Debates
15 de maio de 2019

Segurança Pública e Crime Organizado: o país sabe como enfrentá-lo?

“O Estado brasileiro é sócio do crime organizado. Quem controla as prisões são as facções. Todos sabem disso, mas ninguém age para mudar essa realidade”, afirmou Raul Jungmann, ex-ministro extraordinário da Segurança Pública

O Brasil vive um “federalismo acéfalo” na segurança pública, com a ausência histórica de uma estratégia nacional para enfrentar a criminalidade, principalmente o crime organizado, que domina o sistema penitenciário brasileiro e opera a partir dele. Cerca de 70 facções criminosas atuam nos presídios e têm à sua disposição um exército de jovens encarcerados, que é facilmente aliciado por elas e só aumenta a cada ano, retroalimentando o ciclo de violência.

“Objetivamente o Estado brasileiro é sócio do crime organizado, pois, embora o Estado seja detentor do sistema prisional, quem de fato controla as prisões são as facções. Todos sabem disso, mas ninguém age para mudar essa realidade.”
Raul Jungmann,  ex-ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019)

O quadro acima foi descrito pelo ex-ministro da Defesa (2016-2018) e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública (2018-2019) Raul Jungmann, em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Nela, apresentou grande número de dados que mostram ser insustentável o enfrentamento da criminalidade nos moldes como é feito hoje no Brasil.

“Elaboramos um plano de segurança para os próximos dez anos que, se for implementado, pela primeira vez a União será responsável por definir o rumo do combate à violência em âmbito nacional  e trabalhará em conjunto com estados e municípios, com metas bem definidas. Além disso, todos os entes federativos deverão produzir dados, que serão reunidos em um relatório anual entregue ao Congresso Nacional”, afirmou.

Segundo o palestrante, durante os dez meses em que esteve à frente do Ministério Extraordinário da Segurança Pública – criado pelo ex-presidente Michel Temer em fevereiro de 2018 e fundido ao Ministério da Justiça no início do governo Bolsonaro -, houve importantes avanços institucionais:

  • Estruturação do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP;
  • Criação do Conselho Nacional de Segurança Pública;
  • Criação da Política Nacional de Segurança Pública;
  • Definição de Recursos permanentes para Segurança Pública;
  • Criação do Programa Nacional para egressos do sistema prisional.

Entre os números apresentados, um deles chamou especial atenção: os custos econômicos da criminalidade no Brasil (incluindo gastos com segurança pública e privada, prisões, seguros, perdas materiais e de capacidade produtiva) atingiram R$ 300 bilhões em 2014 e pouco menos do que isso no ano seguinte.

‘Atual modelo é insustentável’

A população encarcerada cresceu 8,3% ao ano no último quinquênio. Se for mantida essa taxa, o número de presos duplicará até 2025, dos atuais 777 mil (3ª maior do mundo) para 1,47 milhão. A gravidade da situação se torna ainda mais clara quando se leva em conta que o país apresenta atualmente um déficit de 360 mil vagas no sistema prisional (há disponibilidade de apenas 370 mil vagas) e existem 580 mil mandados de prisão não cumpridos.

Para zerar o déficit, seria preciso construir mais 460 unidades prisionais em todo o país imediatamente, mas, para dar conta do aumento da população prisional previsto até 2025, seriam necessárias 1.290 unidades adicionais, a um custo de R$ 62 bilhões. “Este rumo não é sustentável em nenhum aspecto”, disse Jungmann, que atualmente é membro consultivo do Conselho Nacional de Justiça.

Omissão histórica

“Desde a 1ª até a 7ª Constituição brasileira, promulgada em 1988, a segurança pública nunca esteve na alçada do governo central. As consequências desta omissão histórica são amplas e profundas, como (mostra) o fato de não termos nem mesmo estatísticas oficiais de criminalidade em nível nacional. Como é possível definir uma política pública sem dados?”, falou Raul Jungmann.

Segundo o ex-ministro, diante da falta de competência constitucional da União na área de segurança pública, os estados não se sentem obrigados a compartilhar informações com o governo federal ou mesmo entre eles. “Ainda bem que temos ONGs como Fórum de Segurança Pública e Sou da Paz, entre outras, que há muitos anos jogam luz sobre o problema”, disse.

