Debates
10 de junho de 2022

Os desafios na implementação do novo Marco Legal do Saneamento

Em 2033 termina o prazo para que se atinjam as ambiciosas metas de assegurar água potável a 99% e esgotamento para 90% dos domicílios brasileiros.

Regulamentação pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) e incorporação das novas regras pelos operadores atuais e futuros; integração entre as diferentes áreas do saneamento básico, que normalmente trabalham sem qualquer sinergia; melhor distribuição de competências entre a União, os estados e os municípios; e uma regionalização que não seja imposta de cima para baixo e faça sentido do ponto de vista geográfico e socioeconômico.

Estes são os principais desafios da implementação do Marco Legal do Saneamento, que entrou em vigor em 2020 com as ambiciosas metas de assegurar água potável a 99% e esgotamento a 90% dos domicílios brasileiros até 2033. Fazer um balanço da Lei n° 14.026, que instituiu o marco, e projetar os desafios de sua implementação foram os objetivos deste webinar realizado pela Fundação FHC.

“A engenharia institucional proposta pelo marco é um modelo que poderá ser mimetizado por outros campos que também necessitam de maior integração entre as unidades federativas, como saúde e educação. Nesse sentido, a implementação do marco será um bom laboratório”, disse o ministro Gilmar Mendes, que há muitos anos tem se dedicado ao tema do saneamento básico no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Como vencer décadas de atraso e séculos de negligência que fazem com que a maioria dos brasileiros não tenha acesso a tratamento de esgoto, sobretudo os mais pobres? Ao derrubar a muralha que existia entre o público e o privado, o marco traz grandes oportunidades empresariais, mas também de políticas públicas que, de fato, atendam à população”, disse o economista Gesner Oliveira, professor da FGV, coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura & Soluções Ambientais (FGVceisa) e sócio da GO Associados.

“O Marco Legal do Saneamento, que determina a contratação por meio de licitação centrada na igualdade de condições entre os atores público e privado, é uma lei bastante sofisticada, cuja implementação é complexa. É preciso um trabalho em conjunto entre a ANA, a quem cabe estabelecer a uniformidade regulatória, e os operadores para nos anteciparmos às dificuldades e evitarmos uma judicialização”, afirmou Christianne Dias Ferreira, que foi diretora presidente da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico de 2018 a 2022 e atualmente é sócia do grupo VALLYA Building Trust e doutoranda em Direito pelo UniCEUB.

Brasil tem potencial para ser o país da reciclagem 

“O Brasil pode ser um grande reciclador, o que abriria oportunidades de trabalho para milhões de brasileiros. Já existem vários projetos bem-sucedidos que podem ser ampliados e replicados. Além disso, o tratamento adequado do esgoto, o reúso da água e o manejo adequado dos resíduos sólidos urbanos produzem energia renovável limpa e altamente rentável e contribuem para termos uma matriz energética ainda mais limpa do que a que temos hoje. Se somarmos a isso um esforço de preservação da nossa biodiversidade, temos tudo para nos tornar uma potência ambiental global, o que seria uma importante vantagem comparativa no século 21”, afirmou Gesner Oliveira.

“O ciclo da água e do esgoto, por exemplo, possibilita produzir fertilizantes orgânicos e combustíveis renováveis, como o biometano. Há uma avenida de oportunidades, que só depende de tecnologia, inovação e investimento”, disse Gesner, que presidiu a Sabesp de 2007 a 2011. Como exemplo de projeto bem-sucedido, ele citou o Aquapolo Ambiental, em São Paulo, o maior empreendimento de reúso industrial da água na América do Sul.

Ele defendeu uma integração maior dos quatro segmentos do saneamento básico – água, esgoto, drenagem e manejo de resíduos sólidos urbanos. “Essas quatro áreas se completam, mas hoje operam de maneira separada e pouco se comunicam. São tribos diferentes, players diferentes. É possível integrar para otimizar”, disse.

A nova lei do saneamento estabelece um novo tripé baseado em regulação, competição e eficiência, explicou o doutor em economia pela University of California, Berkeley: “É o que faltava para o investimento privado deslanchar. Vemos hoje um grande apetite por parte das empresas e dos fundos de investimento no setor, que nos últimos anos recebeu mais recursos do que o de telecom.”

Contudo, para atingir a universalização daqui a 11 anos, será preciso triplicar os recursos investidos em água e esgoto, saltando dos atuais R$ 14 bilhões para R$ 47 bilhões por ano, disse o palestrante. Veja sua apresentação, com números detalhados, na seção Conteúdos Relacionados (à direita desta página).

