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Acordo UE-Mercosul: as pedras no meio do caminho

/ Transmissão online - via Zoom


O Acordo União Europeia-Mercosul, se finalmente concluído após 25 anos de negociações, não deve produzir um big bang nas relações comerciais entre os países-membros dos dois blocos econômicos, mas representaria um avanço importante ao estreitar os laços entre duas regiões que, embora em diferentes estágios de desenvolvimento sócio-econômico, têm em comum o compromisso com a democracia, a livre iniciativa, os direitos humanos e sociais e, crescentemente, com a pauta ambiental.

Para o Mercosul, seria uma oportunidade de romper a paralisia que acomete o bloco há vários anos. Poderia também impulsionar as relações comerciais dentro da América Latina e abrir portas para outros acordos de livre comércio importantes com países desenvolvidos, como Canadá, Singapura e Coreia do Sul.

Para o Brasil, a conclusão do acordo daria início a um novo processo de abertura econômica e comercial gradual, partindo de uma estrutura de tarifas de importação ainda elevadas, que devem ser reduzidas se o país quiser se integrar mais e melhor à economia internacional. Esse processo facilitaria também a maior integração econômica dentro da América do Sul e da América Latina. O fechamento do acordo seria um sinal forte de pragmatismo da política externa do governo Lula, levando em conta que, historicamente, o PT tem sido resistente a acordos comerciais com o mundo desenvolvido.

Estas foram as principais conclusões deste webinar realizado pela Fundação FHC, o CINDES (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento) e o Real Instituto Elcano, o think tank mais importante da Espanha, em um momento crucial das negociações entre a União Europeia e o Mercosul.

A Associação Estratégica entre o Mercosul e a União Europeia implica a integração de um mercado de mais de 700 milhões de habitantes, quase um quarto do PIB global, e com mais de US$ 100 bilhões de comércio bilateral de bens e serviços. A UE é o segundo principal parceiro comercial do Brasil, destino de 15% das exportações brasileiras, sendo que o Brasil é o segundo maior exportador de produtos agrícolas para a UE. A UE é o maior investidor estrangeiro no Brasil, com um estoque de investimentos diretos de € 319 bilhões (2019), em diferentes setores da economia. 

Janela de oportunidade para fechar o Acordo é no segundo semestre de 2023

“A janela de oportunidade para fechar as últimas negociações é neste segundo semestre, quando a União Europeia estará sob a presidência da Espanha, um dos países europeus mais favoráveis ao acordo com o Mercosul. Além disso, em 2024 haverá eleições para o Parlamento Europeu e, dependendo dos resultados, a configuração política e ideológica do próximo Parlamento poderá dificultar as negociações”, alertou o historiador argentino Carlos Malamud, pesquisador do Real Instituto Elcano. Em 4 de julho último, o Brasil assumiu a presidência temporária do Mercosul e, na ocasião, o presidente Lula disse que a conclusão do acordo com a UE é uma prioridade, mas precisa passar por uma revisão.

“Em termos geopolíticos, a conclusão do Acordo UE-Mercosul neste momento teria uma enorme relevância porque reforçaria a autonomia estratégica da Europa e da América do Sul frente à crescente disputa entre os Estados Unidos e a China pela hegemonia global. Os dois continentes sinalizariam que pretendem jogar juntos na defesa da democracia e dos direitos humanos, na transferência de tecnologias, na digitalização, no combate à mudança climática e na construção de uma ordem internacional multipolar”, disse o economista espanhol José Juan Ruiz, presidente do Real Instituto Elcano, sediado em Madri.

“O fechamento desse acordo representa uma das últimas oportunidades de preservação do Mercosul, ao garantir sua unidade, atualmente ameaçada. Mais do que benefícios comerciais ou econômicos imediatos, o acordo com a UE contribuiria para uma atualização e um aprofundamento do Mercosul, melhorando seu quadro institucional e regulatório e abrindo novas perspectivas de acordos de livre comércio com outros países da América ou mesmo de outros continentes”, disse a economista Sandra Polónia Rios, diretora do CINDES.

