desta ideia?

/ Transmissão online - via Zoom


Três fatores apontam para a necessidade de criação de mecanismos eficazes de proteção social dos mais vulneráveis. São eles: o avanço da automação e da Inteligência Artificial com a eliminação de empregos ocupados por trabalhadores de baixa e média qualificação, o que produzirá maior desemprego estrutural e intensificará a já crescente desigualdade social; a provável ocorrência de severas crises ambientais como resultado do processo de mudança climática; e a possibilidade de ocorrência de outras pandemias, um risco inerente à globalização, que se acentua com o desenrolar da mudança climática.
 

“Daí a necessidade de termos à mão mecanismos de auxílio aos mais necessitados que sejam permanentes, possam ser ‘abertos ou fechados’, de acordo com a necessidade, ou um mix de ambos.”

Marcelo Medeiros, sociólogo e economista, é professor visitante da Universidade de Princeton (EUA).


“Em plena pandemia, forma-se uma coalizão entre diversas linhas do pensamento social e econômico sobre a urgência de ajudar aqueles que ganham a vida a cada dia. A renda básica surge como eixo desta economia com olhar humanista.”

Monica de Bolle, economista, é professora da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins (EUA).

 Os dois acadêmicos brasileiros residentes nos EUA participaram do Webinar “Renda Básica Universal: chegou a hora desta ideia?”, a convite da Fundação FHC. A Espanha, um dos países mais atingidos pelo novo coronavírus e que adotou medidas de isolamento bastante restritas para combater a pandemia, estuda a adoção o quanto antes de um programa de renda básica cujo orçamento anual pode chegar a centenas de bilhões de euros (leia reportagem do El País). Veja também texto publicado pela versão brasileira do jornal espanhol.

 

      Leia também:

      Que respostas o Brasil deve dar aos efeitos socioeconômicos do Coronavírus?      

 

      ‘No Brasil, ⅔ são vulneráveis à pobreza’

Segundo Marcelo Medeiros, um dos principais estudiosos brasileiros do tema da desigualdade social, cerca de dois terços da população do país são vulneráveis e podem cair na pobreza em momentos de crise como o atual. 

“Programas como Bolsa Família, embora insuficientes, dão algum tipo de proteção aos 20% mais pobres, enquanto os 20% mais ricos têm empregos melhores, protegidos pelas leis trabalhistas, ou possuem seu próprio negócio, além de reservas. Mas existe um buraco entre esses dois extremos: 30% a 40% da população brasileira que tem pouca ou nenhuma proteção legal ou financeira e está muito vulnerável a crises”, disse.

Como exemplo, ele citou empregadas domésticas, em especial as diaristas, e trabalhadores da construção civil que, em situação normal, conseguem ter uma qualidade de vida razoável, mas podem enfrentar grandes dificuldades de uma hora para outra. “Pelo menos um terço dos brasileiros precisa ser sistematicamente protegido, mas outro um terço também precisa de apoio, ainda que não permanente”, afirmou.

Segundo dados do IBGE divulgados em 6 de maio, metade dos brasileiros sobrevive com apenas R$ 438 mensais, ou seja, cerca de 105 milhões de pessoas têm menos de R$ 15 por dia para satisfazer todas as suas necessidades básicas (veja reportagem do Estadão).

         ‘Brasil agiu rápido, mas auxílio terá de ser prorrogado’

Para Monica de Bolle, o Brasil agiu com rapidez ao aprovar um auxílio emergencial de R$ 600 por três meses à população mais necessitada, mas as crises sanitária e econômica não vão desaparecer rapidamente e, para evitar que a população mais vulnerável sofra ainda mais com dúvidas e incertezas, é preciso não apenas garantir que todos os que têm direito ao benefício o recebam como também prorrogar o quanto antes a ajuda para no mínimo 6 meses.

Pesquisadores da Universidade de São Paulo calculam que 32 milhões de trabalhadores ameaçados de perder emprego e renda com a paralisia da atividade econômica não terão como receber os RS$ 600 emergenciais, seja porque têm vínculo formal com o trabalho ou por causa das restrições da lei que criou o auxílio, limitado a dois beneficiários por domicílio (veja reportagem da Folha). 

“A médio prazo, a questão que se coloca é se os experimentos de auxílio emergencial aos mais pobres se tornarão constantes. Uma possibilidade é estabelecer uma renda básica permanente com valor mais baixo, que possa ser ampliada em momentos emergenciais”, propôs a pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics. 

Segundo Bolle, uma diferença conceitual entre programas de renda básica (há décadas eles vêm sendo estudados e propostos, embora ainda não tenham sido aplicados em larga escala por um período mais longo) e de transferência de renda (como o Bolsa Família) é que, em princípio, os primeiros não são condicionais, ou seja, não têm contrapartida, nem são focalizados exclusivamente nos mais pobres. O Programa Bolsa Família (originário do Bolsa Escola) exige que os filhos das famílias beneficiadas frequentem a escola e realizem acompanhamento regular nas Unidades de Saúde. 

