Debates
23 de abril de 2020

Ciência, saúde e políticas públicas no Brasil: quais as iniciativas necessárias no futuro?

Quais lições podemos extrair da pandemia para reforçar a capacidade sistêmica do Brasil de enfrentar situações de emergência sanitária, de maior ou menor proporção, no futuro?

O novo coronavírus está gerando uma reação rápida e consistente por parte da comunidade científica brasileira, que tem capacidade e experiência para orientar o país durante a evolução da pandemia e contribuir nacionalmente e globalmente para sua superação. Mas, para dificultar esse já complexo e acidentado percurso, falta financiamento, tanto público como privado, e sobra burocracia.

“Temos condições de produzir pesquisa e ciência em tempo real e, ao mesmo tempo, prestar assistência no dia a dia da pandemia. Mas é preciso incentivo dos órgãos de fomento e colaboração dos órgãos regulatórios”, disse a médica pneumologista Margareth Dalcolmo, que criou e dirigiu o ambulatório de pesquisa do Centro de Referência Professor Hélio Fraga da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e tem sido uma das vozes mais presentes nos meios de comunicação neste momento.

“O Brasil não pode esperar outros países desenvolverem tratamentos, vacinas e tudo o que é necessário para enfrentar essa crise. Já está muito difícil importar equipamentos, kits de testes e insumos de todo tipo. Quando a vacina chegará ao Brasil se for descoberta nos EUA, na China ou na Europa? Se não participarmos ativamente da pesquisa, vamos ficar sempre no fim da fila”, alertou o médico Jorge Kalil, diretor de Imunologia Clínica e Alergia do Hospital das Clínicas e do Laboratório de Imunologia do Incor.

“É a ciência que vai nos salvar, ciência é produzida por gente e gente precisa de verba e apoio para trabalhar. A sociedade parece estar se dando conta, mas os governantes precisam entender de uma vez por todas que o investimento em ciência é permanente e de longo prazo. Isso sim é questão de segurança nacional e de soberania”, afirmou o médico fisiologista Luiz Eugênio Mello, que acaba de assumir a diretoria científica da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Fuga de cérebros e falta de visão estratégica

Os três lamentaram a recente fuga de cérebros do país, um dos resultados da progressiva redução do investimento em Ciência e Tecnologia e em Pesquisa e Desenvolvimento nos últimos anos. “Temos ótimos cientistas que foram embora porque não tinham condições de trabalho por aqui. Vão fazer extrema falta nesse momento crítico. Precisamos ter inteligência própria e isso acontece nas universidades e centros de pesquisa”, comentou Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da USP.

“O aporte de recursos para C&T e P&D já se aproximou de 2% do Produto Interno Bruto brasileiro, mas, por razões econômicas e fiscais, vem caindo e está perto de 1% do PIB. É muito pouco. Nos EUA, na Europa, na China e no Japão, chega ou supera 5% do PIB”, criticou Mello, mestre e Doutor em Biologia Molecular (Unifesp) e professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp.

Para Dalcolmo, “a pandemia de Covid-19 revelou mais do que nunca um Brasil de fraquezas, doenças crônicas e endemias seculares”. “Duas coisas nos põem a nu. O excesso de burocracia e a ausência de visão estratégica. Ainda bem que temos capacidade de adaptação e produção na adversidade”, disse a docente da Pós-graduação da PUC-RJ.

“Com nosso parque têxtil, onde já se viu importar máscaras da China? Temos indústria de química fina, mas não produzimos insumos farmacêuticos ativos (IFAs). Se a Índia parar de nos fornecer, como vamos tratar a tuberculose, que mata milhares por ano? Nunca houve visão sanitária de nossa indústria diante das endemias crônicas”, continuou a integrante do grupo de especialistas do Ministério da Saúde para a pandemia do novo coronavírus e consultora do Banco Mundial para doenças respiratórias.

Mello citou o exemplo de empresas brasileiras como Magnamed, que produz ventiladores pulmonares e hoje tem fábrica nos EUA, e Timpel, que desenvolveu tomógrafos por impedância elétrica já em uso na Itália, na Espanha e em Israel. Ambas receberam apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP. “Temos condições de desenvolver aqui mesmo equipamentos mais complexos, mas, para aumentar a escala de produção e sermos mais independentes, é necessário sinergia entre os setores público e privado”, disse o membro da Academia Brasileira de Ciências e diretor do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.

Kalil criticou o abandono dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), há anos subfinanciados pelo governo federal: “Aqui em São Paulo recorremos à FAPESP, que nos mantêm vivos, mas a descontinuidade do financiamento no plano nacional é um problema grave. Sem verba, os grupos de pesquisa se desfazem, redes são desmontadas e cada pesquisador fica isolado em seu canto”, explicou.

Por lei, a FAPESP é financiada com 1% da receita com impostos do Estado de São Paulo e seu novo diretor alertou para a provável redução desse aporte como resultado da crise econômica decorrente da pandemia. Segundo Mello, doações empresariais e privadas são muito bem-vindas e elas estão chegando, mas são muito focadas em assistencialismo e em necessidades mais imediatas.

