O STF e a PGR no teste de estresse da democracia brasileira
Neste webinar, conversamos com Cezar Peluso, ministro do STF entre 2003 e 2012, e Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República entre 2017 e 2019.
O Supremo Tribunal Federal tem cumprido seu papel de ser o “último reduto de defesa da cidadania, das minorias e da democracia”, como determina a Constituição Federal, mas deve “praticar mais a autocontenção” e “calar diante de certas provocações”, manifestando-se apenas na hora de decidir. “Gostaria que o Supremo fosseo ‘Grande Mudo’, como nos Estados Unidos”, disse o ex-ministro Cezar Peluso, que presidiu a Corte de 2010 a 2012.
Já o Ministério Público Federal, cujo órgão máximo é a Procuradoria Geral da República, tem lançado mão de suas “garantias de magistratura, autonomia e independência funcional” para impulsionar o cumprimento da Constituição de 1988, mas deve investir mais em “transparência, celeridade e proporcionalidade”. “O MPF erra sempre que age por interesse diferente daquele que é a sua missão constitucional, quando não observa o devido processo legal, não investiga adequadamente ou a acusação não é bem feita”, disse Raquel Dodge, ex-procuradora-geral da República (2018-2019).
A convite da Fundação FHC e do JOTA, Raquel Dodge e Cezar Peluso participaram do webinar “O STF e a PGR no teste de estresse da democracia brasileira”, com mediação de Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, e perguntas de Kalleo Coura, editor-executivo do JOTA.
“O Brasil, apesar dos avanços pós-democratização, se defronta com dois graves problemas: uma brutal desigualdade socioeconômica e a incapacidade dos agentes políticos de resolver problemas crônicos e definir um rumo claro para o país. Ninguém com isenção, objetividade e tranquilidade pode arguir que o Supremo tenha contribuído para criar ou agravar essa situação, mas devemos reconhecer que a Corte tem seus defeitos”, disse Peluso, ao iniciar sua fala.
Questionado sobre as mudanças no funcionamento do Supremo que ele considera necessárias, o ex-ministro sugeriu três:
- Limitar a competência do STF (e de outros tribunais superiores) como instância máxima de todo tipo de processo judicial, medida proposta por ele há mais de dez anos por meio da chamada Emenda Peluso – “Não precisamos de quatro instâncias decisórias, como ocorre hoje, atrasando em demasia o trâmite de processos judiciais. O Supremo deve dar a última palavra sobretudo em questões constitucionais, embora, à luz da minha experiência, eu não abriria mão de sua competência em matéria penal, pois o tribunal tem feito justiça em alguns casos aberrantes”;
- Acabar com as transmissões ao vivo das sessões pela TV Justiça – “A chance de isso acontecer é mínima, mas pela minha experiência sei que, quando televisionadas, as pessoas passam a se comportar como atores ou atrizes, o que no STF se traduz em votos muito longos, que buscam mostrar erudição e conhecimento, e debates acalorados entre os ministros, o que concorre para desgastar a respeitabilidade do órgão”;
- O STF deveria assumir o papel de ‘Grande Mudo’ – “Mais do que uma proposta de mudança legal, é um apelo: os ministros devem evitar entrar em polêmicas ou responder a determinadas críticas, pois isso apenas dilata crises e põe a Corte em situação difícil. Se calassem e se pronunciassem apenas ao decidir, ajudariam a reduzir o grau de conflitividade que vivemos hoje no país.”
‘Tentações messiânicas’
Segundo Peluso, o Supremo tem a atribuição constitucional de resolver conflitos entre os dois outros poderes da República – “Diferentemente do que alguns erroneamente afirmam, este papel não é de algum poder moderador como as Forças Armadas, mas do STF” – “mas deve evitar cair em tentações messiânicas, ao interferir indevidamente em políticas governamentais ou no trabalho legislativo ou tentar ser intérprete de aspirações nacionais”.
Como exemplos de situações em que o STF teria extrapolado, o magistrado citou a decisão de aplicar retroativamente a Lei da Ficha Limpa, o vai-e-vém no início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado e a criminalização da homofobia por analogia à lei contra o racismo. O antídoto para esse messianismo, segundo ele, é o exercício da autocontenção.
“O STF tem cumprido seu papel de ser o último reduto de defesa da cidadania, das minorias e da democracia”, disse o ex-ministro Cezar Peluso.
Embora tenha dito que se fosse presidente do STF teria ordenado à Polícia Federal a abertura de investigações – em vez de apelar ao artigo 43 do Regimento interno da Corte originário do período da ditadura –, Peluso manifestou apoio ao inquérito das fake news em curso no Supremo, sob a condução do ministro Alexandre de Moraes.
“A abertura desse inquérito foi a última tentativa de diminuir a pressão sobre o Judiciário e o Supremo, em particular, por parte de certos grupos, já que ninguém tomava providência, nem mesmo o Ministério Público. Restou ao Supremo exercer essa função importantíssima de defesa das estruturas e das instituições do estado democrático de direito”, afirmou.
