Debates
12 de agosto de 2021

Polícia, política e segurança pública no Brasil

Debate promovido em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em pauta: Qual é a arquitetura institucional mais adequada ao sistema de segurança pública brasileiro?

Apesar de central na vida de todos os brasileiros, a segurança pública é uma questão mal resolvida pela Constituição de 1988, que não define com clareza os papéis do governo federal e dos governos estaduais e municipais. Com o objetivo de sanar essa deficiência, em 2018 o então presidente Michel Temer instituiu o SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) por meio da Lei 13.675,  que definiu seu funcionamento e destinou recursos para colocá-lo em prática. Mas o governo Bolsonaro, eleito com a promessa de melhorar a segurança dos brasileiros, optou por engavetar a iniciativa.

Em vez disso, o presidente da República ameaça com mudanças que limitem a autoridade dos governadores sobre as polícias militares e civis, o que aumenta a incerteza sobre os rumos da segurança pública no país. Apesar da importância do tema, o Congresso Nacional e a própria sociedade evitam se envolver com afinco na solução desse impasse e “terceirizam” o problema para a bancada de deputados e senadores oriundos das corporações policiais.

Essas foram as principais conclusões do webinar “Polícia, política e segurança pública no Brasil”, realizado pela Fundação FHC e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “Que elementos poderiam estar numa lei orgânica das polícias que valessem para todo o país? O que deve ser definido a nível federal e o que é responsabilidade dos governos estaduais ou mesmo municipais? Como desenhar uma norma nacional que melhore o sistema sem prejudicar a autonomia das autoridades estaduais e que leve em conta as especificidades locais?”, perguntou o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, moderador do evento.

“Não faz sentido uma lei que reduza a autoridade dos governadores e engesse as inovações nos Estados, pois cada uma das 27 Polícias Militares e Civis existentes no país tem histórias e tradições distintas, além de problemas e desafios específicos”, disse o sociólogo Arthur Trindade, ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (NEVIS/UnB).

A convite do CDPP (Centro de Debates de Políticas Públicas), Trindade trabalha no momento em um projeto de lei orgânica para as polícias militares, em parceria com o também sociólogo Ignacio Cano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde fundou e coordenou o Laboratório de Análise da Violência (LAV).

“Iniciamos esse projeto com um processo de escuta, por meio de entrevistas com lideranças policiais. O que percebemos é que os policiais militares têm diversas demandas reprimidas que por muito tempo não tiveram um canal de expressão. Isso mudou com a eleição de um número cada vez maior de policiais e ex-policiais para o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas. É um fenômeno relativamente recente que tem um lado positivo, de fazer avançar as demandas de uma categoria profissional relevante, mas que, por outro lado, reforça o corporativismo, o que pode comprometer o bem comum”, disse Cano.

“Quem é o trabalhador ou a trabalhadora da segurança pública? É um profissional que lida todo dia com a possibilidade de matar alguém ou ser morto, que não tem direito a greve ou negociação coletiva e que se suicida três vezes mais. É também a segunda categoria que mais morre de Covid-19”, disse Lívio Rocha, investigador da Polícia Civil de São Paulo e ex-líder sindical.

“Esse estresse natural decorrente dos riscos da profissão leva os policiais a pouco refletirem sobre seu próprio trabalho e os torna mais facilmente influenciáveis por narrativas equivocadas”, continuou Rocha, que é pesquisador do Grupo de Segurança e Cidadania da Universidade Mackenzie. Segundo ele, os policiais são em geral pouco ouvidos pelos gestores do sistema e pela sociedade.

“O Brasil não faz a discussão da segurança pública com seriedade, não fizemos no período da redemocratização e continuamos não fazendo. Os próprios partidos políticos e seus representantes no Legislativo terceirizam a participação nas comissões de segurança pública aos parlamentares que são policiais ou ex-policiais. Já passou da hora de assumirmos uma responsabilidade conjunta em relação a algo que é tão fundamental para a população de todo o país”, disse Melina Risso, diretora de programas do Instituto Igarapé e coautora do livro “Segurança Pública para Virar o Jogo” (Companhia das Letras, 2018).

