Ir para o conteúdo
Logotipo do FFHC Menu mobile

/imagens/33/02/pdt_bnn_13302.jpg

Debates » Debates

A década da definição: os EUA e a China vão conviver pacificamente?

/ Transmissão online - via Zoom


Os Estados Unidos e a China já vivem em um estado de guerra fria, concordaram os palestrantes deste webinar. Há divergências, no entanto, sobre as chances de a crescente disputa econômica, tecnológica, política e ideológica entre as duas superpotências escalar para um confronto militar no Mar da China Oriental, na região do Estreito de Taiwan, e detonar uma guerra de maiores proporções no Leste Asiático, nos próximos anos.

“Quando Henry Kissinger disse há cerca de dois anos que os EUA e a China estavam à beira de uma guerra fria, eu diria que agora a situação entre os dois países está bem além disso. Hoje, tanto em Washington como em Pequim, já se fala abertamente em jogos de guerra. Desde que vim estudar nos EUA há cerca de 40 anos, nunca experimentei esse grau de desconfiança e tensão recíproca. Sinto dizer que, nas atuais circunstâncias, uma faísca pode levar ao início de um confronto militar entre as duas superpotências”, disse Lanxin Xiang, professor emérito do Graduate Institute of International and Development Studies (IHEID, Genebra) e diretor do Institute of Security Policy (ISP), do China National Institute for SCO International Exchange and Judicial Cooperation, em Xangai.

“Acredito que um acidente militar no Estreito de Taiwan é possível, os riscos estão crescendo, mas não há razões para crer que isso escalaria para uma guerra maior no Leste Asiático, pois nem a China nem os Estados Unidos se beneficiariam disso. Na verdade, a única coisa que detonaria uma guerra envolvendo os EUA e a China seria uma ordem de Pequim para invadir Taiwan”, afirmou Bonnie S. Glaser, diretora do Indo-Pacific Program do The German Marshall Fund of the United States (GMF), coautora de “US-Taiwan Relations: Will China's Challenge Lead to a Crisis” (Brookings Press, abril de 2023).

Lanxin Xiang e Bonnie S. Glaser participaram do webinar “A década da definição: os EUA e a China vão conviver pacificamente?”, realizado pela Fundação FHC e o German Marshall Fund of the United States, com mediação do cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação.

Leitura equivocada das intenções do rival pode levar a guerra entre China e EUA

“Voltei da China há cerca de um mês e a crença atualmente em Pequim é que Washington está determinado a conter o crescimento da China em todos os aspectos, principalmente no que diz respeito ao domínio das tecnologias mais avançadas, como a Inteligência Artificial, entre outras. Já não é algo tático, limitado a uma área ou a uma questão específica, trata-se de uma ampla estratégia de contenção, inclusive militar. Diante desse fato, não há muito o que Pequim possa fazer a não ser se preparar para uma guerra”, disse Lanxin Xiang, em sua fala de abertura.

“Os líderes chineses culpam, em primeiro lugar, os Estados Unidos pela deterioração das relações, que começou com a chegada de Donald Trump ao poder (2017) e se aprofundou durante a atual administração Biden (iniciada em 2021). Eles realmente acham que essa luta pela supremacia global não foi provocada por Pequim e é desnecessária. É claro que, se a liderança chinesa tem essa percepção, desde 2017 ela vem realizando os preparativos para um potencial confronto e está cada vez mais psicologicamente preparada para isso”, continuou. 

“Já em Washington, nos últimos meses, todo mundo, seja no governo, no Congresso, nos think tanks ou na imprensa, tem feito suas apostas sobre quando teria início uma ação militar na região do Estreito de Taiwan (que separa a China continental do Arquipélago de Taiwan). No início, falavam em 2049, depois adiantaram para 2030 e, agora, já há quem fale em 2027, 2025 ou mesmo 2024. O que está acontecendo em Washington? Por que toda essa especulação sobre guerra?”, perguntou o palestrante.

“Não quero dizer que Pequim tenha definido um prazo para o início de uma ação militar em Taiwan, mas não tenho dúvidas de que o Exército de Libertação Popular está fazendo planos para invadir a ilha, se isso se mostrar necessário nos próximos anos”, afirmou.

Ainda segundo o professor, a elite política e militar chinesa está convencida de que a administração Biden tem como objetivo enfraquecer a ideia de “um país, dois sistemas”, que é a política oficial de Pequim em relação a Taiwan, substituindo-a pela ideia de “uma China, uma Taiwan”, que teria como objetivo perpetuar a separação entre os dois territórios chineses. 

“Essa ideia tem origem no movimento independentista taiwanês, integra a ideologia deles e é rejeitada por Pequim. A percepção atual da liderança chinesa é que o governo de Biden está trabalhando para a independência ‘de facto’ de Taiwan. Diante disso, não diria que Pequim abriu mão de buscar uma solução pacífica para a questão de Taiwan, mas ela está cada vez mais remota”, disse Xiang.

Segundo o professor chinês, Pequim desistiu de conversar com a administração Biden e está aguardando o resultado das eleições presidenciais norte-americanas de 2024 para, então, reavaliar as relações com os Estados Unidos: “A equipe especialista na China que integra o governo Biden é muito fraca. Eles simplesmente não entendem o que está acontecendo em Pequim.”

