Debates
15 de setembro de 2021

A tese do marco temporal e o PL 490: duas faces da mesma estratégia antidireitos indígenas

Entenda o PL 490 e suas consequências não apenas para os povos indígenas, mas também para o Brasil.

“Temos pressa. Acreditamos que o Supremo vai reafirmar os direitos dos povos indígenas e rejeitar a tese do marco temporal, que, se aceita, impactaria diversas terras indígenas pendentes de demarcação.Os defensores do marco afirmam que ele traria segurança jurídica. Mas para quem? Para os povos indígenas, com certeza não. Para os exploradores de sempre, sim”, disse o advogado Luiz Eloy Terena, coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que defendeu o ponto de vista dos povos indígenas no julgamento em curso no STF.

“O que falta fazer em termos de demarcação de terras indígenas é perfeitamente factível. Das 725 terras indígenas identificadas pela Funai, 487 já tiveram a homologação presidencial consolidada, o que equivale a 67%. Faltam apenas 33%, ou 238 casos”, afirmou Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA (Instituto Socioambiental). “É do interesse de toda a população brasileira que esse processo determinado pela Constituição de 1988 seja concluído o mais rapidamente possível, pois não há espaço em um Brasil democrático e que almeja atingir um desenvolvimento sustentado para índios sem terra acampados à beira de estradas.” Santilli foi um dos negociadores do capítulo dos direitos indígenas na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88).

“Segundo o artigo 231 da Constituição, os indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. São direitos da pessoa humana, plenos e irrevogáveis, sem data para começar ou terminar. E, portanto, superiores a qualquer direito patrimonial”, disse a procuradora da República Deborah Duprat, que foi Vice-Procuradora-Geral da República de 2009 a 2013 e tem longa trajetória na defesa dos direitos humanos.

Terena, Santilli e Duprat participaram do webinar “A tese do marco temporal e o PL 490: duas faces da mesma estratégia antidireitos indígenas”, realizado pela Fundação FHC em 15 de setembro de 2021, quando o julgamento da tese do marco temporal no Supremo foi suspenso após o ministro Alexandre de Moraes pedir vista.

Entenda a polêmica em torno do marco temporal

A tese do marco temporal, hoje defendida por grupos contrários à demarcação das terras indígenas, tem origem em uma decisão do STF de 2009, quando a máxima corte do país decidiu a quem pertenceria o direito à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na ocasião, os ministros argumentaram em favor da população indígena, alegando que eles estavam lá quando foi promulgada a Constituição, em 5 de outubro de 1988. Como explica o site Poder360, se naquele caso a tese foi favorável aos povos originários, abriu-se um precedente para a argumentação em contrário, ou seja, de que os indígenas não poderiam reivindicar como suas terras que não estivessem ocupando em 1988.

O julgamento concreto do caso Raposa Serra do Sol criou o ensejo para um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), em 2017. É que, no acórdão publicado por ocasião da decisão do Supremo, o então ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito introduziu “salvaguardas institucionais”, entre elas a tese do marco temporal. A discussão passou a ser se essas salvaguardas teriam repercussão geral ou ficariam restritas àquele caso concreto. A AGU quis dar validade geral à tese, o que ia além da sua esfera de competência. Criou-se uma tremenda incerteza jurídica. Daí o STF foi provocado a deliberar sobre a validade ou invalidade geral do marco legal. Atualmente, há cerca de 30 processos de demarcação aguardando uma definição do STF. Entre eles, o da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ, em Santa Catarina, que é o caso que está sendo julgado agora no Supremo.

Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 490/2007, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), que visa alterar o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil. O texto determina que são terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988. Ou seja: passaria a ser necessária a comprovação da posse da terra no dia da promulgação da Constituição Federal. Pela legislação atual, não há necessidade de comprovação de posse em data específica.

O PL 490 proíbe ainda que terras demarcadas previamente sejam ampliadas e prevê a flexibilização do contato com povos isolados, abre portas para a mineração e aproveitamentos hídricos nas terras indígenas e, não menos importante, transfere para o Congresso a palavra final sobre a aprovação ou não de demarcações de terra. Ou seja, mesmo que o STF derrube a tese do marco legal, o PL 940 pode fazer estragos.

