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A política externa do governo Lula 3: os desafios do Brasil em um mundo em crise

/ Transmissão online - via Zoom


Sob a liderança do presidente Lula, o Brasil tem condições de ser parte das soluções de alguns dos principais problemas globais, como a crise ambiental e climática, a crise da democracia e o rápido aumento das desigualdades entre países e dentro dos países. Para ampliar sua influência num mundo marcado por múltiplas crises, o Brasil precisa enfrentá-las aqui dentro e dar sua contribuição para superá-las lá fora, dois movimentos que podem se reforçar mutuamente. 

O Brasil é importante o suficiente para ambicionar uma posição de destaque no mundo,  mas a política externa do novo governo deve priorizar arenas de negociação nas quais o país tem maior peso específico, a exemplo do meio ambiente e da mudança climática. Esse peso específico será tanto maior quanto melhor a política externa articular a atuação das distintas áreas do governo e manter interlocução sistemática com organizações representativas do setor privado e da sociedade civil.

O novo governo deve ser sensível às mudanças pelas quais o mundo passou desde que Lula terminou o seu segundo mandato (2010), assim como refletir a ampla aliança de forças democráticas que o levou ao seu terceiro mandato presidencial, que agora se inicia. Estas foram algumas das principais conclusões deste webinar, que reuniu um ex-ministro das Relações Exteriores, uma ex-ministra do Meio Ambiente e uma pesquisadora de relações internacionais, direitos humanos e política externa brasileira.

“O Brasil tem um capital diplomático e político que Lula adensou nas suas presidências anteriores. Daí a sua indiscutível credibilidade internacional. No entanto, o mundo em 2023 é distinto daquele com o qual o presidente lidou em seus dois primeiros mandatos. O Brasil também. Daí a importância de ajustes e reavaliações em relação ao repertório do que foi feito no passado, tanto por razões internas como externas”, disse o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, atualmente presidente do Conselho da Fundação FHC.

“Não faz sentido o Brasil agir como se estivesse fora do mundo, como fez o governo anterior, pois somos parte dos problemas e, historicamente, demonstramos capacidade de ser parte das soluções. Isso não significa agir em todas as crises existentes no mundo. É fundamental calibrar vontades e capacidades, atuando nas mesas internacionais e arenas nas quais podemos ter mais influência”, disse Laura Trajber Waisbich, formada em relações internacionais pela PUC-SP, com doutorado em geografia pela University of Cambridge e pós-doutorado pela University of Oxford. Atualmente é pesquisadora sênior do Instituto Igarapé e também de Oxford.

“Diante da ausência de líderes globais, a volta de Lula à Presidência do Brasil despertou grande otimismo. O Brasil tem singularidades e alternativas para exercer um papel de liderança no cenário internacional, mas qual é a nossa ambição? É preciso ter a audácia de construir o futuro, tanto interna como externamente”, disse a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, atualmente copresidente do Painel Internacional de Recursos Naturais da ONU Meio Ambiente (IRP/UNEP).

Lafer: política externa deve ir além do PT e refletir o leque de apoios a Lula

“A eleição de Lula em 2022 foi fruto de uma abrangente coligação de apoios, fundamental para o seu sucesso no segundo turno em um país muito polarizado. Por isso, é relevante que a diplomacia da terceira presidência de Lula tenha a sensibilidade para ampliar sua validação, ou seja, que vá além das referências próprias do PT e venha a ser um componente de governança, sem perder, é claro, sua identidade”, afirmou Celso Lafer.

Além da já anunciada mudança de rumo na área na área ambiental, que tem dimensões internas e externas, o ex-chanceler apresentou alguns desafios diante do governo Lula 3:

- A revalorização do contexto latino-americano, com a retomada em novos termos da parceria Argentina/Brasil, o papel do Mercosul e a cooperação regional - “A nossa região está mais fragmentada e dividida do que era nas suas presidências anteriores. Por isso mesmo, requer uma renovada presença agregadora do Brasil”;

- Uma inovadora ênfase ao Tratado de Cooperação da Amazônia, região compartilhada  por oito países e a Guiana Francesa - “A preservação da floresta, aliada ao desenvolvimento sustentável, de forma a garantir condições de vida à população da Amazônia, é também um ponto de intersecção com a agenda ambiental e interessa a todo o mundo”;

