Debates
15 de agosto de 2019

Transições democráticas: lições para enfrentar a ameaça do populismo

O debate marcou o lançamento da edição em português do livro “Transições Democráticas – Ensinamentos dos Líderes Políticos” (Editora Contexto).

Em uma fase em que diversos países do mundo enfrentam a ameaça de regressão democrática, a busca do diálogo e da convergência entre forças efetivamente comprometidas com a democracia (independentemente de sua posição no espectro político) ganha especial relevância, assim como o fortalecimento de instituições, hábitos e condutas que apoiem e reforcem a governança democrática em seus diversos aspectos, entre eles o Estado de Direito, a liberdade de expressão e de imprensa, os direitos humanos e das minorias.

Esta foi a principal mensagem do debate Transições Democráticas: Ensinamentos dos Líderes Políticos, que marcou o lançamento da edição em português do livro com o mesmo nome, publicado pela Editora Contexto, com apoio da Fundação Fernando Henrique Cardoso e do IDEA International (Institute for Democracy and Electoral Assistance).

“Olhar nos olhos, criar confiança e estabelecer bases comuns, centrando no que nos une e deixando de lado o que nos divide, é fundamental.”
Sergio Bitar, ex-senador chileno, é vice-presidente do Conselho Consultivo do IDEA International e um dos editores do livro. 

 

“Como preservar a democracia diante de ameaças sutis ou não tão sutis? Além de eleições livres e limpas, reforçar os ‘freios e contrapesos’ para evitar que o eleito tome decisões sem levar em conta as opiniões e os direitos de todos, mesmo daqueles que não votaram nele.”
Abraham F. Lowenthal, cientista político norte-americano, dirigiu o Inter-American Dialogue e é coeditor da obra recém-lançada no Brasil.

 

“O que a história nos mostra é que as transições democráticas exigem duas qualidades raras de serem encontradas nas lideranças políticas e sociais: coragem e capacidade de conciliação. É importante balancear essas duas coisas e evitar apostar na ruptura.”
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, professor e pesquisador, foi presidente do Brasil (1995-2003) e é um dos líderes políticos entrevistados no livro.

Como se detecta uma ameaça de regressão democrática a tempo de se conseguir operar para evitá-la?, perguntou Bitar, que foi ministro do presidente Salvador Allende (deposto em golpe liderado pelo general Augusto Pinochet em 1973) e voltou a ser ministro de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet (após o retorno do Chile à democracia). Segundo ele, é essencial fortalecer a sociedade civil, as instituições de Estado e os partidos, assim como os meios de comunicação e os centros de pensamento, pesquisa e atuação política. “Sem visão estratégica, debate de ideias e capacidade de ação concreta, não se faz democracia. É preciso aproveitar cada oportunidade para avançar”, afirmou. 

Dez lições do passado recente

No livro, os autores estudaram nove transições democráticas (três na América Latina e duas na Europa, na Ásia e na África). Entrevistaram 13 chefes de Estado que participaram de processos do tipo e, deles, tiraram dez lições. Instaurar controle civil sobre militares, polícias e serviços de inteligência, fomentar justiça transnacional e memória coletiva, elaborar Constituições inclusivas e viáveis, formar coalizões internas e mobilizar apoio externo são algumas delas.

Ainda segundo Bitar, deve-se combater a mentira e o medo, estratégias utilizadas por regimes autoritários para manter a sociedade acuada: “O sofrimento dos povos que vivem sob ditaduras é grande. É indispensável mostrar que, com liberdade e respeito às regras democráticas e ao outro, é possível construir um futuro melhor.” Por fim, o chileno defendeu a adoção de políticas econômicas e fiscais responsáveis, que tragam crescimento sustentado e maior equidade social, pois é fundamental que os cidadãos percebam que sua vida melhora com a democracia.

EUA: ‘Promessas irrealistas’

O que podemos aprender das lições do passado para proteger a democracia diante da crescente ameaça do populismo, seja ele de direita ou de esquerda? “As instituições são importantes, mas as normas mais ainda. Ambas devem ser protegidas e reforçadas dia e noite”, resumiu Lowenthal, professor emérito da University of Southern California e autor de 17 livros sobre América Latina e relações EUA-América Latina e numerosos ensaios sobre Relações Exteriores e Política Externa.

