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Acervo FHC e Ruth » FHC: Ação Política

FHC e a imprensa: relações tensas, mas marcadas pela institucionalidade

Fernando Henrique Cardoso sempre soube da importância do papel da imprensa. Como sociólogo, professor, intelectual e político, ele vivia o cotidiano do jornalismo havia anos – como autor e personagem. Como articulista – função que desempenhou por mais de uma década, em especial com colaborações para a Folha de S. Paulo – ele ajudou a aproximar as redações da academia; como político, era um entrevistado com ideias claras, além de ser uma fonte confiável aos repórteres de Brasília. 

O que mudaria a partir de sua posse como presidente da República no começo de 1995? 

O fator mais claro seria o acirramento das relações. A imprensa brasileira, então, vivia um momento de grande força. Se Fernando Henrique imaginava uma trégua, em pouco tempo se decepcionaria. O sossego da imprensa com o novo presidente não durou um mês. 

“Vinte dias depois de eu estar exercendo o governo, a Folha fez uma pesquisa para saber se eu ia bem ou mal”, anotou Fernando Henrique no início de Diários da Presidência – Volume 1 – 1995-1996. “A Folha quer vender jornal. Fazer as manchetes, dar dor de cabeça”, observou. No mês seguinte, agora sem identificar quais veículos ou jornalistas, ele relatou que novamente enfrentaria críticas antipáticas. O presidente questionou a cobertura de uma aula que deu no interior da Bahia. “Eu disse que tive dificuldade de dar aula, para mostrar que ser professor primário é difícil. Claro que a imprensa imediatamente afirmou que fui mal na aula. O primitivismo é muito grande.”

Fernando Henrique conhecia o metiê. Senador desde o início da década anterior, com bom trânsito junto aos jornalistas e também em todos os níveis hierárquicos das empresas de comunicação, o novo presidente já demonstrara habilidade no trato de assuntos importantes e delicados. 

Sabia também que não podia mais ir para a linha de frente. Num primeiro momento, trouxe então para o cargo de Secretário de Comunicação Social do Palácio do Planalto o engenheiro civil e jornalista Roberto Muylaert, inicialmente cotado para o Ministério da Cultura graças ao bom desempenho que teve como presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura. Muylaert não se adaptou à função e, em menos de três meses, foi substituído. Em seu lugar entrou a jornalista Ana Tavares.



Inauguração da exposição fotográfica em homenagem ao Dia do Fotógrafo - 20/08/1996

Os jornais e os presidentes

Uma pequena retrospectiva ajuda a compreender melhor o período: não era apenas o peso do cargo que havia se modificado. É possível lembrar que as relações entre imprensa e poder vinham mudando antes mesmo de Fernando Henrique virar ministro da Fazenda. O cenário havia se alterado, e o da época da chegada de Fernando Henrique à Presidência, em meados dos anos 90, já mostrava uma imprensa fortalecida. 

Silenciados e perseguidos por mais de duas décadas de ditadura militar, os órgãos de imprensa, a partir da década de 1980, ganhavam poder à medida que conseguiam emplacar denúncias e pressionar os governos. Com todos os presidentes a partir de José Sarney (1985-90) foi assim, com as proporções apenas sendo guardadas e/ou definidas pelo perfil de cada um dos ocupantes. 

Foi uma mudança em etapas. Com Sarney, o relacionamento ainda era frio, tanto pelo fato de a imprensa não saber como agir, quanto pelo próprio estilo de Sarney, um político sóbrio e cioso da liturgia do cargo. Assim, os jornalistas ora se equilibravam na necessidade de apoiar um governo que tinha grande apelo popular em seu começo, ora buscavam demonstrar independência através de denúncias e de reportagens investigativas. 

Em 1989, a mudança ficaria mais radical. Com o cenário contaminado pela primeira eleição presidencial, a imprensa se posicionou – e rachou. Enquanto jornalistas, em sua maioria, abraçaram as propostas mais à esquerda, em especial com apoio aberto a candidatos como Leonel Brizola, do PDT, e, mais ainda, Lula, do PT, as cúpulas dos grupos de comunicação chegaram a flertar com candidaturas que pouco decolaram – em especial a de Mário Covas, do PSDB, e a de Guilherme Afif, do PL – para logo em seguida optarem pelo candidato do PRN, Fernando Collor de Mello. Os órgãos de imprensa (jornais, revistas, rádios e TVs), em sua maioria, foram decisivos na construção da imagem e na eleição de Collor.