“A despeito dos grandes avanços dos últimos 30 anos em áreas como educação, saúde e assistência social, a Nova República (iniciada em 1985 com o fim do regime militar) fracassou na segurança pública. Alguns estados apresentam melhorias, com a redução de taxas de homicídios e letalidade policial, mas o cenário nacional não é bom. Pouco se caminhou na estruturação de um sistema de segurança pública integrado, na reforma da polícias e em uma governança efetiva. Esse tema não pode mais ser varrido para baixo do tapete”, disse Arthur Trindade.

Legislação incentiva entrada de policiais na política

Segundo o pesquisador, enquanto em outros países como Portugal e Chile há mecanismos que impedem a participação de policiais da ativa na política, a legislação brasileira incentiva esse fenômeno cada vez mais frequente. “Diferentemente de juízes e promotores, policiais com mais de dez anos de carreira não precisam abandonar a carreira para se candidatar a um cargo eletivo. Só se afastam se forem eleitos”, explicou.

“Hoje há cerca de 50 deputados policiais na Câmara dos Deputados e esse número é ainda mais significativo nas Assembleias Legislativas. A presença dessa categoria nos parlamentos não é necessariamente ruim, mas a pressão e as demandas desses deputados influenciam demasiadamente os rumos da segurança pública e das polícias”, disse Trindade. Ele também criticou a requisição de policiais para trabalhar em gabinetes de juízes, desembargadores e parlamentares, o que acaba resultando em falta de efetivos nas ruas.

Ignacio Cano lembrou que algumas demandas das polícias podem ser legítimas, como o mandato fixo do comandante geral. “Essa regra, já existente para os procuradores gerais, blindaria de certa forma as polícias militares da excessiva influência político-partidária. Já a escolha por lista tríplice precisa ser bem avaliada, pois pode aumentar o corporativismo”, disse.

É possível avançar com micro reformas

Melina Risso afirmou haver bastante espaço para melhorar as polícias sem a necessidade de complexas mudanças legislativas. “Não precisamos ficar engessados diante da dificuldade de aprovar uma reforma macro, pois micro reformas dentro das instituições poderiam trazer importantes resultados concretos a curto prazo”, afirmou a doutora em Administração Pública e Governo pela FGV.

Essas micro reformas deveriam focar sobretudo em uma agenda de valorização do policial: “É preciso mapear essa força de trabalho, definir bem as competências e o que se espera de cada profissional, de acordo com a sua função e o seu nível hierárquico. Que tipo de policial queremos e o que é preciso mudar na sua formação e no seu treinamento? Como valorizar o bom policial e com base em quais critérios?”, perguntou Risso.

Segundo a diretora do Igarapé, é importante que os policiais sejam constantemente avaliados e que os melhores sejam premiados ou promovidos, mas também é fundamental levar em consideração a qualidade da formação e do treinamento, que devem ser contínuos, e da estrutura e dos equipamentos disponibilizados para que ele realize seu trabalho, assim como suas condições de saúde física e mental. “O policial não é super-herói, ele tem fragilidades e problemas e, por estar muito exposto, precisa ter muito apoio”, afirmou.

“É importante lembrar também que segurança pública não é sinônimo de polícia. A polícia é fundamental, mas para combater a violência e a criminalidade é essencial investir fortemente na prevenção e na presença efetiva do Estado nas comunidades”, concluiu.

Lívio Rocha criticou o fato de o governo federal não ter utilizado as verbas destinadas ao Sistema Único Segurança Pública: “É preciso tirar o SUSP da gaveta e transformá-lo em realidade.”

Saiba mais:

Conheça o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo FBSP, cuja edição mais recente foi publicada em 15 de julho.

Leia o relatório “Investigações em labirinto: os caminhos da apuração das denúncias de violência policial apresentadas em audiências de custódia”, produzido pela Conectas em parceria com o IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

Ouça o episódio do podcast O Assunto, da jornalista Renata Lo Prete, que tem como tema “A Queda no Número de Assassinatos no Brasil”.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.