Debates
24 de março de 2021

A crise social e política no Chile e no Peru, por Danilo Martuccelli

Em discussão: as mudanças sociais que estão na raiz dos protestos que sacudiram estes países, até então invisíveis no radar da política convencional.

A crise social e política no Chile e no Peru têm origens históricas e diagnósticos atuais radicalmente diferentes, mas em ambos os países ocorre um fenômeno que também se manifesta em outras nações da América Latina: o surgimento de “novas classes populares intermediárias” cuja influência cultural, econômica e política tende a crescer nos próximos anos e décadas.

“O Chile é a nação mais estruturada da região, enquanto o Peru é a mais desestruturada. No Chile, a crise social leva a uma crise política. No Peru, há duas crises simultâneas, uma social e uma política, com um só processo que as explicam. No epicentro dessas crises está o aparecimento de um novo grupo social que ganha espaço e relevância na estratificação social de toda a região”, disse o sociólogo chileno Danilo Martuccelli, um dos mais brilhantes intelectuais de sua geração, neste webinar realizado pela Fundação FHC e pelo CEBRI.

“Essas classes populares intermediárias são profundamente híbridas: não são ‘povo’ nem ‘classe média’, mas têm um imaginário que vem dos setores populares e expectativas de vida que as aproximam da classe média tradicional. Possuem um certo fatalismo e resignação baseados na memória de uma vida dura e de um trabalho difícil, mas estão cada vez mais empoderadas, instruídas e consumistas”, explicou o professor de Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Paris-Descartes (Sorbonne).

“Com uma experiência de vida diferente, elas têm mais consciência dos apoios e das interdependências pessoais que das solidariedades coletivas, são mais ‘individualizadas que individualistas’ e estabelecem uma nova articulação entre o coletivo e o individual que muitos ainda têm dificuldade de compreender. Por fim, esse novo grupo social tem muita sensibilidade religiosa, em geral relacionada ao avanço do neopentecostalismo”, disse o pesquisador, que tem como suas áreas de estudo a teoria social, a sociologia política, a sociologia do indivíduo e a individuação.

“Por que isso é importante? Porque foram sobretudo essas novas classes populares intermediárias que estiveram por trás da explosão social ocorrida no Chile em outubro de 2019 e dos protestos ocorridos no curto novembro peruano em 2020”, disse. Segundo o palestrante, nenhum governo latino-americano dos últimos 30 anos — “nem os neoliberais nem os da onda rosa” — soube dialogar com esse novo grupo em ascensão, o que constitui um desafio político relevante a curto e médio prazo.

O webinar — que se propôs a discutir as mudanças sociais que estão na raiz dos protestos que sacudiram recentemente os dois países sul-americanos — marcou o lançamento no Brasil da obra La Sociedad Desformal: Perú y sus encrucijadas (Plataforma Democrática, 2021). Teve as participações do sociólogo Bernardo Sorj (Centro Edelstein de Pesquisas Sociais) e dos cientistas políticos Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC, e Hussein Kalout, Senior Fellow do CEBRI.

Os três elementos da atual crise chilena

Para Martuccelli, para entender a crise que eclodiu no Chile no final de 2019 é preciso considerar três elementos, sendo que o primeiro deles é a solidez da dominação das elites chilenas ao longo de mais de dois séculos de história desde o processo de independência (1817-1818).

“O Chile se caracteriza por ter uma ordem elitista que contrasta com a história de todos os demais países da América do Sul. Por meio de diversos acordos e alianças feitos entre os grupos dominantes ao longo da história pós-independência, houve uma continuidade da capacidade da elite de modelar a sociedade chilena em torno de um Estado e um Executivo fortes”, disse.

Segundo o sociólogo chileno, houve momentos disruptivos que ameaçaram essa dominância da elite, como nos anos 1970 durante o governo popular de Salvador Allende (1908-1973). Líder socialista eleito democraticamente em 1970, Allende foi deposto três anos depois por um golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet (1915-2006), dando início a uma ditadura que foi responsável por milhares de mortos e desaparecidos.

Os grandes protestos de rua iniciados no país em outubro de 2019, que chegaram a reunir mais de 1 milhão de pessoas em Santiago por dias seguidos, também tiveram (têm) um potencial disruptivo, mas o sistema político chileno, sob a liderança do presidente Sebastian Piñera (centro-direita), buscou contê-lo por meio da proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte Exclusiva. Aprovada por 78% dos chilenos em plebiscito realizado em outubro de 2020, a nova Carta pode vir a responder às demandas por fortalecimento da saúde, da educação e da previdência públicas.

O segundo elemento (da crise atual) é a erosão do consenso em torno do modelo liberal econômico imposto pelo regime Pinochet e em grande parte mantido após a redemocratização. Desde o fim da ditadura militar em 1990, governos de centro-esquerda e de centro-direita se alternam no governo chileno, preservando o sistema democrático e a economia de mercado, com resultados importantes do ponto de vista do crescimento econômico, da redução da pobreza e da inserção internacional do Chile.

“Em nenhum outro país da América Latina o neoliberalismo foi colocado em prática com tal ímpeto disruptivo e refundacional. Após o golpe de Estado de 1973, o Chile deixou de ser uma sociedade centrada no Estado para ser uma sociedade centrada no mercado. Esse modelo começou a mostrar fissuras importantes nos últimos anos, quando alguns setores da sociedade voltaram a defender a desapropriação de minas e a participação de trabalhadores na direção de empresas, temas que haviam sido praticamente eliminados do debate por muitos anos”, disse o palestrante.