O primeiro resultado prático desse processo foi revelar a totalidade de um personagem que se alimentava da superexposição. Mesmo antes de se lançar candidato, Collor já demonstrava um apetite voraz e um gosto excessivo pela exploração da própria figura. Pelos meios de comunicação, escancarava seu estilo dinâmico, mandava recados aos adversários e pregava ideias em camisetas com mensagens. Foi afagado pela imprensa – e depois engolido por ela.

Seu sucessor, o vice-presidente Itamar Franco (que assumiu após o impeachment de Collor, em 1992), foi aliviado pelo seu estilo pessoal. Usou a imprensa para sugerir a volta do Fusca, deixou-se fotografar ao lado de uma modelo sem calcinha durante o Carnaval do Rio, mas não sofreu maiores perseguições. Em parte pelo próprio perfil, que beirava a caipirice; em outra parte por seu nome ter chegado à Presidência dentro de um processo de conciliação nacional.

Nas palavras de FH, o estilo do governo e as mudanças necessárias para o país - Reportagem do jornal O Globo; 17 de fevereiro de 1995

Muitas pressões: internas e externas

O governo Fernando Henrique inaugurou uma nova era. As relações não se davam mais nos modelos pessoais e, sim, institucionais: quem falava agora era o cargo, o presidente da República.

Próxima de Fernando Henrique desde os tempos de São Paulo – era amiga dos filhos do presidente, e Fernando Henrique foi ligado ao pai dela, o jornalista Tavares de Miranda –, Ana ainda se destacava por conhecer bem o pensamento e o estilo de Fernando Henrique. Começou a conviver com ele ainda quando o sociólogo apenas considerava entrar para a política e o acompanhou nos dois mandatos como senador e em todas as campanhas, aí incluídas a para a prefeitura de São Paulo, em 1985, e as duas para senador, além da criação do PSDB e da saída de FHC do Senado para assumir o Ministério das Relações Exteriores, no início do governo Itamar. Quando assumiu a Secretaria de Imprensa, ela tinha noção clara do desafio.

“Uma coisa é você ver como se dão as relações da imprensa com um candidato, um senador, até mesmo com um ministro da Fazenda. Outra coisa é a relação com um presidente da República”, lembra Ana Tavares.

“Tudo mudou”, reconhece hoje Ana Tavares, 21 anos depois de deixar o cargo, no final do governo FHC. “Uma coisa é você ver como se dão as relações da imprensa com um candidato, um senador, até mesmo com um ministro da Fazenda. Outra coisa é a relação com um presidente da República. São grandezas completamente diferentes.”

Ana lembra que Fernando Henrique foi eleito depois de uma campanha acirrada em que não faltaram ataques da oposição. Chegou ao poder mostrando equilíbrio entre comandar um círculo de confiança que o permitisse governar e, ao mesmo tempo, manter a capacidade de se comunicar com a imprensa e, em última análise, com a população. 

Como exemplo desse bom trânsito, Ana recorda o período do apagão, que afetou o fornecimento e distribuição de energia elétrica no país a partir de julho de 2001. “Foi duríssimo”, lembra Ana, destacando o papel desempenhado pela imprensa no apoio às medidas governamentais. “Mais do que criticar, a imprensa soube esclarecer a gravidade do problema.”

De maneira discreta, ela ajudou a construir a ponte entre o poder e a mídia. Em primeiro lugar, a nova secretária conseguiu se impor num ambiente em que as intrigas – também internas e externas – podem destruir reputações. Assim, ela recebia jornalistas diariamente para encontros no Palácio do Planalto. Naqueles almoços, Ana alimentava diretores, editores, colunistas e repórteres com informações importantes, clareando o cenário político e azeitando as relações do presidente com os jornais. “Não tinha hora para começar o dia de trabalho, tampouco hora para acabar. Mas eu sentia grande prazer no que fazia”, conta Ana. 

