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As relações entre a China e a Rússia pós-invasão da Ucrânia

/ Transmissão online - via Zoom


Definida por Pequim e Moscou às vésperas da invasão da Ucrânia como uma “amizade sem limites”, as relações entre a China e a extinta União Soviética e a Rússia durante o século 20 foram como uma montanha-russa, com altos e baixos. E, embora os dois gigantes tenham se aproximado nos últimos anos, em parte graças à boa relação entre os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin, tensões e desconfianças profundas fazem com que ambos os países resistam a se tornar excessivamente dependentes um do outro.

“A relação próxima entre Putin e Xi é a cola que une os dois países neste período da história, mas, para além da química entre os dois líderes, a amizade sino-russa vai depender do equilíbrio entre os interesses compartilhados a nível global e regional e os interesses nacionais concorrentes”, afirmou o professor Tai Ming Cheung, diretor do Institute on Global Conflict and Cooperation (IGCC), University of California San Diego. 

A crescente rivalidade entre a China e os Estados Unidos, de um lado, e os planos da Rússia de atacar a Ucrânia e enfrentar a OTAN, de outro, levaram Xi e Putin a firmar no início de fevereiro, por ocasião da abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, uma “parceria estratégica sem limites” em que não haveria “áreas proibidas”, sugerindo que estariam dispostos a aprofundar a cooperação em áreas sensíveis que haviam sido evitadas anteriormente.  

Segundo o palestrante, até o início da guerra na Ucrânia as relações sino-russas tinham importância estratégica mediana e não impactaram significativamente a ordem global ou regional (no caso, o Leste Ásiatico). Isso, no entanto, pode mudar a partir de 2022, com o eixo Pequim-Moscou ganhando relevância no cenário global, sobretudo na área de segurança/militar. “Com Moscou cortado do sistema econômico internacional liderado pelo Ocidente, suas relações com a China serão cruciais para suas perspectivas de médio e longo prazo”, disse.

Para Tai, a parceria sino-russa tem pontos de convergência estratégica — ambos os países manifestam ter visões comuns sobre soberania e integridade territorial, e a Rússia expressou seu apoio ao desejo da China de retomar o controle sobre Taiwan —, mas interesses econômicos da China, cujo impressionante desenvolvimento nas últimas décadas foi baseado na exportação, podem se tornar obstáculos para a consolidação de uma cooperação mais estreita.

“As fundações da relação China-Rússia não se baseiam em rocha dura, mas no regolito (camada solta de material heterogêneo e superficial que cobre uma rocha) de interesses nacionais cambiantes”, disse o especialista em assuntos de defesa e segurança nacional da China e do Leste Asiático, neste webinar realizado pela Fundação FHC, pelo CEBRI e pelo Conselho Empresarial Brasil-China.

       China e Rússia no mesmo patamar ou há uma hierarquia na relação?

O “déficit de confiança” se reflete, por exemplo, no campo da tecnologia militar, justamente uma das áreas mais importantes da relação, porque Moscou teme que Pequim se aproprie indevidamente da propriedade intelectual da indústria armamentista russa, acusação já feita no passado. Outra questão pendente seria o status de cada país na recém-anunciada amizade: China e Rússia seriam parceiros no mesmo patamar ou haveria uma hierarquia, com um país em posição de destaque em relação ao outro?

“A Rússia se vê como o parceiro sênior da relação por ter apoiado o regime comunista chinês em sua primeira década de vida (nos anos 1950) e, mais recentemente, por ter fornecido tecnologia e know how militar para Pequim. A China, no entanto, acredita estar em uma posição de força para liderar a relação a partir de agora por ser a segunda maior economia do mundo e estar na vanguarda de algumas das tecnologias do futuro”, disse o professor, cujas áreas de pesquisa incluem os esforços da China para se tornar uma potência de ciência, tecnologia e segurança de classe mundial. Seu novo livro, “Innovate to Dominate: The Rise of the Chinese Techno-Security State”, será publicado em agosto pela Cornell University Press. 

O centro de gravidade das relações sino-russas nas últimas décadas esteve nas áreas de defesa & segurança, ciência & tecnologia e na transferência de armas, com a China na posição de compradora e a União Soviética/Rússia, de vendedora. “Essa relação teve altos e baixos, devido a acusações de espionagem e apropriação indevida de tecnologia, mas os laços se estabilizaram a partir de meados da década passada, mesmo com ambos os lados conscientes dos riscos de fazer negócio um com o outro”, disse Tai.