‘Sem jovens cientistas, não entraremos no Século 21’

“É necessário mudar a mentalidade e apoiar programas de médio e longo prazo, não apenas nas ciências exatas como também nas humanas, pois a economia, a psicologia, a sociologia e a antropologia também serão importantes para superarmos o trauma no day after da epidemia”, disse.

Mello também alertou para as conhecidas deficiências do sistema educacional brasileiro. Isso gera um aumento da desigualdade social, principalmente em ciências exatas como matemática: “Nossos estudantes estão nos últimos lugares no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos, da OCDE). Sem jovens capazes de formular uma questão científica jamais entraremos no Século 21.”

“Essa pandemia mostrou de forma cruel a falha estrutural de nossa educação”, concordou Dalcolmo. “As cenas horrorosas que temos visto nos hospitais e nos cemitérios poderiam ter sido evitadas se as pessoas, principalmente nossos líderes, não estivessem embrenhados com tantas bobagens sem respaldo da ciência.”

Na busca da vacina, ‘tem competição e tem cooperação’

Para Jorge Kalil, que coordena os pesquisadores da FMUSP e do Incor no desenvolvimento de uma vacina contra o Sars-cov-2, causador da atual pandemia, passos importantes estão sendo dados rumo a uma vacina tanto em seu núcleo como na Fiocruz.

“Na USP e no Incor, estamos trabalhando em uma proposta inovadora de vacina, baseada em uma partícula semelhante ao vírus, mas oca. É preciso encontrar o caminho correto e acertar na mosca”, explicou o pesquisador, que elogiou a rapidez com que cientistas brasileiros sequenciaram o vírus depois de o primeiro paciente brasileiro ter sido diagnosticado, no final de fevereiro.

“Em apenas 48 horas, o vírus que chegou ao Brasil foi isolado, colocado em cultura e sequenciado. É fundamental fazermos nossa parte no estudo do genoma do novo coronavírus, pois esta é uma moeda de troca com cientistas de outras partes do mundo”, alertou.

Segundo Kalil, existe uma competição salutar, pois todo cientista quer ser o primeiro a descobrir a vacina, mas a cooperação científica nacional e internacional é parte intrínseca do processo. “Se não participarmos ativamente desse esforço global, seremos os últimos a nos beneficiar das futuras descobertas”, disse.

De acordo com o cientista, o fato de o organismo humano, na maioria dos casos, conseguir se curar da infecção pelo novo coronavírus é algo promissor: “No caso do HIV, por exemplo, o corpo humano não consegue se livrar do vírus, por isso não há perspectiva de uma vacina. No caso do novo coronavírus, o sistema imunológico humano dá conta do recado, o que é uma boa notícia.”

Como exemplo do tempo necessário para criar uma vacina, ele citou a dengue, que já é conhecida há vários séculos, inclusive no Brasil, foi eliminada do país por um longo período, mas ressurgiu na década de 1980, espalhando-se por todo o território desde então. “Estamos trabalhando firme em uma vacina da dengue, uma das que mais promete no mundo. Se conseguirmos, será um grande feito. As autoridades têm de apoiar esses esforços. É necessário maior pressão popular”, disse.

“Não há dúvida de que nossa experiência com arboviroses como a dengue, a chikungunya e a zika nos habilitou a ter uma comunidade de cientistas e uma rede de laboratórios capazes de colaborar na descoberta de uma vacina para o novo coronavírus”, disse Luiz Eugênio Mello.

Margareth Dalcolmo relatou que a Fiocruz realiza no momento um ensaio clínico para o tratamento da tuberculose que, “se der certo, colocará o Brasil como protagonista de uma mudança de paradigma, pois a tuberculose é uma grande ameaça ao planeta e mata 2 milhões de pessoas por ano. Somos uma fortaleza, mas precisamos de mais suporte.” 

Burocracia é entrave ao avanço da ciência

“A comunidade científica brasileira é respeitada no mundo, mas somos considerados um no deal em termos regulatórios. Frequentemente perdemos a chance de entrar em testes com outros países devido ao excesso de burocracia e à demora dos órgãos responsáveis em responder às demandas dos cientistas”, disse a pesquisadora.

“Estamos muito ocupados com questões burocráticas para ter sucesso em resolver problemas científicos. Os laboratórios levam meses para comprar reagentes urgentes para avançarmos nas pesquisas, nos EUA isso é feito no mesmo dia, se necessário”, concordou Kalil.

Já na parte final da conversa, Dalcolmo perguntou a Kalil quais projetos de vacina já estariam entrando na fase 1 (testes iniciais em humanos). “Em meados de março, tiveram início os primeiros testes em seres humanos na região de Seattle (costa oeste dos EUA). A China deve iniciar testes de fase 1 nesta semana e Israel está realizando testes em animais”, respondeu o pesquisador da USP/Incor. Em 26 de abril, grupo de cientistas da Universidade de Oxford (Reino Unido) anunciou testes em mais de 6.000 pessoas até o final de maio.

“Vai demorar seis meses, um ano, dois anos ou mais? Podemos apressar o processo e pular etapas regulatórias, mas a ciência obedece a protocolos que devem ser seguidos. A solução não virá da noite para o dia”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.