Debates
24 de fevereiro de 2016

Até onde podem chegar as mudanças em Cuba?

Uma transição econômica e política baseada em um processo, em vez de ruptura. É o que defende o intelectual cubano Manuel Cuesta Morúa.

“Em Cuba, a visão de que a mudança política ocorre a partir de um grande acontecimento foi dominante nas últimas décadas. A Revolução de 1959 reforça isso. Felizmente, os cubanos começam a perceber que o importante na construção de um Estado democrático de direito é o processo.” – Manuel Cuesta Morúa.

Uma transição econômica e política baseada em um processo, em vez de uma ruptura. É o que defende o intelectual cubano Manuel Cuesta Morúa, 53, que vive em Havana e é um dos mais destacados líderes da oposição interna ao regime dos irmãos Castro.

Nos últimos tempos, a ilha caribenha vive uma “confluência de circunstâncias criativas” baseada, por um lado, em reformas econômicas colocadas em prática pelo presidente Raúl Castro (irmão e sucessor de Fidel) e, por outro, pela mudança da política norte-americana em relação a Cuba no segundo mandato do presidente Barack Obama. “Pela primeira vez se cria uma confluência de cenários interno e externo, com a participação de atores básicos como Estados Unidos, Europa e, mais tardiamente a América Latina, na direção de fortalecer a transformação em Cuba pela via do diálogo, do consenso e da gradualidade do processo”, disse o historiador em encontro na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo.

“A morte do rei é sempre muito complicada. A visão de processo, em vez de ruptura, é muito importante”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em referência à perspectiva de uma mudança geracional no comando do país diante da idade avançada tanto de Fidel, que segue influente mas se afastou do dia a dia da política, como de Raúl. “Às vezes, em política temos pressa. Mas, como sociólogo, entendo que, em certas circunstâncias, é preciso avançar com um pouco mais de calma.”

‘Latino-americanização de Cuba’

Segundo o dissidente cubano, ao assumir o poder em 2006 Raúl Castro se deu conta de que Cuba precisava sair do imobilismo e iniciar um processo de integração a tendências mundiais como globalização, amplo acesso à tecnologia (computadores, internet e smartphones), empreendedorismo etc. “Em um de seus primeiros pronunciamentos, conhecido como ‘discurso de la leche y marabú’ devido à falta de leite para as crianças e à invasão de terrenos não cultivados por essa planta exótica de origem africana, Raúl sinalizou que pretendia trabalhar, de maneira prática e pragmática, para propiciar a criação de mais riqueza e bem-estar dos cubanos pelos cubanos”, explicou.

Entre as reformas realizadas estão a autorização de abertura de pequenas empresas — “muito pequenas, quase bonsai” — e compra e venda de imóveis e automóveis, permitindo que os cubanos comecem a acumular capital e, de alguma maneira, possam estruturar a própria vida com maior independência. Também foi dada mais liberdade para cubanos viajarem ao exterior sem pedir permissão e concedidos estímulos ao investimento estrangeiro no país.

“Essas foram as bases de algumas reformas orientadas à cidadania, que tiveram impacto no sentido de criar uma maior distensão social. Mas pararam por aí”, disse o palestrante. “De fato, hoje as pessoas se expressam mais, sobretudo em um Estado de caráter policial por várias décadas, em que as pessoas tinham medo de seus vizinhos. Isso foi superado e reflete algo que a comunidade internacional não presta muita atenção, que é a mudança dentro das pessoas, algo básico para o que quer que se queira construir no futuro”, continuou.

Se, por um lado, há o florescimento de uma pluralidade religiosa, cultural, política, ideológica e até mesmo étnica antes escondida, por outro, cresce a fratura social devido ao aumento da desigualdade, no que Cuesta Morúa chamou de ‘latino-americanização’ de Cuba.

“As reformas permitiram o surgimento de uma oligarquia político-econômica  associada ao capital estrangeiro e de uma nova classe média. Mas não têm beneficiado outros setores da sociedade”, disse. As Forças Armadas Revolucionárias (FAR) de Cuba, por exemplo, estão assumindo o controle de várias empresas, como o Porto de Mariel (que contou com recursos do BNDES brasileiro). “Se houver uma abertura real, estão dadas as condições para uma prosperidade muito maior”, afirmou Cuesta Morúa.

O papel dos Estados Unidos

A partir de dezembro de 2014, quando foi anunciado um acordo de reaproximação entre os governos norte-americano e cubano, o presidente Obama adotou uma série de medidas para apoiar as mudanças em Cuba e melhorar as condições econômicas da população. Entre elas o relaxamento de restrições de viagens de cidadãos norte-americanos a Cuba, a elevação dos limites de recursos que a comunidade cubano-americana pode enviar a seus familiares na ilha e a permissão de importação de produtos cubanos como charuto e rum e exportação de produtos tecnológicos para Cuba.

