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A atualização das Forças Armadas: um debate inadiável

/ Transmissão online - via Zoom


O Brasil  precisa fazer mudanças nas leis e nas estruturas do Estado para fortalecer o compromisso das Forças Armadas com a democracia e aumentar a participação dos civis na formulação das políticas de Defesa Nacional. Tais mudanças, porém, devem ser realizadas gradualmente, com cautela, para não criar mais tensão em um momento em que a sociedade e as forças políticas ainda estão muito divididas. 

Em torno desse consenso, os dois estudiosos que participaram deste webinar realizado pela Fundação FHC mostraram divergências sobre a profundidade das mudanças necessárias à normalização das relações entre civis e militares, abaladas nos quatro anos de governo Bolsonaro.

“Embora o ex-presidente Jair Bolsonaro tenha buscado criar as condições para uma ruptura democrática após a sua derrota eleitoral, as Forças Armadas do Brasil, e principalmente o alto comando do Exército, disseram não à tentativa de golpe. No entanto, ainda há uma certa tensão no ar. Por isso, neste momento, é melhor agir com calma e prudência”, disse Denis Rosenfield, professor titular do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

“Concordo que os atos golpistas de 8 de janeiro fracassaram porque não houve apoio das três forças. Isso deve ser louvado, mas não devemos passar uma esponja no que aconteceu durante os quatro anos de Bolsonaro. É necessário, sim, levar adiante reformas para fortalecer a vocação democrática dentro das Forças Armadas e recolocar as relações civis-militares no rumo correto que vinham trilhando desde a redemocratização e, sobretudo, a partir de 1999, quando foi criado o Ministério da Defesa”, afirmou Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE), da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro.

Segundo Amorim Neto, o novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, tem a experiência, o conhecimento e a habilidade para fazer uma “mudança sábia, gradual e controlada”, mas é importante avançar na velocidade correta e no limite do apoio parlamentar do novo governo. “Se nada acontecer ou as reformas forem muito tímidas, será uma frustração para aqueles que apoiam a democracia”, disse o cientista político, autor do livro "New studies on civil-military relations and defense policy in Brazil" (Editora FGV, 2022).

Militares não devem disputar eleições ou integrar governo

Rosenfield defendeu o estabelecimento de regras mais claras para impedir que militares da ativa disputem cargos políticos e, depois, retornem aos quartéis, ou mesmo exerçam funções de alto nível no Executivo, como ministros de Estado, a não ser que passem definitivamente para a reserva. “Impedir a atuação de militares da ativa no aparelho do Estado é uma reforma importante, mas creio que seria melhor se isto fosse feito por meio de uma mudança infraconstitucional, sem a necessidade de alterar a Constituição”, disse o articulista do jornal “O Estado de S.Paulo”, considerado um interlocutor próximo ao mundo militar.

Segundo reportagem do jornal “O Globo”, o atual governo articula uma proposta para impedir a chamada “porta giratória”, em que militares da ativa se afastam provisoriamente de suas funções para disputar cargos eletivos e, em caso de derrota, acabam retornando aos quartéis. A proposta pode barrar também que militares assumam ministérios, a não ser que se afastem definitivamente das Forças Armadas. Não se sabe ainda se a proposta em estudo será apresentada como uma PEC (proposta de emenda constitucional) ou um projeto de lei comum.

O professor da UFRGS disse ser contrário à alteração do artigo no artigo 142 da Constituição, motivo de polêmica nos últimos anos entre apoiadores de Bolsonaro, que sustentam que as Forças Armadas poderiam exercer um poder moderador, em caso de conflito entre os três poderes da República, e críticos a esta ideia, que afirmam que as Forças Armadas devem se manter sempre neutras em relação à política e atuar apenas na defesa nacional.

“Não há, no artigo 142, nenhuma menção a um suposto poder moderador das Forças Armadas, nem qualquer brecha na Constituição para que os militares assumam o poder civil, em nenhuma circunstância. Se o novo governo, majoritariamente controlado por forças de esquerda, arriscar mexer nisso agora, o resultado pode ser desastroso”, disse Rosenfield.