Mais recentemente, no entanto, os setores militar e tecnológico russo e chinês vêm avançando em novas parcerias em áreas até então inexploradas, como defesa antimísseis, sistemas de alerta e armas hipersônicas. Os exércitos russo e chinês também têm realizado exercícios conjuntos em terra, no céu e no mar no Leste Asiático, na região de Vladivostok e em torno do Japão e da Coreia do Sul.

       Boa relação entre Xi e Putin tem sido fundamental para o aprofundamento da parceria

A primeira visita ao exterior realizada por Xi Jinping após assumir o cargo de presidente da República Popular da China em 2013 foi ao todo-poderoso do Kremlin, Vladimir Putin, no poder desde 1999. “Ambos são produtos e realmente acreditam nos sistemas nos quais atuaram durante boa parte de suas respectivas carreiras: Putin no aparato de inteligência da KGB, e Xi no Partido Comunista”, afirmou Tai.

Segundo o professor, os líderes russo e chinês têm afinidades políticas e ideológicas e visões similares em relação à segurança nacional e às perspectivas globais, entre outros temas cruciais. “Também compartilham uma profunda desconfiança e até mesmo hostilidade em relação ao Ocidente”, disse.

Apesar da antipatia mútua em relação aos Estados Unidos estar aproximando a China e a Rússia, é pouco provável que esta hostilidade compartilhada resulte em uma aliança de segurança/militar ampla e completa. “As relações sino-russas sofrem de uma animosidade histórica que começou no início dos anos 1960, quando uma década de boas relações foi por água abaixo, quase levando a uma guerra entre a extinta URSS e a República Popular da China em 1969. Nos 30 anos seguintes, Pequim e Moscou seguiram caminhos distintos”, explicou Tai. 

Segundo o Ph.D. em Estudos de Guerra pelo King’s College (London University), esta desconfiança histórica foi em parte superada, em parte devido aos esforços de Xi e Putin, mas não se encontra muito abaixo da superfície e contribui para limitar a confiança estratégica, especialmente nos respectivos setores militares.

       A China poderia ser uma ponte entre a Rússia e o Ocidente?

Crítica da expansão da OTAN rumo ao Leste Europeu, a China não condenou a invasão da Ucrânia e não aderiu às sanções impostas pelo Ocidente contra Moscou, apesar da pressão do governo norte-americano. Embora Pequim tenha insistido com a Rússia e a Ucrânia sobre a urgência de uma solução negociada, até o momento a China não fez uma tentativa pública de mediar o conflito. 

“A China gostaria de servir de ponte entre a Rússia e a comunidade internacional neste momento de crise e a médio e longo prazo, mas este será um enorme desafio devido à crescente desconfiança do Ocidente em relação ao regime chinês”, disse Tai.

       Quais são as implicações da guerra em relação a Taiwan?

Se a Rússia tivesse vencido a guerra contra a Ucrânia de forma rápida e decisiva, a opção militar para recuperar o controle sobre Taiwan se tornaria mais atrativa para Pequim, mas as dificuldades que o exército russo está enfrentando na Ucrânia levaram os militares chineses a postergar eventuais planos de uma ação militar contra a ilha, que se declarou independente em 1949, mas nunca foi reconhecida pela China como tal. 

“Pequim não tem uma data definida para obter a reunificação de Taiwan à China continental, mas uma das consequências da guerra na Ucrânia será a aceleração dos esforços chineses no sentido de modernizar seu arsenal de guerra e suas forças armadas, com o objetivo de se tornar uma potência militar global até 2049 (quando o regime comunista completará cem anos no poder)”, disse Tai.

Após sua fala inicial, Tai Ming Cheung respondeu a perguntas do cientista político Hussein Kalout, professor de Relações Internacionais da Harvard University e conselheiro do CEBRI, e da jornalista Cláudia Trevisan, ex-correspondente do Estadão em Pequim e Washington e diretora-executiva do CEBC. O jornalista Otávio Dias, editor de conteúdo da Fundação FHC, mediou o evento e selecionou perguntas do público.

Assista ao vídeo do webinar na íntegra.


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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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