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O STF e a defesa da democracia - Por Alexandre de Moraes

/ auditório da Fundação FHC


Por que o Brasil sofreu nos últimos anos essa sucessão de ataques à democracia, culminando com os atos golpistas de 8 de janeiro? Esta foi uma das questões que Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), lançou e buscou responder em palestra na Fundação FHC em 31 de março, que marcou nossa  reabertura ao público, na fase pós-pandêmica. 

“Houve no mundo todo uma captura das redes sociais por movimentos de extrema direita com uma clara finalidade, a quebra das regras democráticas. De forma absurdamente competente, a extrema direita soube utilizar as redes para atacar, de forma sistemática, os três pilares do Estado Democrático de Direito: a imprensa livre, a legitimidade do voto e o Poder Judiciário”, disse o ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“Não é possível subestimarmos a força das redes sociais novamente. É preciso criar mecanismos de contenção e responsabilizar as empresas responsáveis para que isso não aconteça novamente. Na minha visão, toda a regulamentação tem que se basear em uma regra simples. O que vale no mundo real, vale no mundo virtual. Liberdade com responsabilidade”, falou.

Leia abaixo o trecho inicial de sua fala.

Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral:

“O que nós vivenciamos na prática nos últimos anos parece que referendou a escolha que o legislador constituinte fez em 1988. Ao escrever a nova Carta, ele foi sábio e humilde, ao mesmo tempo. Olhou para trás e se fez uma pergunta: por que o Brasil, que no período rebublicano adotou o modelo de tripartição de poderes com presidencialismo e o federalismo, ou seja, adotou modelos de contenção de poder idênticos aos da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, não deu certo do ponto de vista de estabilidade democrática?

Ao se fazer esta pergunta, o legislador constituinte de 1988 verificou, e por isso digo que foi humilde, que o Poder Legislativo não deu conta, por motivos históricos, culturais e políticos, de conter os avanços e os arroubos ditatoriais do Poder Executivo. A partir dessa constatação, adotou o que, lá atrás, o federalista John Jay, primeiro presidente da Suprema Corte norte-americana, disse em relação à Constituição. Segundo Ray, trata-se da primeira Carta que erigiu o ramo judiciário à mesma dignidade dos demais poderes. Ou seja, o Judiciário igual ao Executivo e ao Legislativo para manter um equilíbrio entre os poderes. Em 1988, o legislador constituinte fortaleceu muito o Poder Judiciário e, em especial, o Supremo Tribunal Federal. 

Houve uma opção clara pelo controle concentrado de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, uma opção clara pelo STF como moderador entres os poderes e, mais do que isso, como o Poder Judiciário não age de ofício, o legislador constituinte fortaleceu todos aqueles que podem levar questões ao Judiciário. Não existe Ministério Público no mundo com o grau de autonomia, independência e competências constitucionais como o brasileiro. A Defensoria Pública foi criada e fortalecida. A advocacia pública e privada foram fortalecidas.

A partir do fortalecimento de todos aqueles que vão acessar o Judiciário, logicamente o Judiciário ficou mais forte, porque tudo, absolutamente tudo, chega ao Poder Judiciário e ao STF. Não há no mundo uma legitimidade para acessar uma Corte Suprema tão grande como há no Brasil. Tudo chega lá, como as pendências do Congresso. Quando acaba a votação de alguma nova lei, sempre quem perde leva o assunto ao STF, daí a judicialização da política. Mas aquela foi uma opção do legislador constituinte. E digo com segurança que foi uma opção correta. Porque desde 1988 o Brasil vive o mais longo período de estabilidade democrática do período republicano. A Constituição de 1988, que vai fazer 35 anos, não é a mais longeva da República ainda, mas é a que vem garantindo o maior período de estabilidade democrática, mais do que a de 1891, nossa primeira Constituição republicana.

Com erros e acertos, esse novo equilíbrio estabelecido pela Constituição Federal de 1988 vem dando certo. Passamos por dois impeachments, de um presidente de direita e de uma presidente de esquerda, todos os partidos jogaram a regra do jogo, os vices assumiram, tivemos as eleições subsequentes e quem foi eleito assumiu. Ou seja, essa estrutura montada pelo legislador de 1988 garantiu a estabilidade democrática, o que não significa tranquilidade sempre. O que a Constituição garante são mecanismos para que consigamos tratar das questões e garantir a permanência da democracia.

Por que então o Brasil sofreu nos últimos anos essa sucessão de ataques à democracia, culminando com os atos golpistas de 8 de janeiro? Não foi um fenômeno somente brasileiro. Houve no mundo todo uma captura pela extrema direita das redes sociais com uma clara finalidade: a quebra das regras democráticas. De forma absurdamente competente, é preciso reconhecer que a extrema direita primeiro diagnosticou o surgimento impactante das redes sociais e, depois, as capturou. Durante a Primavera Árabe (2010-2012), as redes sociais surgiram como instrumento de democracia, contra Estados autoritários que não tinham liberdade de imprensa e de expressão, que não garantiam o direito de reunião, e as pessoas foram se comunicando e organizando, pelas redes sociais, as grandes manifestações democráticas daquele momento histórico.