A economista minimizou a ideia, frequentemente aventada pelos críticos desses programas, de que transferir renda para os mais vulneráveis de forma mais permanente resulte em desestímulo ao trabalho: “O ser humano tem necessidade de ser produtivo e desempenhar um papel na sociedade. Não é por receber uma renda básica que esse incentivo natural desaparecerá.”

        Saiba mais:

        Pandemias no curso da história:  lições do passado para o mundo pós-Covid 19 - Por Rubens Ricupero

 

        Quem vai pagar a conta?

“A resposta é moral e política: o Estado brasileiro tem margem para gastar menos recursos com os mais ricos e mais com os mais pobres”, afirmou Medeiros. Ambos concordaram que o ideal é que programas de renda básica sejam “fiscalmente neutros”, ou seja, não produzam déficits permanentes do Tesouro. Ou seja, sua adoção deve ser compensada por corte em outros gastos e/ou por aumento da carga tributária. 

Como exemplo de gastos que poderiam ser cortados, o pesquisador do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) citou diversos subsídios ou linhas de crédito especiais concedidos ao longo do tempo a setores específicos da economia e da sociedade, que terminam por beneficiar principalmente donos, acionistas e altos funcionários das empresas. “Com uma mão, o Estado brasileiro ajuda os mais pobres, com a outra afaga os mais ricos”, disse. 

Mas o fundamental, segundo o sociólogo, é “inverter a pirâmide tributária brasileira, com o objetivo de desonerar o consumo, a produção e o trabalho, e onerar a renda e o patrimônio”.

O palestrante também criticou a pejotização no mundo do trabalho. “No Brasil, é uma péssima ideia ser trabalhador registrado pela CLT (devido aos altos descontos no holerite) e uma grande vantagem se tornar Pessoa Jurídica (cuja carga de impostos e contribuições é percentualmente bem inferior). Não é à toa que cada vez mais advogados, médicos, consultores e outros tipos de profissionais migram para o modelo PJ, com prejuízos aos cofres públicos, entre eles a corrosão do orçamento da Previdência”, explicou.

Ainda segundo o economista, o programa Bolsa Família, que consome pouco mais de 1% do PIB brasileiro, “está defasado e bem abaixo das possibilidades do país, pois deveríamos gastar no mínimo 3% do PIB em um programa abrangente para garantir uma renda mínima a todos os que realmente precisam”, disse.

       Parte do programa seria ‘autofinanciável’

Embora alguns defensores da renda básica sugiram que ela deva ser universal, ou seja incluir todos os cidadãos do país, mesmo os mais ricos, Bolle propõe que, no Brasil, ela seja destinada aos quase 80 milhões de brasileiros inscritos no Cadastro Único para Programas Sociais. 

A economista fez o que ela chamou de “conta de padeiro”: para 80 milhões receberem uma renda mensal de até R$ 500, seriam necessários cerca de R$ 500 bilhões anuais ou algo em torno de 8% do PIB (em 2019, o PIB foi de R$ 7,3 trilhões, mas neste ano deve haver contração). “Seria bem custoso, mas no fim das contas trata-se de uma questão de natureza distributiva a ser arbitrada pelo sistema político, ou seja, pelo Executivo e pelo Legislativo. Envolve unificar os gastos com outros programas de transferência de renda, cortar despesas destinadas a outras áreas, eliminar subsídios e desperdícios e rever a estrutura tributária e ”, disse. 

Segundo a economista, parte desses recursos seria autofinanciável. “As pessoas de renda mais baixa em geral consomem tudo o que recebem. O aumento do consumo por parte dessa parcela da população beneficiaria tanto a produção como os serviços, com impactos sobre o crescimento econômico e a arrecadação. Esse fator tem de ser levado em conta”, afirmou.

        ‘Compatível com o capitalismo’

Além da renda básica, ambos os palestrantes defenderam a importância de sistemas públicos de saúde e educação de qualidade. Para eles, a economia de mercado e o próprio capitalismo são absolutamente compatíveis com esse tripé social. 

“O capitalismo é forte o suficiente. Chegou a hora desse sistema secular de produção de riqueza se encaixar a novos termos e condições e ser mais justo e solidário”, disse Bolle.

“Não tem dúvida de que a captura de recursos por setores mais privilegiados da sociedade — seja pela distribuição de renda desequilibrada, por injustiças no sistema tributário ou como resultado de proteções e vantagens indevidas — prejudica o funcionamento da economia e acaba por minar o capitalismo”, afirmou Medeiros. 

      ‘Oportunidade para repensar reformas’

Para Bolle e Medeiros, passado o ponto crítico da pandemia será necessário retomar a agenda de reformas estruturais, mas com um enfoque mais equilibrado. “Os altos e baixos vividos pelo Brasil na última década nos ensinam que a responsabilidade fiscal deve vir junto da responsabilidade social e vice-versa. Uma coisa não para em pé sem a outra”, disse o professor de Princeton. 

“Com tudo que está acontecendo no Brasil e no mundo, temos a oportunidade de pensar as reformas de que o Brasil sem dúvida necessita de forma mais aprofundada, unindo os eixos social e fiscal”, concluiu Bolle.

      Veja também:

      Ciência, saúde e políticas públicas: quais as iniciativas necessárias no futuro?

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC. 

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