“As críticas do Brasil à side letter sobre meio ambiente divulgada pela UE não implicam uma rejeição total do acordo. É algo que pode ser negociado e ajustado. O que me preocupa são os questionamentos ao coração do acordo por parte de setores do atual governo, com o argumento de que ele prejudicaria a indústria brasileira e perpetuaria a especialização do país na produção de commodities”, disse Pedro da Motta Veiga, diretor do CINDES

“Historicamente, o PT tem resistido a acordos comerciais com países desenvolvidos. O governo Lula está colocando dificuldades neste momento como uma estratégia de negociação ou pretende postergar indefinidamente o fechamento definitivo do acordo?”, perguntou Motta Veiga.

Carta do Mercosul pode reabrir tema das compras governamentais no Acordo

Com a posse do presidente Lula, em janeiro deste ano, abriu-se uma nova chance para avançar, mas recentemente a União Europeia divulgou uma carta adicional (side letter) em que condiciona o fechamento do acordo a uma série de compromissos ambientais por parte dos países do Mercosul e prevê, inclusive, a adoção de sanções em caso de descumprimento.

Durante visita a Paris, em junho deste ano, o presidente Lula qualificou as exigências feitas pela União Europeia (UE) como “uma ameaça” e prometeu uma resposta por parte do Mercosul. “Não é possível que tenhamos uma parceria estratégica e haja uma carta adicional fazendo ameaças a um parceiro estratégico. Como é que a gente vai resolver isso?”, questionou Lula, ao lado do presidente francês, Emmanuel Macron.

Na resposta à side letter com cláusulas ambientais da União Europeia, que o Brasil discute com os demais membros do bloco sul-americano, o governo Lula pretende reabrir as discussões sobre o capítulo relativo a compras governamentais, que permitiria que empresas europeias participassem de processos de licitações públicas nos países do Mercosul e vice-versa, em igualdade de condições com as empresas locais, salvo em determinados casos e de forma paulatina.

“É inadmissível abrir mão do poder de compra do Estado – um dos poucos instrumentos de política industrial que nos resta. Não temos interesse em acordos que nos condenem ao eterno papel de exportadores de matérias primas, minérios e petróleo”, disse Lula em Puerto Iguazú, na cúpula de chefes de Estado do Mercosul, em julho, indicando que a revisão desse tema é um objetivo do governo brasileiro.

“O Mercosul busca proteger a sua indústria; a Europa o seu setor agropecuário. Para vencer os obstáculos e concluir o acordo, é importante convencer as populações de que, no final, ele será benéfico para ambos os lados”, disse José Juan Ruiz.

“Esta questão das compras governamentais já está sendo discutida há muitos anos, no contexto das negociações entre a UE e o Mercosul, e não foge a modelos de acordos de livre comércio já existentes. O texto prevê períodos de transição e diversas exceções para a liberalização da concorrência em licitações públicas. Também os cronogramas de eliminação de tarifas em outros setores são lentos. Não haverá nenhuma abertura relevante nos próximos cinco anos. Há um exagero por parte daqueles que dizem temer pela indústria nacional”, explicou Polónia Rios.

A diretora do CINDES criticou o setor agrícola europeu pelas resistências ao fechamento do acordo: “O mercado europeu ainda é muito fechado para produtos agrícolas e pecuários vindos do Mercosul e a abertura prevista no acordo é lenta e incompleta. Portanto, também há um exagero nas críticas por lá.”

“Entre os sócios do Mercosul, é no Brasil onde se encontram atualmente as maiores resistências ao fechamento definitivo do acordo. O governo da Argentina (de centro-esquerda), neste momento, está a reboque do Brasil. O Paraguai não deve criar problemas, e o Uruguai quer fechar acordos comerciais e, se isso não ocorrer, pode iniciar um processo de rompimento com o bloco. Resta saber se o governo Lula encontrará uma solução para as atuais divergências ou vai colocar todo o processo em banho-maria”, disse Motta Veiga.