De acordo com os dados apresentados, há muito a avançar nas outras áreas: o país trata apenas 2% dos resíduos sólidos urbanos, quando o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (2010) previa atingir o percentual de 20% em 2015. A Alemanha e a Coreia do Sul, por exemplo, reciclam mais de 50% dos resíduos sólidos urbanos.

“A drenagem de água então é um caos. Dois terços dos municípios não têm sequer mapeamento das áreas de risco, não investem um centavo em drenagem e não existem linhas de financiamento específicas para isso. O resultado é que, em 2020, foram aplicados apenas R$ 3 bilhões em drenagem. Pelos nossos cálculos, seriam necessários R$ 22 bilhões anuais”, disse Gesner.

“O marco traz otimismo e esperança, mas para atingirmos a universalização todos os envolvidos, tanto no setor privado como no público, precisarão agir com uma verdadeira obsessão. Ou não atingiremos as metas”, concluiu.

Formação de blocos regionais: o que deu errado?

A aglutinação de municípios próximos e com condições geográficas e socioeconômicas similares para licitar projetos de saneamento básico em conjunto foi uma das ideias incluídas na fase final da criação do Marco Legal. Porém, embora seja vista pelos especialistas como necessária, na realidade ainda tem se mostrado um gargalo no processo de implementação da lei.

No Estado de São Paulo, por exemplo, apenas 3% dos municípios aderiram a um dos blocos propostos. “O que deu errado?”, perguntou o mediador do evento, Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC.

“Essa aglutinação tem acontecido muitas vezes a fórceps, quando o ideal seria que houvesse acordo entre os municípios, mas isso nem sempre acontece. O marco estabeleceu o prazo de um ano para a concretização dessa regionalização e um decreto recente ampliou esse prazo, dando uma sobrevida a esse processo e permitindo correções e ajustes”, respondeu Christianne Dias Ferreira, ex-presidente da ANA, hoje atuando na iniciativa privada e como acadêmica.

“O desenho desses blocos deve se basear em critérios técnicos. Minas Gerais tem sido um bom exemplo nesse sentido. Mas há também uma ação política. Os governadores têm um papel importante no sentido de convencer os prefeitos. Esse trabalho de formiguinha é muito importante. Tem muito jogo para acontecer ainda”, explicou.

Christiane, que possui ampla experiência na administração pública, também destacou a necessidade de uma aplicação paulatina do novo marco, de maneira a possibilitar que os atuais operadores, com contratos ainda vigentes, possam se adaptar às novas normas sem prejuízos financeiros e operacionais. “Não é porque sai uma norma que imediatamente o operador será obrigado a internalizá-la. Isso seria inviável economicamente e praticamente”, disse.

“Esta é uma questão que me preocupava quando eu era presidente da ANA, pois tem a ver com o respeito a contratos já celebrados e, portanto, com a segurança jurídica. A uniformidade regulatória deve ser implementada de forma gradual pela ANA, de maneira que os operadores atuais possam se adaptar. As normas devem ser pensadas com razoabilidade e ponderação para que tragam uniformidade a médio e longo prazo sem criar conflitos a curto prazo”, defendeu.

A palestrante também chamou atenção para o fato de diversas leis estaduais estarem em desacordo com o novo marco legal: “Em alguns estados, a lei prevê que os contratos de saneamento podem ser feitos por licenciamento ou contratação direta, sendo que o marco regulatório é claro no sentido de que deve haver licitação. Para evitar uma explosão de casos de judicialização, a União deve capacitar e apoiar os estados e municípios, trabalhando junto com governadores e prefeitos. Isto é federalismo cooperativo”, disse.

Um novo modelo de responsabilidade social

O ministro do STF Gilmar Mendes defendeu a necessidade de o país discutir um estatuto de responsabilidade social que resulte em uma articulação melhor entre União, Estados, Municípios (e microrregiões) no sentido de, juntos, atenderem melhor às necessidades básicas da população.

“Estou convencido da necessidade de maior clareza na distribuição de competências administrativas. Isso precisa estar detalhado de maneira mais clara no texto constitucional. Esta reforma institucional é importante para estimular uma melhor integração federativa”, disse o professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Ele lembrou que o Supremo já tomou decisões nesse sentido, como no caso da ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 1.842 (2013), em que, a partir de uma questão surgida no Rio de Janeiro, o STF definiu que serviços públicos comuns aos municípios de regiões metropolitanas, como saneamento básico e transporte, devem ser geridos por um conselho integrado pelo Estado e pelos municípios envolvidos, mas levando em conta também a realidade das regiões metropolitanas e microrregiões.

“Naquele caso, propusemos uma engenharia institucional que posteriormente teve um importante avanço com o Marco de Saneamento. É preciso reconhecer as regiões metropolitanas e as microrregiões como entes e dar formato mais institucional a esse modelo”, disse Gilmar.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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