Santilli: ‘Congresso deve consolidar resgate de dívida histórica’

“Esse projeto de lei é uma bala na agulha que a bancada ruralista colocou no Congresso e representa hoje a principal ameaça aos direitos indígenas. Em vez de estimular medidas que visam obstaculizar e retardar as demarcações de terras ainda pendentes, os parlamentares deveriam garantir que esse processo seja concluído o quanto antes, consolidando assim o resgate de nossa dívida histórica com os povos indígenas”, disse Santilli. Segundo o ex-presidente da Funai (1995-96), o presidente Jair Bolsonaro descumpre a Constituição Federal, ao se recusar a homologar terras indígenas já identificadas pelo órgão.

Terena: ‘Luta não só com arco e flecha, mas com caneta e leis’

“Faço parte de uma geração de jovens indígenas que deixou as aldeias e foi para as universidades. De direito, de antropologia, de medicina. Isso não foi à toa. Foram os caciques que entenderam a importância de fazer a luta não só com arco e flecha, mas também com a caneta e as leis. Por meio do nosso trabalho, estamos devolvendo à nossa comunidade tudo o que ela nos deu desde sempre. Se o PL 490 for aprovado na Câmara e no Senado, nós vamos derrubá-lo no Supremo Tribunal Federal”, disse Eloy Terena, que, além de ser formado em direito, é doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e tem pós-doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, Paris).

Duprat: ‘Quem avalia o direito de posse é o antropólogo’

“Para o leigo, não pode dar a impressão de que os relatórios dos  antropólogos, que servem de base ao trabalho de identificação das terras indígenas feito pela Funai, com frequência tem um viés favorável aos indígenas, sobretudo no caso de regiões exploradas há séculos por pequenos ou médios agricultores. Há de fato casos controversos? Como separar o joio do trigo?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC e mediador da conversa.

Segundo Eloy Terena, é a antropologia que deve fornecer os elementos para identificar a posse tradicional de um determinado território. “A tese do marco temporal é racista porque tenta implementar um critério único de determinação da posse que não corresponde às tradições indígenas. Tem povo que é coletor, tem povo que caça, tem povo que pratica a agricultura. Uns são nômades, outros vivem em um só lugar. Tem terra que é usada para atividades produtivas, tem terra que é usada para a proteção da floresta e dos rios e para a reprodução da fauna e da flora, tem terra que é dedicada a práticas religiosas e funerárias. Só a antropologia pode compreender essas formas de utilização de acordo com os usos e costumes das populações indígenas originárias”, afirmou o advogado e antropólogo.

“Laudo tem que ser feito por especialista na área. Quando a questão é de saúde pública, o correto a se fazer é chamar um médico ou sanitarista. Quando é uma questão jurídica, um profissional do direito. Na hora de avaliar o direito de posse de um território de acordo com os usos, as tradições e os costumes, o correto é chamar um antropólogo”, afirmou Deborah Duprat.

“Claro que há pessoas de boa fé que são confrontadas ou mesmo prejudicadas durante processos de demarcação. Neste caso, o Estado deve buscar a solução mais justa possível, que pode ser o reassentamento em outro lugar ou o pagamento de indenização. O que não é aceitável é desprover a população indígena de seus direitos originários reconhecidos pela Constituição”, explicou Márcio Santilli.

Segundo o sócio-fundador do ISA, “durante a análise de um processo de demarcação pela Funai a qualquer momento uma terceira parte pode se manifestar e, no caso de o órgão decidir favoravelmente, existe um prazo legal de 3 meses para contestação.”

“De acordo com o Decreto 1.775, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, as demais partes envolvidas ou interessados participam desde o início e, inclusive, podem apresentar seu próprio laudo. Ao final, todas as informações que integram o processo serão analisadas pelo presidente da Funai e depois pelo ministro da Justiça. Se ambos decidirem pela demarcação, cabe ao presidente homologar”, explicou Duprat.

“O ponto de partida, em casos identificados para demarcação, é que aquele território é indígena. O Estado pode definir algum tipo de indenização àqueles que eventualmente tiverem de sair das terras, quando considerar isso justo. Mas este é um outro processo, que não inibe de forma alguma os direitos territoriais plenos dos indígenas”, continuou a Vice-Procuradora-Geral da República de 2009 a 2013, tendo ocupado interinamente o cargo de Procuradora-Geral.


Saiba mais

Assista a entrevista com a líder indígena Sônia Guajajara, coordenadora executiva Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, sobre o Projeto de Lei 490.

Ouça o episódio do podcast Sem Precedentes, do site JOTA, sobre o marco temporal e a demarcação de terras indígenas.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.