- A mudança do eixo diplomático global do Ocidente para o Oriente, um movimento de longa duração e com impactos profundos - “Desde as grandes navegações no fim do século 15 até recentemente, o Ocidente, para o bem e para o mal, teve a primazia no controle da história do mundo. Isso está sendo erodido por uma mudança das placas tectônicas da vida internacional, com o deslocamento da dinâmica do Atlântico para o Pacífico”;

- A crescente relevância da competição entre os EUA e a China por hegemonia no sistema internacional e seus desdobramentos na atual distribuição geopolítica do poder - “É indispensável a gestão de nosso relacionamento com estes dois proeminentes atores do cenário mundial, cuja dinâmica tem incidência no comércio internacional, na economia brasileira e na América do Sul, com repercussão em nossa inserção regional”;

- O alcance da guerra na Ucrânia, cuja invasão unilateral pela Rússia representa uma ruptura com o padrão do aceitável contemplado pelas normas internacionais - “O Brasil também se vê atingido pelo efeito direto e indireto da crise ucraniana e, diante da ação inaceitável de Putin, cabe uma maior sintonia brasileira como a visão dos EUA e dos países europeus, reconhecendo evidentemente diferenças derivadas da especificidade da inserção internacional do Brasil”;

- O sistema multilateral de comércio, regido por normas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, entrou em crise, o que favorece o poder dos grandes blocos comerciais, dos quais o Brasil não faz parte - “Durante os governos anteriores de Lula, o Brasil podia contar com a efetividade das regras no âmbito de uma moldura jurídica de alcance universal. Isso mudou com a paralisia da OMC. Como o Brasil pode contribuir para a atualização do sistema de comércio internacional e para reforçar os laços comerciais com outros países e regiões, levando em conta o contexto do Mercosul?”.

Ao ser questionado sobre a ideia de Lula de criar um “clube da paz” – com a possível participação de países como China, Índia, Turquia e Brasil, entre outros –  para contribuir com uma solução para a guerra na Ucrânia, o ex-chanceler foi cauteloso: “A China já demonstrou alinhamento com a Rússia. A Índia também. A Turquia, por sua proximidade com a região em conflito, já é um interlocutor relevante. Para o Brasil, é arriscado tentar ir além da nossa medida de atuação em relação a esse grave problema. Se estamos falando de paz, eu me concentraria em encaminhar o problema da Venezuela, onde o Brasil tem maior poder de influência”.

“Não cabe nem subestimar nem superestimar o peso do Brasil e do que está ao alcance da sua diplomacia. O risco de subestimar o Brasil não é um risco do governo Lula 3. Já o risco de superestimação, dadas as características, a personalidade e a trajetória do presidente Lula, existe”, alertou o professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Waisbich: mundo vive confluência de crises e Brasil
precisa escolher em quais atuar

O mundo vive uma “policrise” – uma confluência de crises que se sobrepõem – com uma complexidade jamais vista, o que exige um senso de urgência e a necessidade de pensar de maneira diferente do que no passado recente. 

“Temos uma crise ambiental de múltiplas dimensões, provocada pela destruição do meio ambiente e da biodiversidade, pela poluição do ar, da terra e da água, pelo excesso de plástico e lixo, tudo isso somado ao aquecimento global, ameaçando a continuidade da vida no planeta, dos humanos e não humanos”, disse Laura Trajber Waisbich, doutora em geografia pela University of Cambridge.

“Mas temos também uma crise social, provocada pela desigualdade entre e dentro dos países, caracterizada pela pobreza, pela fome e pelo abandono de vastas populações, que leva à violência, à imigração ilegal, a guerras civis e entres países, a guerras silenciosas. Nos últimos anos, com a pandemia de Covid-19, voltamos várias casas no combate a estas crises”, continuou a pesquisadora. 

“Por fim, temos também uma profunda crise política, que se expressa através da crise da democracia, com a erosão das instituições democráticas e a emergência de novos tipos de autoritarismo, originado em eleições. O Brasil é um dos laboratórios deste processo que atinge tanto o mundo desenvolvido como em desenvolvimento”, disse Waisbich, também filiada ao Centro de Estudos da Cooperação Sul-Sul (Articulação SUL) e ao CEBRAP.

“É neste contexto extremamente complexo e multidimensional que devemos debater novas visões e projetos para a atuação brasileira no mundo. Nem todo país tem capacidade de ser parte das soluções dos problemas do planeta. O Brasil tem, mas, após o negacionismo diplomático praticado pelo governo Bolsonaro, precisa reconstruir sua política externa sob novas bases. Não cabe abstenção”, afirmou.