“Do lado europeu, a França encabeça as objeções ao fechamento do acordo com o Mercosul, devido aos lobbies do setor agrícola, que é muito forte no país, e ambientalista. Ambos têm se unido nas críticas a práticas contrárias ao meio ambiente do agronegócio brasileiro, como a expansão da fronteira agrícola e pecuária na Amazônia. É importante que o governo brasileiro faça um esforço didático para mostrar que está comprometido com a defesa da Amazônia e que a realidade de seu agronegócio, em sua maioria, não corresponde a essas críticas infundadas”, disse Malamud.

Incentivos e mecanismos para compensar eventuais perdedores

“As dificuldades do momento podem parecer desanimadoras, mas não devemos esquecer a complexidade do objetivo que pretendemos alcançar. Brasil e Argentina, principais sócios do Mercosul, estão entre as economias mais fechadas do mundo, enquanto a União Europeia é a zona econômica mais aberta do planeta (mesmo com os subsídios e proteções ao setor agrícola). O Mercosul busca proteger a sua indústria; a Europa o seu setor agropecuário. Para vencer os obstáculos e concluir o acordo, é importante convencer as populações de que, no final, ele será benéfico para ambos os lados”, disse José Juan Ruiz.

O diretor do Real Instituto Elcano salientou que tanto a Europa como a América Latina têm apresentado taxas de crescimento econômico modestas e precisam encontrar um novo dinamismo: “Nossas economias estão há quase 20 anos sem crescer, com renda per capita estagnada e baixa produtividade. Em um mundo cada vez mais globalizado e competitivo, é difícil para um país se inserir na economia mundial individualmente. Daí a importância de um amplo acordo que nos possibilita juntar forças e contribuir para um mundo mais justo, democrático e sustentável.”

Ele alertou, no entanto, que o Mercosul precisa criar incentivos e mecanismos de compensação para eventuais “perdedores” de uma maior integração com a Europa. “Aberturas econômicas e comerciais não vêm de graça. É um processo que gera ganhadores e perdedores. Na UE, há mecanismos de compensação entre os países e setores econômicos. No Mercosul, não há. É preciso encontrar formas de compensar os perdedores para não polarizar ainda mais as sociedades”, disse.

O Real Instituto Elcano divulgou recentemente um estudo chamado “Por que a América Latina importa?”, com o objetivo de melhorar a visão sobre a região na Europa, ainda prejudicada por preconceitos ou notícias enviesadas. “Muitos europeus ainda acham que a América Latina é um desastre econômico e político, o que não representa a realidade. Existem problemas, mas há importantes avanços políticos, sociais e econômicos”, concluiu Juan, um dos autores do estudo, junto com Carlos Malamud e Ernesto Talvi.

Segundo Malamud, a assinatura do Acordo UE-Mercosul beneficiaria não somente os países-membros dos dois blocos, como o conjunto da América Latina, com um aumento de cerca de 50% no comércio regional, de acordo com previsão do Real Instituto Elcano. 

“Seria um passo importante em um processo de integração regional tantas vezes adiado. É importante aproveitar o momento favorável. Reabrir as negociações, com a imposição de novas exigências de lado a lado, pode eternizar as discussões e inviabilizar o acordo”, alertou.

“Este é o momento do governo Lula dar um sinal de pragmatismo e flexibilidade na condução da política externa brasileira. O Acordo UE-Mercosul aumentará o grau de inserção do Brasil no mundo e a sua influência na América do Sul e Latina. Mas, se o governo colocar obstáculos à sua conclusão, mais uma vez ficará claro que o PT é refratário a acordos com os países desenvolvidos. Neste caso, a candidatura do Brasil à OCDE também estará em dúvida”, disse Motta Veiga.

Outra consequência de um adiamento do acordo com a União Europeia seria o aprofundamento da crise interna do Mercosul. “O Uruguai tem questionado publicamente a inércia do bloco. Se o acordo com a UE não sair, o Uruguai pode dar passos no sentido de fechar acordos por conta própria, inclusive com a China, como o governo do país vizinho já indicou”, disse Motta Veiga.

Assista ao vídeo do webinar na íntegra.

 

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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