“Em parte devido aos bons resultados em termos de crescimento econômico e aumento de renda, o modelo neoliberal produziu uma desmobilização social significativa da sociedade chilena até poucos anos atrás”, salientou. De 1990 a 2019, o Chile saltou da 6ª para a 1ª posição na comparação entre os PIBs per capita dos países sul-americanos e tem hoje uma renda per capita de US$ 24 mil anuais (veja gráfico que mostra essa evolução).

“O modelo neoliberal fez do Chile um país de renda média, mas não desenvolvido, e pouco a pouco o mal-estar social, motivado em grande parte pela desigualdade entre ricos e pobres, foi ganhando terreno e se converteu em importante tema de discussão”, continuou. De forma bem resumida, uma parte da sociedade argumenta que o mal-estar seria resultado do próprio êxito do modelo liberal, enquanto a visão contraposta afirma que esse sucesso não passa de um mito, pois persistem profundos problemas sociais, inclusive situações de pobreza e desalento.

A evolução desse mal-estar para um “estado de agonia” na última década é o terceiro elemento da crise social que desemboca na atual crise política. “Primeiro foram os estudantes que se mobilizaram pelo ensino universitário universal e gratuito (os protestos ocorreram tanto durante administrações de centro-direita como de centro-esquerda). Pouco a pouco, aumentaram as frustrações devido aos salários que não aumentavam e às aposentadorias extremamente baixas (associadas ao modelo de capitalização estabelecido na era Pinochet). Por fim, surgiram denúncias de corrupção envolvendo empresas que haviam sido privatizadas e a população tomou consciência de que os serviços prestados por elas estavam entre os mais caros do mundo”, explicou Martuccelli.

“Os sentimentos de frustração e decepção se generalizaram, a crise social se agudizou e se transformou em uma crise política controlada. O processo constituinte é sobretudo uma tentativa dos partidos, os mais consolidados da América Latina, de evitar uma ruptura do grande acordo político que vigora no país há mais de três décadas, o que poderia colocar em risco o desenvolvimento econômico chileno”, concluiu.

Peru vive processo radical de ‘desformalização’

O Peru é hoje uma sociedade onde as leis, as normas, as instituições e os governos já não lograram organizar a vida social e tampouco conter os atores individuais. “Isso também ocorre em outros países latino-americanos, mas no Peru em uma proporção muito maior. Em nenhum outro país da região, as elites políticas e econômicas perderam controle de forma tão radical sobre a formalidade cultural e social”, afirmou Danilo Martuccelli.

Segundo o professor, “esse processo teve início na década de 1970, quando um governo militar pôs em prática uma série de reformas, entre elas uma reforma agrária, que decapitou a velha oligarquia peruana e deflagrou uma série de transformações sociais e culturais. Foi um verdadeiro terremoto e, desde então, a sociedade peruana não conseguiu se reorganizar sob outras bases.”

“Desde então o país se ‘desformalizou’ de maneira completa e radical. No Peru, o formal e o informal, o transgressivo e o ilegal, a lei e o caos, tudo se mistura e se combina. Essa desformalização é o autêntico motor de todos os fenômenos sociais, culturais, políticos e econômicos que o país vive hoje”, afirmou. Como exemplo desse processo, ele citou o fato de 75% dos peruanos economicamente ativos trabalharem no mercado informal, sem pagar impostos e com baixa produtividade (representam apenas 15% do PIB peruano).

Martuccelli é conhecido pela tese do “achichamento” cultural da sociedade peruana, fruto da migração massiva da população indígena que vivia nos Andes para a desértica costa peruana, onde fica a capital. “Com a explosão populacional decorrente, Lima implodiu e os sistemas de transporte, saúde, educação, habitação e saneamento colapsaram. Mesmo com uma relativa recuperação ocorrida nos últimos anos, a cidade continua caótica”, disse.

“Aquele trabalhador rural, tradicionalmente chamado de cholo, se transformou em um indígena urbano, trocou as roupas andinas por vestimentas da cidade, mudou sua forma de se alimentar, trabalhar e se divertir. Até a música é outra, mudaram os hábitos, os costumes e a linguagem. Essa transformação sociocultural se estendeu para outros setores da sociedade e se tornou dominante”, explicou.

“A própria elite se achichou: o presidente da República e seus ministros, os senadores e os deputados, os juízes e outras altas autoridades da República falam e agem como qualquer pessoa na rua. Cada peruano, em sua forma desformalizada de ser,  se encontra ou se identifica com o estilo desformalizado de um (uma) líder político (a), sem que haja um vínculo mais profundo entre eles”, disse.

Nesse cenário de desformalização generalizada, os partidos não passam de agrupações sem capacidade de organização dos interesses sociais. Desde o final do governo de Alberto Fujimori (1990-2000), a corrupção se tornou um símbolo de um país onde as regras não funcionam, a desordem reina e a população se sente abandonada pelo Estado.

“O Peru vive uma crise social aguda e uma crise política aguda, mas diferentemente do que acontece no Chile, elas pouco se comunicam, tornando mais difícil a busca de soluções”, concluiu.

 

Para Saber Mais:

Ouça podcast em que o professor Oliver Stuenkel (FGV) analisa o plebiscito por uma nova Assembleia Constituinte.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. É editor de conteúdo da Fundação FHC.