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20 de junho de 2022

Arte e resistência em Cuba: a história de um levante cidadão – Encontro com Carolina Barrero

Relato e reflexão da ativista cubana sobre o impacto histórico e cultural de um evento que marcou a história contemporânea de Cuba.

Em 11 de julho de 2021, as ruas de Cuba foram palco de uma das maiores manifestações das últimas décadas no país – segundo cálculos da Anistia Internacional, estima-se que 600 mil cubanos saíram por todas as partes da ilha caribenha, reclamando por liberdade e direitos. Um ano após os protestos de julho, a Fundação FHC convidou a historiadora da arte e ativista cubana Carolina Barrero para compartilhar seu relato e fazer uma reflexão sobre o impacto histórico e cultural do evento que marca a história contemporânea de seu país.

“Estamos apenas começando a compreender o significado e o alcance dos protestos de julho para a história de Cuba. Tantas vezes sonhamos com o momento de sair às ruas e reivindicar algo que todos sentimos: o desejo de democracia. E isso se viu”, disse Barrero, exilada na Espanha desde o início deste ano. 

Barrero, que fez parte do movimento de protesto 27N, que desafiou o regime de Cuba em 2020, apresentou uma retomada daquilo que chamou de “novo ciclo de protestos”, começando na primavera de 2018 – quando Miguel Díaz-Canel foi designado presidente, como sucessor dos irmãos Castro (Fidel e Raúl). “É importante lembrar que Díaz-Canel não foi eleito, e que em Cuba não se vota desde 1948. Isto não é uma questão ideológica. Estamos falando de autoritarismo versus democracia. Vivemos sob um apartheid ideológico há décadas, e a confusão ideológica é parte de uma estratégia de distração sobre o que realmente acontece em Cuba: total ausência de alternativa política.”

2018: Movimento San Isidro

Em 10 de julho de 2018, o presidente de Cuba, Díaz-Canel, assinou o Decreto nº 349, que regulamentava atividades artísticas e culturais no país. “O decreto, que não foi votado e sim aprovado como um Decreto-Lei, é um instrumento legal que faz com que a censura não só faça parte da política cultural, mas também seja um artigo do Código Penal. Ou seja: legaliza a censura e faz com que ela se torne um instrumento contra a liberdade de expressão e contra a essência da criação artística.”

Barrero acrescenta: “Esta é uma das formas repressoras do totalitarismo: gerar divisão por meio de uma situação de ameaça. Mas o que sucedeu em Cuba, como reação ao decreto, foi o contrário. Nos demos conta de que somente nos unindo poderíamos fazer frente e frear esta ameaça. E isso mudou tudo. Assim, digo que a solidariedade foi a catalisadora social deste e de todos os outros protestos que vieram depois. O movimento San Isidro, que é um movimento de artistas, intelectuais, jornalistas, cientistas, é um movimento autêntico, popular, e que reflete o que realmente é a cidadania cubana.”

2020: Movimento 27N 

Em 27 de novembro de 2020, 500 pessoas manifestaram-se em frente ao Ministério da Cultura para exigir o cessar da violência contra artistas e criadores. “Essas pessoas chegaram no Ministério em solidariedade aos membros do Movimento San Isidro, que na noite anterior havia sido desalojado de sua sede por agentes de segurança do Estado disfarçados de médicos. Eles interromperam uma greve que o movimento fazia em solidariedade a um músico que foi detido arbitrariamente e condenado a um ano de prisão. Protestavam para pedir sua liberação, de forma pacífica, e foram levados embora com violência.”

Assim formou-se o 27N, um grupo que teve como primeiro objetivo estabelecer um diálogo com o ministro da Cultura, que prometeu, então, escutar as demandas da comunidade artística e intelectual. “Logo percebemos que não haveria diálogo, mas sim uma forma de dissolver os protestos sem conceder nada em troca”, conta Barrero.

“Dois meses depois, fomos em grupo até o Ministério exigir finalmente respostas, porque não havia nenhum tipo de avanço. O ministro deu um tapa na cara de um jovem jornalista que estava ali. Ele segue impune até hoje. Não é possível dialogar assim, há uma enorme assimetria de poder.” Em abril de 2021, o 27N publicou um manifesto público, reivindicando não somente a liberdade de expressão e de criação artística, mas direitos civis e políticos. “Porque não existe liberdade de criação sem liberdade política. Lutamos por um projeto de país igualitário, plural e inclusivo.”

Julho de 2021 

“E assim chegamos a este acontecimento verdadeiramente sem precedentes, os protestos de 11 de julho. Eles pipocaram em toda a ilha, crescendo por todas as partes de maneira espontânea, como uma árvore de Natal”, conta. Tudo começou com cerca de vinte pessoas, que caminhavam ao redor do município de San Antonio de Los Baños, convidando mais gente para se juntar à caminhada, transmitida ao vivo pelo Facebook. 

“Logo esses vinte viraram cem, e então houve um efeito de tsunami, uma onda que varreu Cuba inteira. Há registros de protestos em 44 cidades, mas creio que em quase todos lugares algum cubano saiu para a rua. E as pessoas continuaram saindo, apesar da repressão, que foi brutal.”

“As redes sociais, mesmo com os seus problemas conhecidos – fake news, polarização etc. – em Cuba funcionam como uma ágora. O que impediu que mais gente saísse e continuasse saindo foi o corte da internet. O apagão total quebrou a comunicação e a rede de inspiração, um que inspirava o outro a também sair na rua.” 

O fim do regime?

A ativista sustenta que os protestos de julho não são um evento isolado, e sim o reflexo de um processo que vem acontecendo há anos no país: “Cento e quarenta e cinco mil pessoas foram embora de Cuba somente no último ano. Ninguém abandona um país onde tudo é maravilhoso, dessa maneira desesperada. Não podemos mais ser o recipiente de todas as aspirações utópicas da esquerda latino-americana. Exigimos liberdade para escolher nosso destino.”

“A verdade é que Cuba é um país plural, e já é mais do que só aquilo que está contido em suas fronteiras geográficas políticas, está por todas as partes do mundo onde existe um cubano exilado. Todos os cubanos, inclusive aqueles que vivem no exílio, têm o direito de pensar Cuba e de ser parte do nosso projeto de país. Convido vocês a pensarem no que poderia ser uma transição madura, sólida e estável para uma democracia cubana. O que isso poderia significar para a América Latina”, continuou.

Questionada acerca da possibilidade dessa transição de fato acontecer, Carolina revelou acreditar que ela já começou, apesar de não julgar que dentro do governo exista vontade real de mudança. “Ao contrário, eles estão absolutamente desconectados, entrincheirados. Mas há uma desmoralização enorme, tanto de Díaz-Canel, como de toda a cúpula militar. Nunca antes um presidente foi tão vilipendiado quanto ele, que não reconhece um erro de gestão, e, como um adolescente, coloca toda a culpa nas sanções e nos embargos que Cuba sofre. Não tenho uma bola de cristal, mas creio que esta sucessão de acontecimentos dos últimos anos possa finalmente precipitar a dissolução do regime”, concluiu.

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Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.