Reservada, ela não dava entrevistas, não aparecia em fotos e jamais ligava para emissoras de rádio e TV ou para jornais para reclamar de qualquer espécie de cobertura, mesmo quando os erros eram escandalosos, como no caso do Dossiê Cayman.

“Como é que vocês querem que eu me defenda se ninguém apresenta provas?” 

Conjunto de documentos comprovadamente falsos criado com o objetivo de atribuir crimes inexistentes a políticos e candidatos do PSDB nas eleições de 1998, o dossiê envolvia os tucanos Fernando Henrique Cardoso (que se candidatava à reeleição para presidente), Mário Covas (buscando a reeleição para governador de São Paulo), e os ministros José Serra e Sérgio Motta. Com informações de que teriam milhões de dólares depositados em paraísos fiscais do Caribe, o dossiê – como ficou comprovado por investigações posteriores – continha informações forjadas. O ex-presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) é acusado, junto com seu irmão Leopoldo, de comprar o dossiê por US$ 2,2 milhões.

Ana aponta esse como o momento mais grave que viveu à frente do cargo. O estilo cordial e preparado de Fernando Henrique aliviava, mas não impedia os ataques. Sobre o episódio, o presidente anotou em seu Diário: “Reiteram, reiteram, e uma parte da população acaba acreditando. E pior: no exterior sai nos jornais o nome do presidente da República do Brasil envolvido numa conta de dinheiro ilegal. Uma coisa absurda, é vergonhoso”. No mesmo relato, o presidente conclui, quando um artigo da Folha reconheceu que o dossiê era falso: “Por que antes de falar eles não foram verificar? Agora, três anos depois, dizem que é falsa?” 

Mais adiante, em outro momento, em novembro de 1998, o presidente retomou o assunto: “Fui bastante incisivo com Otavinho [Otávio Frias Filho, diretor de Redação da Folha de S. Paulo e filho de Otávio Frias, dono do jornal]. Como é que vocês querem que eu me defenda se ninguém acusa? Vocês continuam, dizem que os papéis não têm comprovação, mas publicam”.

Súmula de imprensa (monitoramento de mídia); janeiro de 1995

Manter o equilíbrio e a organização mental

À frente da consultoria de comunicação que abriu menos de duas semanas depois de deixar o governo, no dia 13 de janeiro de 2003, Ana comanda equipes em três sedes – no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília – e tem no momento 18 clientes. Faz um balanço positivo da época em que trabalhou na capital do país, porém hoje não aceita trabalhos ligados a políticos ou partidos. “Foram tempos bons, mas que ficaram para trás. Cumpri minha missão.”

Sem exceção, todos os presidentes da República viram a imprensa como um elemento hostil. Porém, ao contrário de outros, Fernando Henrique não fez ameaças aos meios de comunicação e não deixou de dar entrevistas a repórteres que o criticaram. “Nesse aspecto o presidente foi impecável”, ressalta Ana Tavares. “Ele aguentava as pressões sem reclamar, sem se queixar. Foi sempre um estadista.”

Ana prossegue: “Fernando Henrique era alguém que sempre conseguia manter o equilíbrio, a organização mental”, garante Ana. “Lia e ouvia coisas pesadíssimas, mas agia com serenidade. Nunca vi ninguém igual”, elogia. Em entrevista ao jornal O Globo em 2002, o presidente reconheceu a competência da assessora que permaneceu à frente do cargo por oito anos, superando de longe antecessores como os jornalistas Alexandre Garcia (governo Figueiredo), Fernando César Mesquita (governo Sarney) e Cláudio Humberto (governo Collor) e retribuiu: “A Ana tem qualidades que são raras: lealdade, intuição, competência no lidar com a área e franqueza, uma franqueza que pode até irritar, mas que é necessária, sobretudo para quem está no centro do poder”.



Jogo de futebol entre jornalistas, membros do Legislativo e do Executivo - 13/08/1995


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Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação - Sig e A História do Pasquim" (Matrix, 2022).

 

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