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Democracia: estamos preparados para defendê-la sem colocar direitos em risco?

/ Transmissão online - via Zoom


A democracia brasileira sobreviveu aos ataques realizados nos últimos anos por grupos bolsonaristas radicais e pelo próprio ex-presidente da República – que culminaram com os atos golpistas de 8 de janeiro –, mas essa reação ocorreu no calor dos acontecimentos, sendo necessária uma revisão cuidadosa das leis e dos instrumentos já existentes para fortalecer os mecanismos de proteção ao Estado Democrático de Direito.

“Não devemos tratar a experiência dos últimos anos como uma exceção, pois as crises democráticas tendem a ser recorrentes, no Brasil e no mundo. Por isso, é fundamental nos prepararmos de forma permanente para enfrentar ataques ao Estado Democrático de Direito, sem recorrer a métodos excepcionais ou heterodoxos, que podem violar outros direitos fundamentais”, disse Helena Regina Lobo da Costa, livre docente em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

“Esta é a principal lição que podemos tirar dos fatos recentes, sobretudo dos atos golpistas de 8 de janeiro”, continuou a advogada, que foi pesquisadora na Goethe-Universität Frankfurt am Main e na Max Planck Society (Alemanha). 

“A democracia brasileira acaba de viver uma rara experiência de ‘quase morte’, o que nos distingue da experiência histórica alemã, país que viu sua democracia morrer, com o advento do nazismo na década de 1930, e renascer com força, após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, o Estado alemão lançou as bases de uma ‘democracia combativa’, que perdura até hoje e é frequentemente lembrada como possível exemplo para outras nações democráticas”, disse Alaor Leite, que lecionou na Humboldt-Universität zu Berlin e acaba de se tornar  professor doutor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

“Costumo dizer que temos hoje no Brasil uma ‘democracia combatente’. A própria Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, que entrou em vigor em 2021, expressa essa necessidade urgente de proteger uma democracia sob ataque. Para prevenir ameaças no futuro, é importante que essa legislação seja aprimorada e consolidada”, continuou o mestre e doutor em Direito Penal pela Ludwig Maximilians Universität (Munique).

“A ideia de que é preciso defender a democracia é tão antiga quanto a própria democracia. Os gregos, por exemplo, temiam os ‘demagogos’, como nós atualmente tememos os ‘populistas’, entendidos como forças políticas capazes de seduzir os eleitores para que tomem decisões irracionais contra seus próprios interesses e liberdades, criando uma armadilha na qual a própria democracia sucumba”, disse Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP).

“Pouco tempo depois de aprovada, a nova Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito – Lei 14.197 (2021), que revogou a Lei de Segurança Nacional (1983), herança do regime militar – já teve de ser imediatamente aplicada para lidar com os atos golpistas de 8 de janeiro. É como se um árbitro estreante fosse convocado a atuar em uma final de Copa do Mundo”, continuou o conselheiro da Fundação FHC, convidado a moderar este webinar.

O direito penal e a tutela da democracia: um paradoxo permanente

“O direito penal tem o condão de salvar a democracia?”, perguntou Oscar Vilhena a ambos os palestrantes. 

Para Helena Lobo da Silva, a história mostra que o direito penal é frequentemente utilizado, de forma abusiva, por líderes autoritários para calar dissidentes, perseguir inimigos e, desta maneira, se perpetuar no poder. Portanto, a ideia de construir um arcabouço jurídico de defesa da democracia excessivamente baseado no direito penal é motivo de alerta.

“O uso do direito penal para tutelar a democracia é um paradoxo permanente. Devemos ser bastante rigorosos com esse uso. Por outro lado, é fundamental preparar a legislação penal para que possa responder, de forma contida e definida, a essas crises”, disse a doutora em Direito Penal pela USP.

Como exemplo de avanços necessários, ela destacou a necessidade de configurar os crimes contra o Estado Democrático de Direito, estabelecer as tipicidades, definir onde se inicia a conduta, assim como montar um arcabouço teórico consistente para que, quando os tribunais venham a aplicar esses tipos penais, estejam bem respaldados. A Lei 14.197 foi criada com esse objetivo, mas precisa ser aplicada, aperfeiçoada e consolidada.

“O direito penal tem o condão de salvar a democracia?”, perguntou Oscar Vilhena a ambos os palestrantes. 

Também questões processuais precisam ser esclarecidas, como a clarificação das competências, uso de medidas cautelares e, eventualmente, a definição de um foro específico para lidar com casos relacionados a atentados aos Estado Democrátifco de Direito. “Deve ser o Supremo Tribunal Federal? Tenho dúvidas, porque o tribunal não tem estrutura para isso, sobretudo quando os atos antidemocráticos envolvem grande número de pessoas, como foi o caso em 8 de janeiro. Mas esses casos também não podem ficar pulverizados em vários órgãos e instâncias”, afirmou.