Então, a extrema direita, principalmente nos Estados Unidos, que estava escondidinha, mas tem muito dinheiro, passou a estudar esta questão e a se apoderar desses mecanismos com a finalidade da quebra da democracia, atacando os três pilares do Estado de Direito. Isso surgiu nos Estados Unidos e foi testado em outros países, como a Polônia, a Hungria, a Itália e o Brasil. Como corroer por dentro a democracia? A diferença deste fenômeno é que ele não buscou atacar de fora a democracia, como os tradicionais golpes, mas desgastar a democracia, atacando a liberdade de imprensa, as eleições livres e o Judiciário independente e autônomo.

Desde então, a extrema direita domina as redes. É impressionante a incapacidade do restante da sociedade de pelo menos equilibrar o jogo. O primeiro passo foi desacreditar a imprensa, equiparando a ‘nossa notícia’, a notícia fraudulenta, mentirosa, as chamadas fake news, à informação veiculada pelos meios de comunicação tradicionais. Com a vantagem de que a ‘nossa informação’ é irresponsável. A imprensa tem responsabilidade pelo que divulga, as redes não têm nenhuma responsabilidade. E grande parte da população, infelizmente, dá o mesmo valor a uma informação produzida por um jornalista sério e um influenciador digital. Isso não foi sem propósito, sem finalidade, teve método. Aí nosso grande erro. Subestimamos esse processo, não previmos a necessidade de uma autorregulação eficaz, ou de uma regulação. Isso cresceu e a verdade é que hoje a desinformação tem o mesmo valor e, para algumas bolhas, valor até maior do que a informação.

Basta ver que todos os candidatos a ditador atacam a imprensa, chamando-a de vendida, comunista, a ‘imprensa lixo’. O objetivo é desacreditar um mecanismo de controle de poder fundamental, a imprensa livre. E, assim, criar a sua máquina de notícias falsas. Com essa rede de desinformação disponível, surgem as condições para o segundo ataque, no caso, às eleições livres, independentes e justas. Há uma sutileza aí: ‘Não vamos atacar a democracia, não vamos dizer que a democracia é ruim. Vamos atacar o principal instrumento da democracia, que é o voto.’ Não importa qual seja a forma de votar. Nos Estados Unidos, se atacou o voto por carta. No Brasil, a urna eletrônica. Se o voto impresso voltasse ao Brasil, ele seria atacado também. O que importa é atacar o mecanismo, seja ele qual for, porque, em caso de derrota, o discurso está pronto. Isso não aconteceu apenas no Brasil, mas em muitas partes do mundo.

Por fim, é preciso atacar quem garante as eleições e a democracia, o ramo judiciário. Porque no Brasil isso foi mais intenso? Porque o Judiciário também cuida das eleições. Nos Estados Unidos, não há uma Justiça Eleitoral, como aqui. E como o Tribunal Superior Eleitoral tem, em sua composição, três ministros do Supremo, o STF se tornou o inimigo perfeito. Somou tudo. O ataque ao Judiciário tem três possibilidades: a cooptação, o domínio, aumentando por exemplo o número de membros da Suprema Corte e nomeando magistrados alinhados ao regime de plantão, ou aniquilar. ‘Se o Judiciário quiser defender a Constituição e eu continuar independente e autônomo, vamos aniquilar’. E, no Brasil, foi essa terceira opção que foi tentada.

Não houve possibilidade de cooptação, não houve possibilidade de domínio, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados barraram qualquer ensaio de fazer isso, então vamos mobilizar nossas milícias digitais para massacrar o Supremo Tribunal Federal. Porque a queda do STF seria a queda do Poder Judiciário em todo o país e o fim do Estado Democrático de Direito. Lembremo-nos de quando foram lançados rojões contra a sede do Supremo, em Brasília. Parece ridículo, e foi, mas hoje é rojão, amanhã é tiro, depois de amanhã é bazuca. 

É um negócio assustador o que essa lavagem cerebral das milícias digitais está fazendo com inúmeras pessoas em todo o país. Então, não é possível subestimarmos a força das redes sociais novamente. É preciso criar mecanismos para evitar que isso continue e ocorra novamente. É preciso responsabilizar as empresas donas das redes sociais. Qual é o grau de responsabilidade delas? Para mim, toda a regulamentação deve se basear em uma regra simples e fácil de entender. O que vale no mundo real, vale no mundo virtual. Liberdade com responsabilidade. 

Não podemos cair na armadilha da extrema direita de achar que estamos regulando a liberdade de expressão. Esta é a grande armadilha, o grande discurso e a narrativa que a extrema direita no mundo todo conseguiu construir. Tudo é 'minha liberdade de expressão'. Isso foi pegando, as pessoas se sentiram à vontade para voltar a ser racistas, homofóbicas e nazistas. Pode no mundo real? Se pode no mundo real, pode no virtual. Não pode no mundo real? É crime? Então é crime nas redes sociais também.

Com todos os erros e acertos normais em uma instituição formada por seres humanos, o Supremo Tribunal Federal tem sido e continuará sendo uma barreira à tentativa de quebra do Estado Democrático de Direito, mas temos que aprender com o que vivemos recentemente e aprimorar os mecanismos para que a democracia brasileira continue viva para sempre.”

Assista à palestra na íntegra.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

 

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