“Alguém tem que ter a prerrogativa de errar por último. A Constituição decidiu que essa prerrogativa é do Supremo Tribunal Federal”, concluiu.
‘A melhor Constituição que o Brasil já teve’
“A Constituição de 1988 é a mais próxima da realidade brasileira, por ser fruto de uma Assembleia Constituinte com a participação de diferentes segmentos da sociedade, todos com direito a voz e a influir na elaboração das normas. Não foi, como outras em nossa história, fabricada por uma elite em um ambiente fechado para impor sua visão de país”, disse Raquel Dodge, que foi procuradora-geral Eleitoral e presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal, sendo a primeira mulher a ocupar essas posições.
Segundo a procuradora, a Carta em vigor propõe um “pacto forjante de uma nação plural, multiétnica e multirreligiosa” e estabelece como eixo “a centralidade dos direitos humanos fundamentais” – não apenas os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais. “Ela determina claramente que nenhum grupo social tem preponderância sobre o outro e propõe que haja uma convivência justa e solidária dentro da sociedade brasileira”, disse.
Dodge lembrou que a Constituição define três poderes – um que faz as leis, um que executa as leis e um que resolve conflitos – mas percebe a necessidade de uma instituição que dê impulso à atuação dos poderes, garantindo assim que as garantias constitucionais saiam do papel e sejam executadas. “Esta instituição é o Ministério Público, que tem a função de promover a própria Constituição, defender a democracia e os direitos humanos, sobretudo o das minorias, e fazer funcionar o sistema de freios e contrapesos entre os três poderes”, disse.
“Se o Congresso Nacional aprovar uma lei ordinária inconstitucional, o Ministério Público da União pode arguir isto no Supremo Tribunal Federal. Se o Executivo não faz uma política pública que esteja de acordo com os princípios democráticos e a lei, o MPF pode criticar essa política pública e levá-la ao conhecimento do Judiciário”, explicou.
“Alguns sugerem que se está politizando a Justiça ou judicializando a política, mas a Constituição, por ser abrangente e profunda e estar conectada à complexa realidade brasileira, percebe que muitos de nossos conflitos dificilmente serão resolvidos no curto/médio prazo se apenas as forças sociais e políticas continuarem atuando”, afirmou. Segundo Dodge, é possível aprimorar o funcionamento das instituições – sejam elas do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário –, mas é fundamental preservar o modelo de governança definido pela Constituição.
‘Estado Democrático de Direito não está em discussão’
“Em um período em que a democracia está em xeque em diversos países do mundo, alguns propõem uma profunda reforma da Constituição ou mesmo sua substituição. Mas o que se pretende quando falamos de reforma do Supremo ou do Ministério Público? A quem interessa essas mudanças? Elas fortalecem a democracia e os direitos fundamentais? Ajudam a construir uma sociedade menos desigual e mais solidária?”, perguntou Raquel Dodge.
“É preciso ter clareza se a crítica é ao modelo ou ao funcionamento das instituições. Se for ao funcionamento, devemos estar abertos ao debate com o conjunto da sociedade, de forma a desatar os nós, com transparência e de forma construtiva. Mas o Estado Democrático de Direito não está em discussão”, afirmou.
Dodge reconheceu que a lentidão da Justiça nutre a desconfiança da população em suas instituições, incluindo o Ministério Público (da União e os estaduais): “Os brasileiros, sobretudo os que têm menos recursos, se perguntam ‘por que meu processo não anda?’, ‘por que aquele caso andou mais rápido?’. A cultura brasileira é pouco afeita à crítica, mas ela faz avançar. A realidade muda e as instituições democráticas devem servir à realidade e ajudar a melhorá-la. Para isso, devem se aperfeiçoar constantemente”, disse.
Assim como Peluso, Dodge disse ser favorável ao fortalecimento das decisões de primeira instância, com a consequente redução dos recursos que chegam ao STF. “Se temos muitas instâncias recursais, ninguém confia na decisão do juiz de direito ou em uma ação de um promotor de Justiça. Um processo só deve subir para instâncias superiores quando tiver impacto social relevante ou for necessário definir uma jurisprudência. A legislação já possui filtros para evitar o excesso de recursos, devemos aplicá-los com maior rigor”, disse.
Por fim, defendeu a prerrogativa do procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União, de arquivar inquéritos quando considerar não haver provas para sua instauração.
“A Constituição de 1988 reforçou o poder dos Ministérios Públicos Federal e estaduais, mas definiu uma estrutura e um modelo de funcionamento que impede a concentração de poderes na cúpula desses órgãos. Também a Lei Orgânica do MPF transferiu diversos poderes do procurador-geral para câmaras com poderes específicos. Mas, se o procurador-geral perder a prerrogativa de arquivar inquéritos, ele deixa de ser procurador-geral. Assim como o STF dá a última palavra em processos judiciais, o procurador-geral deve ter a última palavra na instauração de inquéritos no âmbito do MPF. Junto vem o ônus histórico. Se e quando errar, deverá dar respostas à nação”, concluiu.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.