Segurança pública e desigualdade

“Os jovens homens de 15 a 24 anos que vivem nas periferias, têm baixa renda e baixa escolaridade, matam e morrem duas vezes mais do que a média nacional. Também são eles que acabam indo parar nos presídios, onde são obrigados a entrar para uma facção. Quem não fizer juramento, morre.” Raul Jungmann

As estatísticas revelam que a persistente desigualdade brasileira se manifesta de forma dramática na segurança pública: 55% dos brasileiros privados de liberdade têm até 29 anos de idade, a maioria é negra e cresceu em famílias desestruturadas nas periferias de grandes cidades. 

Entre os presos, 89% não têm educação básica completa e apenas 1% deles têm ensino superior completo ou incompleto; 292 mil pessoas (42% do total) estão detidas sem terem sido condenadas e apenas 12% (75 mil dos 777 mil) têm acesso a algum tipo de educação nas prisões. Menor ainda é o percentual (15%) dos que têm algum tipo de trabalho.

“A violência transita das periferias para os presídios e vice-versa. Esta é a realidade, mas algum presidente, governador, senador ou deputado foi eleito recentemente propondo mudanças no sistema prisional? Quem se atrever a fazer isso será massacrado pela opinião pública”, criticou o ex-ministro, para quem o sistema de Justiça está falido.

“Nossa justiça é punitiva, mas não cumpre sua missão de ressocializar aqueles que estão presos. Os jovens saem das prisões estigmatizados, sem educação e sem qualificação profissional e, como consequência, o nível de reincidência no crime é de até 70%”, afirmou.

5 ações

Para o palestrante, as estatísticas disponíveis mostram que 50% dos homicídios ocorrem em cerca de 130 cidades brasileiras e é neste universo que as autoridades nos três níveis de governo deveriam atuar prioritariamente. “Já sabemos quais são os grupos mais vulneráveis e onde eles estão. O foco deve estar nos jovens em situação mais precária, (a serem alcançados) por meio de uma política articulada que inclua educação de qualidade, assistência social, esportes, formação profissional, emprego e, claro, uma polícia que trabalhe próxima à comunidade. Taí uma bela política de segurança pública”, disse.

O ex-ministro da Segurança Pública priorizou 5 ações:

  • Implantação do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) e da Política Nacional de Segurança Pública;
  • Criar programas de prevenção social para a juventude nos territórios mais vulneráveis: “Ou somos capazes de desenhar programas que atinjam a juventude em situação mais precária ou não há solução para a violência e a criminalidade”;
  • Revisão da política de combate às drogas: “A legislação antidrogas não define quem é traficante e quem é apenas usuário e deveria receber tratamento em vez de ir para a prisão”;

  • Revisão dos sistemas de Justiça e prisional, com digitalização de processos e adoção de penas alternativas sempre que possível para reduzir o encarceramento;
  • Novo modelo de polícias: não política, não corrupta e com foco em evidências, inteligência e integração.

Recursos da loteria contribuirão para financiar o novo SUSP, passando dos R$ 800 milhões destinados em 2018 aos R$ 4,3 bilhões previstos em 2022. Pelo menos metade  dessa quantia será destinada aos estados, com a contrapartida da assinatura de contratos de gestão colaborativa. Também foi alterado o estatuto do BNDES para que o banco público possa operar na segurança pública, por meio de um fundo de R$ 42 bilhões para estados e municípios investirem em produtos de segurança e convênios para a construção de presídios.

“Não é impossível reduzir a violência e derrotar o crime organizado com base na racionalidade. Do contrário, pagaremos um preço cada vez mais alto em termos de perdas de vida, principalmente dos mais jovens, e colocaremos em risco conquistas fundamentais das últimas décadas como a democracia, o Estado de direito, a proteção aos direitos humanos e o combate à desigualdade social”, concluiu o palestrante.

“Em sua apresentação hoje, o ministro Jungmann deu concretude a um problema gravíssimo que ainda não tivemos a coragem de enfrentar para valer, em toda sua complexidade. Não adianta apenas reprimir. É preciso prevenir e atacar com firmeza as origens do problema, de forma articulada entre os três poderes e os três níveis de governo, com participação de toda a sociedade. Já passou da hora de fazermos isso”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao final da apresentação.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.