Waisbich concordou com Lafer em que a política externa do governo Lula 3 deve ir além do pensamento tradicional da política externa do PT, que não apenas está ultrapassada diante dos múltiplos desafios do planeta como também não reflete as visões de outras forças que apoiam o governo, tanto políticas como sociais e econômicas: “A política externa do novo governo não pode ser uma continuidade daquela praticada nos dois primeiros mandatos de Lula. É preciso repactuar e atualizar para recolocar o Brasil em um mundo diferente e muito mais complexo.”

Após afirmar que é preciso escolher as crises nas quais atuar de maneira estratégica, a especialista em relações internacionais sugeriu a agenda social como uma área em que o Brasil tem experiência e pode contribuir com o mundo. “A agenda social foi um trunfo de soft power do Brasil, sobretudo durante os anos de Lula. Mostramos que podemos resolver problemas via políticas públicas como o SUS, a cobertura vacinal, o monitoramento do desmatamento com uso da tecnologia. Infelizmente nem tudo isso se sustentou, mas pode e deve ser recuperado e oferecido ao mundo como contribuições que o Brasil pode dar”, concluiu.

Teixeira: sistema de governança global não está preparado
para lidar com os problemas contemporâneos

“Não previmos a crise da Covid-19, não previmos a eclosão da guerra na Europa, nem estávamos preparados para enfrentá-las, o que mostra que existe uma miopia política e institucional global e uma crise de todo o sistema de governança multilateral. Simplesmente não há capacidade instalada no sistema da ONU e de outras instituições internacionais para lidar adequadamente com os problemas de hoje”, disse a bióloga e ambientalista Izabella Teixeira, que teve papel central nas negociações internacionais sobre o clima quando esteve à frente do Ministério do Meio Ambiente (2010-2016).

Teixeira defendeu uma renovação do sistema internacional e um novo pacto global, baseado na ideia de global commons, em que os recursos do planeta e as tecnologias criadas pela humanidade possam ser compartilhados para o bem de todos, de maneira sustentável.

“O desafio é colocar em prática uma política externa contemporânea, que nos afirme como uma sociedade e uma economia de baixo carbono, comprometida com a paz, a democracia, a justiça social e a diversidade”, disse Izabella Teixeira.

Segundo a copresidente do Painel de Recursos Naturais da ONU (IRP-UNEP), a diplomacia hoje já não se faz apenas dentro dos palácios nem é atribuição exclusiva dos governos. “Ela vai além do Ministério das Relações Exteriores, deve envolver todos os demais ministérios e autarquias, os governos federal, estaduais e municipais, em diálogo permanente com o setor privado, as empresas e os trabalhadores, e a sociedade civil, as universidades, os institutos de pesquisa e as ONGs”, disse. “A política externa de um país é multistakeholder. Por isso, é preciso fortalecer a diplomacia em rede”, concordou Laura Waisbich. 

Teixeira lembrou que o Brasil é um dos 15 países que mantêm relações diplomáticas com todas as demais nações do planeta, mas precisa traduzir esta vantagem em uma liderança contemporânea, com um olhar criativo e inovador. “É preciso dar a nossa contribuição para novos estilos de vida e de consumo, participar da transição industrial em curso, agregar valor à agroindústria sustentável, fortalecer a agricultura familiar e a segurança alimentar. Se o Brasil fizer a lição de casa do jeito certo, beneficia o mundo”, exemplificou.

A ex-ministra disse que o Brasil precisa entender de vez o papel da Amazônia no planeta: “É claro que é preciso parar o desmatamento, mas esta é uma agenda que já havíamos colocado em prática e estava bem encaminhada. A preservação da Amazônia depende de múltiplas ações bem articuladas, o que exige a participação de todos os envolvidos, nos níveis nacional, continental e internacional.”

“O desafio é colocar em prática uma política externa contemporânea, que nos afirme como uma sociedade e uma economia de baixo carbono, comprometida com a paz, a democracia, a justiça social e a diversidade. Não queremos ser eternamente o país do futuro, mas sim um país melhor no futuro, com um lugar bem situado no mundo. E que esta trajetória não admita mais retrocessos”, concluiu.

Assista ao vídeo completo do webinar.

Conheça o projeto Linhas do Tempo:

Políticas para o meio ambiente: o movimento ambientalista e as principais decisões desde a redemocratização

 

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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