Segundo a especialista, diante da perspectiva de recorrentes tentativas de assalto à democracia, é necessário revisitar instrumentos constitucionais como a decretação de estado de defesa, estado de sítio ou intervenção federal para que, se for necessário recorrer a eles em uma situação de emergência, isso ocorra de maneira contida e restrita, evitando a violação de direitos fundamentais e o apelo a medidas heterodoxas.

“É preciso praticar a autocontenção na contenção da crise, aplicando os instrumentos constitucionais e penais de maneira segura, tendo sempre como objetivo final a preservação do Estado de Direito”, disse. A professora também destacou a relevância de medidas educativas que visam instruir a população sobre a importância de salvaguardar seus direitos fundamentais.

Alemanha tem órgão de Estado cuja missão é proteger a democracia

Após a rendição incondicional aos países Aliados ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Alemanha iniciou um processo de reconstrução de uma democracia parlamentarista alicerçada na ideia de “democracia militante” ou “democracia combatente”, em que o Estado alemão não mais admitiria o surgimento e o crescimento de grupos, movimentos e partidos com ideologias ou práticas que ameaçassem o Estado Democrático de Direito, como aconteceu no período que antecedeu o Terceiro Reich (1933-1945), período em que Adolf Hitler instaurou um regime totalitário no país.

No início da década de 1950, foi criado o Gabinete Federal para a Proteção da Constituição (Bundesamt für Verfassungsschutz), com autonomia funcional definida na Constituição, garantia de recursos orçamentários e corpo de funcionários próprio. O órgão, de caráter civil, é sediado em Colônia. 

“Trata-se de um órgão de Estado com ampla autonomia para recolher informações, analisar e investigar atividades de grupos extremistas de esquerda ou de direita que possam representar uma ameaça à democracia, repassando-as para as autoridades policiais e judiciais competentes. Também tem a atribuição de monitorar e agir contra os discursos de ódio e a xenofobia. Anualmente, produz um relatório entregue ao Bundestag.  O Parlamento alemão monitora o trabalho, mas não pode interferir no dia a dia das atividades do órgão encarregado da defesa da Constituição”, explicou Alaor Leite, que estudou e lecionou na Alemanha por vários anos.

Esse escritório conduziu as investigações que levaram, no final de 2022, à prisão de 25 extremistas de direita que tramavam um golpe de Estado no país europeu. “O sistema alemão de proteção da democracia é altamente complexo. O próprio Código Penal alemão tem um capítulo específico que trata do direito penal político que, aliás, abre o código. Entretanto, esse sistema não se resume às normas penais e prevê outras medidas de caráter preventivo e educativo”, relatou.

Segundo Leite, o Brasil não pode prescindir de um sistema de defesa da democracia meticulosamente construído, baseado em uma tríade. “É necessário criar uma divisão de inteligência e investigação especializado em crimes contra o Estado de Direito, reforçar os instrumentos penais para punir aqueles que atentam contra a democracia e promover uma regulamentação corajosa das plataformas digitais e de mídias sociais, para combater as fake news e os discursos de ódio”, defendeu.

O penalista brasileiro destacou, na Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, a criação do delito de incitação da animosidade entre as Forças Armadas e a sociedade, prática corrente nos últimos anos. “Durante o governo Bolsonaro, houve uma clara tentativa de cooptação de instituições de Estado como as Forças Armadas, as Polícias Militares, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Daí a importância de construir as bases de uma democracia combativa que preveja e puna ataques intestinos ao Estado Democrático de Direito”, disse.

Leite elogiou a nova lei, mas destacou a necessidade de o Congresso analisar os vetos de Jair Bolsonaro quando de sua promulgação, em 2021. “O ex-presidente vetou o artigo que previa o delito de comunicação enganosa em massa, fundamental para o combate de fake news”, concluiu.

Uma agenda de defesa da democracia brasileira

Já ao final do encontro, Oscar Vilhena Vieira propôs uma “agenda imediata” para impedir que ataques voltem a ameaçar a democracia brasileira:

        - Votação da derrubada dos vetos de Bolsonaro à Lei 14.197 no Congresso Nacional;

        - Regulação das mídias sociais e definição dos limites da liberdade de expressão quando há ameaça real à democracia;

        - Definição de regras mais claras sobre o papel dos militares em um Brasil democrático.

“Por sua reputação como um espaço de defesa da democracia e do Estado de Direito, a Fundação FHC é o local adequado para discutir novos parâmetros para a atuação das Forças Armadas na administração pública e na política”, disse o constitucionalista.

 

Assista ao vídeo do webinar na íntegra.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

 

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