Os direitos humanos sob ataque: como resistir a retrocessos e retomar a iniciativa?
Neste webinar, conversamos com quatro estudiosos e ativistas dos direitos humanos de diferentes gerações para responder esta e outras questões.
Em setembro de 2021, completaram-se 25 anos do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos. Desde a redemocratização, o tema vem sendo um divisor de águas na política do país, e suas conquistas das últimas décadas tornaram-se um dos principais alvos do bolsonarismo. Os direitos humanos estão em crise enquanto “gramática” — apropriada cada vez mais por grupos conservadores — e enquanto “utopia de transformação social”, revelando aspectos de uma democratização incompleta no Brasil. Como atualizar e avançar nesta agenda? Quais são as suas novas fronteiras?
A Fundação FHC convidou quatro nomes para discutir esses desafios e seus possíveis desdobramentos no futuro — Denise Dourado Dora, advogada e diretora regional da ARTIGO 19; Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito SP e professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos; Paulo Sérgio Pinheiro, professor do departamento de Ciência Política da USP e presidente da Comissão Independente Internacional da ONU; e Thiago de Souza Amparo, advogado e professor da FGV Direito SP e da FGV Escola de Relações Internacionais, além de colunista da Folha de S.Paulo.
“Muitas pessoas devem se perguntar: como é que chegamos até aqui? O que está acontecendo com o Brasil? Onde é o final do túnel, o fundo do poço?”, disse Denise Dourado Dora, abrindo o evento. “Revelou-se um Brasil profundo e extremamente violento, racista e desigual, que aceita a ideia de que há pessoas merecedoras de direitos, cuidados e proteção do Estado, e outras que podem ser atacadas e mortas”.
A gramática dos direitos humanos no Brasil
“Os direitos humanos estabelecem uma espécie de gramática de justiça para a sociedade, que tem como primado que todas as pessoas devem ser objeto de igual respeito e consideração. Esse campo vive em constante tensão em uma sociedade que se estrutura a partir de uma ordem hierarquizada, discriminatória, e na qual a violência foi sempre o meio de solução de conflitos”, explicou Oscar Vilhena.
O diretor da FGV Direito SP argumentou que o fim do regime militar não significou o início da universalização dos direitos humanos no Brasil, e que diversos enclaves autoritários persistiram e promoveram esse tensionamento. “Bolsonaro não é uma invenção de hoje, o discurso antidireitos humanos existe desde o primeiro momento da redemocratização. A insuficiência de avanços na questão da desigualdade social e da segurança pública, por exemplo, abriu muitas arestas e espaços que foram explorados por grupos radicais e contrários aos direitos humanos”, colocou.
“Conseguimos construir uma política de Estado de direitos humanos, especificamente a partir do governo FHC até o governo Dilma Rousseff. Antes de chamar a atenção para as dificuldades do presente, devemos reconhecer que a transição democrática ajudou imensamente nessa caminhada”, ponderou Paulo Sérgio Pinheiro. O presidente da Comissão Independente Internacional da ONU acredita que um dos aspectos que caracteriza a situação atual é a incompletude da democracia no Brasil. “Apesar desse avanço, não barramos o autoritarismo socialmente implantado, a violência contra as mulheres e as crianças, o trabalho escravo, o racismo. E não estamos sozinhos nesse retrocesso dos direitos humanos — em todo o mundo, em grandes democracias consolidadas, se experimentam problemas similares”, lembrou.
Três aspectos da crise
Thiago de Souza Amparo, atualmente pesquisador visitante na New York University, sintetizou a crise dos direitos humanos em três aspectos. Primeiro, reitera a já mencionada “democratização incompleta” — caracterizada por uma sociedade que ainda precisa enfrentar os legados do regime militar. Também está em discussão a ideia dos direitos humanos como utopia possível, capaz de estimular a movimentação social. “Não são as grandes organizações de direitos humanos que estão colocando as pessoas para protestar na rua. São os movimentos feministas, antirracistas e em defesa do clima. Esses são aspectos dos direitos humanos, muitas vezes não chamados assim, que enriquecem essas utopias”, disse o pesquisador.
“Há também uma crise de direitos humanos como gramática, até porque muitas vezes essa gramática é utilizada para restringir direitos — por exemplo, a cooptação do termo liberdade para defender liberdade de matar, de contaminar na pandemia, de ter acesso a uma arma de fogo. Percebemos que a gramática de direitos humanos tem sido cooptada por grupos conservadores de extrema direita”, concluiu Amparo.
Esse último aspecto foi enfatizado por Oscar Vilhena: “Há 30 anos, quem era contra os direitos humanos falava simplesmente que era contra. Hoje dizem que tem uma interpretação distinta dos direitos humanos. É uma apropriação indevida e paradoxal, de direitos humanos com exclusão do outro”.
Uma nova fronteira
Em sua fala, Denise Dourado Dora deu ênfase aos direitos das mulheres: “Uma boa parte dos direitos humanos é inspirada em doutrinas cristãs, no seu sentido positivo, como a ideia do respeito ao próximo. Mas muitas leis, especialmente as que nos governam na América Latina, baseiam-se no pior aspecto das doutrinas cristãs: a ideia da subordinação dos corpos femininos. E acho que esse é o fundamento pelo qual a integridade corporal das mulheres não é tomada como um elemento essencial da gramática dos direitos humanos.”
