Guerra na Ucrânia: a perspectiva da Europa e o futuro da Aliança Atlântica
A Aliança Atlântica terá força suficiente para influenciar decisivamente a nova geopolítica global e suas consequências políticas e econômicas?
Uma guerra no continente europeu volta a ser o tema central da geopolítica mundial oito décadas depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O confronto desencadeado pela invasão da Rússia à Ucrânia ultrapassa as fronteiras dos dois países e atinge o mundo todo, em particular a Europa. Suas consequências vão muito além dos efeitos econômicos de curto prazo. Seus desdobramentos podem redesenhar o mapa da geopolítica global. Em resumo, esta foi a principal conclusão do webinar realizado em 27 de abril pela Fundação FHC em parceria com The German Marshall Fund of the United States (GMF).
Dele participaram, entre outros, Celso Lafer, presidente da Fundação FHC e conselheiro emérito do CEBRI, ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil; Elena Lazarou, head da unidade de política externa do European Parliamentary Research Service (EPRS) (Bélgica); Jacob Funk Kirkegaard, senior fellow no GMF e no Peterson Institute for International Economics (PIIE); e Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais na Fundação Getulio Vargas (FGV).
Um conflito com alcance histórico
Celso Lafer ressaltou as incertezas que a Rússia provoca ao romper com regras básicas do direito internacional. Citando Henry Kissinger, advertiu que “quem busca segurança absoluta para si gera insegurança absoluta para os outros”. Ao buscar controlar o seu entorno geográfico, Putin provocou na Europa e nos Estados Unidos a suspeita de que a invasão da Ucrânia pode ser o começo de um movimento mais amplo de expansão do Estado russo. Na visão do ex-ministro, trata-se da mais grave ruptura do direito internacional desde o fim da Segunda Guerra Mundial. A gravidade do momento se expressa no retorno do espectro da guerra nuclear, ausente desde a solução pacífica da crise dos mísseis em outubro de 1962, quase sessenta anos atrás, quando os Estados Unidos e a União Soviética estiveram à beira da mútua destruição.
Oliver Stuenkel coincidiu com o diagnóstico de Lafer. O professor de relações internacionais da FGV vê o conflito como um provável divisor de águas. “Daqui a 50 anos ainda sentiremos os seus reflexos históricos”, avalia. “O confronto entre Rússia e Ucrânia terá um alcance maior que o do 11 de Setembro e também das invasões do Afeganistão e do Iraque”. Tende a acelerar tendências que já vinham se desenrolando. Para ele, os fatores geopolíticos ganham maior peso em detrimento da integração promovida pela globalização econômica. Afetarão as decisões sobre onde localizar elos das cadeias produtivas e ativos financeiros. O congelamento de reservas internacionais depositadas em instituições financeiras do Ocidente já havia ocorrido para punir países menores, mas jamais antes uma potência nuclear como a Rússia.
A tendência é que tenhamos um mundo mais conflituoso, com maiores investimentos militares e maior preocupação dos principais players globais em reforçar a sua autonomia estratégica em termos econômicos e militares. Isso implicará maiores restrições à integração na esfera financeira, comercial e informacional. A ideia de um mundo integrado por uma só rede, como a Internet, faz parte do passado.
Até que ponto a desintegração avançará e quais grupos de países formarão alianças ainda não está claro. A realidade do mundo é mais complexa do que a divisão Ocidente e Não Ocidente. E embora o conflito em torno da Ucrânia tenha uma dimensão de valores (democracia vs. autocracia), essa oposição dificilmente será determinante da reorganização das relações de poder em nível global.
Houve consenso no diagnóstico de que estamos deixando definitivamente para trás a ordem mundial inaugurada pelo fim da União Soviética. Sabemos de onde estamos partindo, mas não sabemos exatamente para onde estamos indo.
Risco à segurança da Europa
Em nenhum outro lugar, a percepção de ameaça e incerteza é tão grande quanto na Europa. Esse foi o mote da intervenção de Elena Lazarou. Para ela, não é apenas a segurança energética do velho continente que está em risco. É toda a sua arquitetura de segurança, a qual supunha que a ameaça nuclear havia ficado no passado. Se é verdade que, de imediato, a importância da OTAN se tornou mais clara do que nunca, persiste mais no longo prazo o desafio de dotar a Europa de maior autonomia no campo da defesa e segurança. Esta é uma preocupação tanto mais justificada quanto maior a incerteza em relação ao rumo político dos Estados Unidos. Como observou Ian Lesser, vice-presidente do GMF, fosse Donald Trump o presidente, a resposta americana à agressão russa não seria a mesma.
Jacob Kirkegaard deu ênfase aos riscos econômicos de curto prazo, afirmando que as chances de a Europa viver uma recessão nos próximos meses são grandes e crescentes devido aos efeitos da guerra sobre os preços e a disponibilidade de vários produtos. Nesse cenário, o Banco Central Europeu se verá frente a um dilema severo entre subir juros, ainda negativos, para frear a inflação ou manter a política monetária frouxa para não agravar a recessão. O dilema tende a exacerbar as divergências entre os países do Norte e do Sul da Europa, podendo tornar ainda mais difícil a manutenção da unidade do bloco em resposta à agressão da Rússia à Ucrânia.
O jogo da China
Embora sem estar diretamente envolvida no conflito, a China foi diversas vezes mencionada no debate. A maneira pela qual reagir aos desdobramentos da guerra terá grande peso sobre os efeitos de longo prazo do conflito. Até aqui, o país tem dado apoio diplomático à Rússia sem propriamente endossar a invasão da Ucrânia. A maioria dos participantes pôs em dúvida o real significado da “aliança sem limites” entre as duas nações – expressão que constou de um comunicado de ambos os governos depois do encontro entre Putin e Xi Jinping, poucas semanas antes do início da invasão russa. Se, de um lado, a China não pode alienar o apoio político de Moscou, de outro tem com o Ocidente relações econômicas incomparavelmente mais densas e diversificadas do que com a Rússia.
Por outro lado, notaram vários dos participantes, o Ocidente está longe de representar um bloco monolítico. Vários países ocidentais importantes, entre eles o Brasil, e mesmo membros da OTAN, como a Turquia, não aderiram ao regime de sanções contra a Rússia. Se acrescentarmos à lista importantes países não ocidentais, como a Índia, torna-se claro que o isolamento da Rússia é relativo.
A posição brasileira
Um mundo tensionado e dividido é desfavorável para um país como o Brasil: uma potência média, uma economia em desenvolvimento, um global trader, com comércio diversificado, e que sempre se beneficiou do multilateralismo.
O Brasil é afetado pelo conflito, mas não tem poder para interferir nos seus desdobramentos. Lafer afirmou estar de acordo com a posição adotada pelo Itamaraty. Reconhece que não é trivial para o país aderir ao regime de sanções adotado contra a Rússia. Mas pondera que deveríamos ter modulado a nossa posição de tal modo a acentuar o repúdio à violação da integridade territorial e do direito à soberania de um país – dois princípios que constam tanto da Carta das Nações Unidas como da Constituição brasileira.
O ex-ministro destacou ainda que seja quem for eleito este ano, o próximo presidente brasileiro terá de ter em sua agenda a preocupação de como navegar em um mundo como o descrito. “Por maior que seja a habilidade diplomática de um país, ela é sempre dependente da condução que o seu presidente dá à política externa”.
Saiba mais:
Notas escritas por Celso Lafer – em inglês
Guerra na Ucrânia pode escalar para um conflito nuclear, alerta especialista russo
Democracias turbulentas e o Sistema Internacional
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, Zero Hora e Jornal do Brasil