No ano passado, foram reabertas as respectivas embaixadas em Washington e Havana e Cuba foi retirada da lista norte-americana de países “patrocinadores do terrorismo”. Na segunda quinzena de março, Obama fará a primeira visita de um presidente norte-americano à ilha desde 1928.

“O governo Obama compartilha da visão de que o país precisa se adaptar aos novos tempos e as medidas implementadas desde 2014 buscam favorecer o bem-estar e a melhoria de vida da população cubana”, disse Ricardo Zuniga, cônsul dos EUA em São Paulo, presente ao evento. “Nosso objetivo é ajudar na mudança paulatina do cenário econômico e social em Cuba para que surjam outros centros de poder no país. O povo cubano deve ser o protagonista”, afirmou o diplomata americano, que teve papel central nas negociações entre os governos Obama e Raúl Castro.

De acordo com Zuniga, diferentemente do passado quando havia grande resistência da população norte-americana a uma aproximação com Cuba, desta vez a maioria se mostra favorável. “A eliminação do embargo econômico será uma batalha difícil quem quer seja eleito presidente dos EUA em novembro de 2016, mas será difícil para um novo governo, mesmo republicano, retroceder”, disse.

Sucessão em 2018

Para Manuel Cuesta Morúa, o degelo entre os países abre caminho para “apoios diplomáticos e sociais que facilitarão a aterrissagem suave de Cuba na comunidade hemisférica, respeitando e privilegiando os temas dos direitos humanos e das liberdades individuais”. “A comunidade internacional começa a enxergar o conflito Estado-sociedade (em Cuba) e não apenas o conflito Estado-Estado (EUA vs. Cuba)”, disse.

Para o oposicionista cubano, deve-se aproveitar a brecha das reformas econômicas, ainda que insuficientes e limitadas, para avançar no campo político. “É mais fácil entrar por onde te deixam. E parece que a porta da economia é a que está aberta para incluir Cuba e ajudar na reconstrução do país”, afirmou o porta-voz do Partido Arco Progressista e membro da coordenação do movimento Nuevo País.

Embora resista a avançar mais rapidamente no campo político, o presidente Raúl Castro já anunciou que pretende deixar o poder em 2018, abrindo espaço para sua sucessão. “Isso implica em um sentido de finitude que antes não conhecíamos, pois o governo cubano poderia durar toda a eternidade”, explicou.

Segundo o historiador, Raúl Castro percebeu que as dificuldades do país exigem que, se o regime quiser conservar parte de seu legado em termos de ideias e mitos, é preciso pensar na sucessão. Com esse objetivo, o governo pretende apresentar uma nova legislação eleitoral, “embora não com a participação da cidadania, mas obviamente definida em um círculo fechado”.

#Otro18

Para tentar influenciar na sucessão, diversos grupos de oposição ao regime cubano criaram a plataforma cidadã #Otro18. “Não temos a ilusão de que daqui a três anos conquistaremos o pleno Estado de direito, com democracia, liberdades fundamentais e separação de poderes, mas que tenha início um processo de inflexão política em direção ao pluralismo político e ao direito de todos os cubanos poderem se apresentar, independentemente de sua ideologia, a qualquer cargo do país”, afirmou.

O movimento #Otro18 busca aproveitar uma brecha na Constituição, que, segundo Cuesta Morúa, não tem um artigo que defina a existência de um partido único (o Partido Comunista de Cuba). “O pluralismo político não é ilegal. E a lei deve ser respeitada sempre”, disse. “Com essa visão de processo, criamos uma plataforma para viabilizar uma transição política baseada na ideia de reconciliação nacional.  Pessoas que antes nos viravam as costas agora estão dispostas a conhecer e discutir as diversas alternativas.”

Após as explicações do líder opositor cubano, FHC lembrou do processo que levou à eleição de Tancredo Neves (PMDB) à Presidência da República na esteira da campanha das Diretas Já (1984). “Com a rejeição da emenda que restabelecia a eleição direta para presidente, a oposição decidiu jogar segundo as regras estabelecidas pelo regime militar e lançou a candidatura de Tancredo pela via indireta. Vencemos a votação no Congresso Nacional”, disse o ex-presidente.

“Em certos momentos, é necessário buscar a vitória seguindo as regras do jogo, ainda que não concordemos com elas. O mais provável é que a oposição cubana não chegue ao poder em 2018, mas isso pode se tornar realidade mais adiante”, afirmou o ex-presidente.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.