A diretora regional da ARTIGO 19, uma organização não-governamental de direitos humanos, lembrou o caso da Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que criou mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Embora tenha sido uma vitória constitucional no campo dos direitos das mulheres no Brasil, seus desdobramentos foram assimétricos.
“No momento em que a lei começa a ser implementada nas delegacias para mulheres, ela também foi traduzida de forma discriminatória. A violência contra as mulheres brancas teve um decréscimo, mas contra as mulheres negras aumentou. Por que uma lei que deveria proteger faz aumentar a vulnerabilidade de um determinado grupo social?”, disse Dora.
“É complexo pensar na ideia dos direitos humanos como uma política de Estado, e no que acontece quando tentamos, efetivamente, implementá-los. Como eles são vivenciados por diferentes setores da sociedade? Quando a discussão sobre direitos humanos se aproxima de questões concretas e que envolvem mobilização social, ela muda e se refina. Talvez pensar nas políticas de Estado contemplando as experiências concretas seja a nova fronteira para avançar na agenda dos direitos humanos”, concluiu.
Reformas, discurso contra-intuitivo e impulsionamento da agenda
Com relação à contínua violência no país, que reformas no aparato de segurança seriam importantes e decisivas para que possamos avançar? Paulo Sérgio Pinheiro foi categórico ao afirmar que a reforma fundamental é a desmilitarização da polícia. “Também precisamos lutar contra o racismo nas polícias militares. Nós temos soluções, mas o obstáculo é o funcionamento das forças políticas, que acham que ao aderirem a essa política de extermínio das populações negras resolvem o problema da violência”, argumentou.
A reforma das polícias, a desmilitarização e outras pautas de direitos humanos falham em avançar, mesmo sob a liderança de governos progressistas. Talvez o problema esteja na forma com que o discurso dos direitos humanos se apresenta, explicou Oscar Vilhena: “Os direitos humanos trazem uma mensagem contraintuitiva. Todas as pesquisas apontam que quanto mais uma polícia for respeitosa maior será sua eficácia. Assim como quanto menos armas tiver circulando na população, mais segura estará a população. Isso, no entanto, não é intuitivo. É difícil explicar para uma pessoa que tem medo da violência que ela não estar armada é melhor pra ela. É difícil dizer que uma polícia respeitadora é melhor que uma polícia que agride violentamente os criminosos”.
Uma possível solução para esse desafio seria dar ênfase a razões distintas para impulsionar essa agenda. “Temos de ser capazes de formular uma defesa que conjugue argumentos de natureza moral e de natureza utilitária. Em uma sociedade mais igualitária o mercado funciona melhor, pois amplia-se a base de consumidores e as empresas lucram mais. Devemos defender os direitos humanos porque eles são moralmente defensáveis, mas também porque são eficientes em criar uma sociedade mais estável, mais afluente e melhor para se viver”, propôs Vilhena.
Como exemplo de medida bem sucedida, ele citou a instalação de câmeras nos uniformes das polícias: “Ao modernizar as polícias, treinar e colocar uma câmera nos uniformes, cai o número de crimes praticados pelos policiais, sem que isso gere um aumento dos homicídios de maneira geral”, concluiu.
Conjuntura de forças e o futuro dos direitos humanos
Thiago Amparo destacou a pesquisa “Pulso Brasil”, realizada pela Ipsos em 2018. Embora o estudo tenha revelado que 2/3 dos brasileiros pensam que “os direitos humanos defendem mais bandidos que vítimas”, em uma pergunta de resposta espontânea — na qual não há alternativas pré-estabelecidas — 21% afirmaram que direitos humanos significam “igualdade de direitos” ou de tratamento para ricos e pobres, brancos e negros.
“Do ponto de vista dos costumes, existe uma crescente aceitação das pautas LGBTQIA+, do direito das mulheres, do aborto, e isso é possível graças a uma grande mobilização nessas áreas. Percebemos que essas pautas estão na agenda da sociedade e são cada vez mais aceitas, embora sofram resistências fortes. O futuro dos direitos humanos depende de se olhar cada vez mais para isso”, disse Amparo.
O colunista da Folha de S.Paulo concluiu o evento com uma mensagem de esperança: “Sim, há uma crise nos direitos humanos e na democracia, mas não há outra alternativa senão o reconhecimento de que todas as pessoas têm direitos iguais. É importante cada vez mais diversificar os direitos humanos e garantir maior distribuição de poder econômico, político e social, para que possamos construir uma sociedade melhor”.
Para Saber Mais:
Escute o podcast Cidadania XXI, produção do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), que explica conteúdos do novo “Relatório da Situação dos Direitos Humanos no Brasil”;
Veja a lista feita pela ONG Conectas Direitos Humanos, que elenca 7 marcos dos direitos humanos no Brasil (e 7 documentários que ajudam a entendê-los);
Leia o artigo “A gramática dos Direitos Humanos”, de Oscar Vilhena Vieira, disponível para download.
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Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.