O norte-americano criticou o funcionamento das instituições políticas de seu país nas últimas três décadas: “Mesmo nos EUA, país historicamente reconhecido pela força de seu sistema político, Executivo, Legislativo e os principais partidos políticos não têm sido capazes de superar suas diferenças e divisões e dar respostas a problemas que têm se agravado nos últimos 30 anos. E isso não é culpa de (Donald) Trump. O fenômeno Trump é consequência do mau funcionamento das instituições políticas norte-americanas. Para combater os efeitos, é necessário identificar as causas.” 

Como exemplo desse desgaste institucional, ele citou resultados de pesquisas que mostram que, em 1964, 76% dos norte-americanos acreditavam que o governo encontraria respostas aos problemas do país na maior parte das vezes; em 2016, esse percentual caiu para 13%. 

Simpatizante do Partido Democrata, o palestrante criticou todos os pré-candidatos da agremiação à Casa Branca nas eleições de 2020. “Que qualidades devem ter o líder? Fazer promessas irrealistas não é uma delas. O líder deve ter propostas factíveis para resolver problemas reais, estratégia e ser capaz de dar passos práticos para concretizá-las. Até o momento, os postulantes democratas não demonstraram possuí-las. Temos de continuar a procurar (um bom candidato)”, disse.

Venezuela: ‘sublimar diferenças’

A complicadíssima crise venezuelana foi por diversas vezes lembrada como exemplo de regressão democrática nos dias que correm. “Se especialistas mundiais em destruição tivessem se juntado para prejudicar um país, não teriam tido tanto êxito. A Venezuela hoje é resultado de uma demolição institucional progressiva e de um colapso econômico e social sem precedentes”, afirmou Bitar, que viveu no país após ser exilado de seu país pelo regime Pinochet.

Lowenthal lamentou que o país pareça tão distante de encontrar soluções para seus urgentes problemas: “No campo da oposição democrática, existe um consenso de que nunca houve um governo tão brutal e repressivo como o do atual presidente Maduro, assim como também não haveria outro caso de um desastre econômico tão profundo e inútil. Será mesmo que a Venezuela é mais polarizada do que a África do Sul durante o apartheid? Ou mais repressiva do que o Chile de Pinochet? Ambos os países foram bem sucedidos na transição para a democracia e, apesar das dificuldades, estão evoluindo na solução de seus problemas. Para que a Venezuela reencontre o caminho da liberdade e do progresso, todas as forças democráticas devem se unir, sublimar suas diferenças e se concentrar no que é mais importante”. 

“Transições para democracia são custosas, requerem compreensão do momento que se está vivendo, dos obstáculos e das oportunidades que existem para avançar. Elas só podem ser feitas a partir de dentro, nunca impostas de fora. O máximo que outros países podem fazer é estimular o diálogo, acompanhar as negociações e apoiar naquilo que for solicitado. Intervir de outras formas não é uma boa alternativa”, afirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Brasil: ‘paciência histórica’

Ao serem questionados pela plateia sobre os rumos do governo Bolsonaro e a polarização política do país, os palestrantes estrangeiros preferiram não comentar. Para FHC, é fundamental ter calma: “O atual presidente tem feito ou proposto coisas que, na minha opinião, não são construtivas para o Brasil. Mas ele foi eleito e isso tem de ser respeitado. É importante resistir (para evitar retrocessos), mas também ter paciência histórica. Acirrar a animosidade não é conveniente. Por enquanto, as instituições brasileiras têm mostrado força. É essencial apoiá-las.”

América Latina: ‘fadiga democrática’

Segundo o advogado argentino Daniel Zovatto, co-organizador do evento, a América Latina passa por um período de “fadiga democrática”, que paradoxalmente se manifesta ao final do que ele chamou de superciclo eleitoral, caracterizado por três anos seguidos de eleições presidenciais na grande maioria dos países da região.

Zovatto, que participou de mais de 50 missões de observação eleitoral, lembrou que quase todos os presidentes latino-americanos eleitos recentemente enfrentam rápido desgaste de seu capital político, por não terem maioria no Parlamento, o que dificulta a aprovação de reformas e a governabilidade.

“Os avanços econômicos e sociais estagnaram ou até refluíram nos últimos anos, não estamos gerando empregos de qualidade e mais de 30% dos habitantes da região ainda vive na pobreza. Para dificultar ainda mais, a violência aumenta em vários países, o crime organizado se fortalece e a corrupção continua sendo um problema”, explicou o diretor para a América Latina e o Caribe do IDEA International.

Ele citou pesquisa do Instituto Latinobarómetro (Chile) que mostra que cerca de 70% dos latino-americanos estão insatisfeitos com a democracia. “Para tornar as democracias mais resilientes, governantes democráticos devem se preocupar em entregar resultados concretos à população”, concluiu.

 

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.