Segundo Xiang, o que vemos hoje é “o exemplo clássico do que pode acontecer quando duas superpotências interpretam mal as intenções de outra, como ocorreu entre a Inglaterra e a Alemanha no início do século 20 e que acabou resultando na Primeira Guerra Mundial”. “Em 1914, o atentado contra o arquiduque Ferdinando em Sarajevo foi a faísca que levou ao início da Primeira Guerra. Qual será a faísca que levará a uma guerra entre a China e os EUA? Com o nível de desconfiança e a falta de comunicação atual, pode acontecer a qualquer momento”, concluiu.

China e EUA devem buscar cooperação em diversas áreas
para reduzir desconfiança

“Não há dúvidas de que os Estados Unidos e a China estão envolvidos em uma competição estrutural de longo prazo. Trata-se de uma competição de largo espectro entre duas superpotências por riqueza, poder e influência global. E essa disputa está ocorrendo em vários campos, dos mais tradicionais, como a economia, o comércio e a diplomacia, ao das tecnologias de última geração, como a Inteligência Artificial e a segurança cibernética. O domínio das novas tecnologias também é importante no campo militar”, disse Bonnie S. Glaser, ao iniciar sua fala.

A especialista salientou que essa disputa estratégica tem, cada vez mais, um caráter ideológico, devido a modelos opostos de governança política e desenvolvimento econômico e a visões diferentes da estrutura e das regras que regem a ordem internacional. “Essa competição poderia ser caracterizada como uma nova guerra fria? Minha visão é de que sim, os EUA e a China já vivem uma nova guerra fria, mas definitivamente não se trata de uma réplica da disputa entre os EUA e a União Soviética na segunda metade do século 20”, disse.

Glaser lembrou que o comércio entre os EUA e a URSS era mínimo, já as relações comerciais entre a China e os EUA atingiram o patamar de US$ 690 bilhões em 2022. “As duas economias são muito interdependentes e há um intenso intercâmbio entre chineses e norte-americanos, em geral benéfico para ambos os lados”, disse.

Segundo a palestrante, essa competição veio para ficar, mas não deve levar a uma guerra nos próximos anos, a não ser que Pequim decida retomar Taiwan pela via militar. “Só uma invasão de Taiwan pelas Forças Armadas da China poderia provocar uma guerra envolvendo os Estados Unidos. Duvido que Pequim faça isso, pois uma tentativa fracassada enfraqueceria a posição do presidente Xi Jinping e ameaçaria a legitimidade do regime comunista chinês”, disse. Ela não descartou, no entanto, um acidente militar na região do Estreito de Taiwan, devido à proximidade das forças militares das duas superpotências no Mar da China Oriental.

“O governo Biden tem tentado trabalhar com a China em todas essas questões, mas Pequim rejeitou essas tentativas e tem sido relutante em se envolver em qualquer tipo de cooperação”, afirmou a norte-americana.

Bonnie Glaser discordou da afirmação de Lanxin Xiang de que o atual governo norte-americano apoiaria a ideia de “uma China, uma Taiwan”, algo próximo de uma declaração de independência. “Esta não é nem nunca foi a posição do governo norte-americano, que sempre se posicionou a favor de uma solução negociada e pacífica para a questão de Taiwan. Concordo, no entanto, que o governo Biden precisa ter uma postura mais transparente e consistente em relação a essa questão para não dar margem a dúvidas”, afirmou.

Para a especialista, mesmo no auge da Guerra Fria os EUA e a URSS foram capazes de manter algum nível de diálogo no sentido de evitar um confronto nuclear, seja por meio de medidas de construção de confiança na Europa ou por meio de acordos e tratados de controle de armas. “Apesar da intensa rivalidade, as duas superpotências criaram alguns mecanismos para reduzir a tensão e evitar uma guerra. Há, portanto, lições que podem ser aprendidas da Guerra Fria do século 20 para impedir que a atual disputa entre a China e os EUA leve a um conflito militar”, disse.

“Acredito que a cooperação entre os EUA e a China é essencial, e há um crescente número de desafios regionais e globais em que isso pode acontecer. Como exemplo, cito a busca de uma solução para a Guerra da Ucrânia, o enfrentamento da mudança climática, a prevenção de uma nova pandemia, a questão da segurança alimentar global e até mesmo a administração dos riscos colocados pela inteligência artificial”, sugeriu.

“O governo Biden tem tentado trabalhar com a China em todas essas questões, mas Pequim rejeitou essas tentativas e tem sido relutante em se envolver em qualquer tipo de cooperação”, afirmou a norte-americana.

Glaser encerrou sua fala de abertura destacando a importância de uma atenção especial, por parte dos Estados Unidos e também da Europa, no sentido de se aproximarem dos chamados “swing states”, países que têm crescente importância geopolítica e econômica e não querem escolher um lado na atual disputa entre os EUA e a China. Como exemplos, ela citou a Índia, a Indonésia, a Arábia Saudita, a Turquia, o Brasil e a África do Sul.

“Esses países têm seus próprios desafios de desenvolvimento e desejam ter um papel relevante em uma nova ordem internacional baseada em um mundo multipolar. Para fortalecer os princípios democráticos e liberais, os EUA e a Europa devem buscar parcerias com esses países para resolver problemas regionais e globais, mas também para avançar nas prioridades desses importantes Estados em ascensão. Não há uma solução que sirva para todos”, disse.

Assista ao vídeo do webinar na íntegra.

Conheça os minidocs da série Vale a Pena Perguntar: O que é Inteligência Artificial? 

 

Leia também:

Estados Unidos, China (e Rússia): o mundo vive uma nova Guerra Fria?

As relações entre a China e a Rússia pós-guerra da Ucrânia

A política externa do governo Lula: os desafios do Brasil em um mundo em crise

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

 

Mais sobre Debates