Ele criticou as propostas de reforma dos currículos das academias militares, como pretendem alguns setores da política e da sociedade. “Esta é uma questão muito sensível dentro dos quartéis e não deve ser imposta de fora para dentro”, alertou. Para Rosenfield, o governo Lula deve investir em um diálogo amplo, permanente e consistente com os militares, que pode incluir o tema da formação militar, assim como outros temas como investimentos em defesa, melhores salários e condições de trabalho.

“Sou favorável, em princípio, à revisão do artigo 142, mas temos de ser realistas: o atual governo não tem maioria de dois terços no Congresso para aprovar uma emenda constitucional sobre tema tão controverso. É importante lembrar que a direita teve uma grande votação nas eleições para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal no ano passado. O clima no Parlamento não é propício para discutir algo tão sensível”, disse Amorim Neto.

Amorim Neto propôs a criação da carreira de analista civil no Ministério da Defesa: “Isso o governo tem condições de implementar com uma simples medida administrativa, pois já está previsto em lei, e daria ao Ministério da Defesa um importante instrumento para reforçar o controle civil sobre as Forças Armadas e a Política Nacional de Defesa.”

Exército atuou nos bastidores para garantir eleições de 2022

Segundo Rosenfield, o Exército brasileiro contribuiu, por iniciativa própria, na validação dos resultados das urnas eletrônicas nas eleições de outubro passado, em estreita colaboração com o Tribunal Superior Eleitoral. “Eu estava lá e presenciei o comprometimento dos militares democratas em defesa da lisura da votação. Os testes de integridade com biometria, realizados por amostragem, deram 100% de conformidade com os resultados transmitidos ao TSE pelos Tribunais Regionais Eleitorais. Esse importante trabalho de defesa da democracia foi feito nos bastidores, sem alarde, com a anuência do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal”, relatou.

Ele concordou que o ex-presidente Bolsonaro causou grande dano à imagem das Forças Armadas ao trazer milhares de militares para dentro do governo federal e afirmou que recuperar esta imagem levará tempo e exigirá a participação de todas as 

forças políticas comprometidas com a democracia: “É um trabalho delicado, que pedirá contenção tanto por parte do governo Lula e de sua base de apoio, como por parte do bolsonarismo não radical e das demais forças políticas.”

Governo Bolsonaro colocou em risco a defesa nacional

Amorim Neto alertou que a tentativa de cooptação dos militares por Bolsonaro, em parte bem sucedida, gerou problemas não somente para a democracia e as próprias Forças Armadas, como também para a segurança e a defesa do país. 

“Vivemos um momento muito delicado, com uma guerra imprevisível acontecendo em plena Europa, e os militares brasileiros, em vez de se buscarem se atualizar sobre as novas tecnologias e táticas militares, exerciam funções que caberiam aos civis em diversos ministérios e autarquias. Trata-se de um desvio de função que, se não for corrigido, a médio e a longo prazo pode comprometer a segurança e a defesa nacional”, afirmou. 

Para o professor da FGV, a esquerda brasileira se equivoca quando diz, de maneira simplista e generalizada, que a maioria dos militares seria golpista, mas, segundo ele, a direita e a centro-direita têm sido lenientes em relação à crescente presença dos militares na política e à politização dentro dos quartéis.

“A classe política, de maneira geral, tem sido tímida e hesitante na maioria das questões relativas à Defesa Nacional. Os parlamentares, por exemplo, têm a prerrogativa de avaliar a Estratégia Nacional de Defesa a cada quatro anos, mas fazem isso de maneira burocrática. Quando se dão conta da complexidade das questões envolvidas, caem fora. Está mais do que na hora do poder civil assumir plenamente as suas responsabilidades em relação à defesa da nação”, concluiu o professor da FGV.

Assista ao vídeo do webinar na íntegra.

 

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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