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Acervo FHC e Ruth » FHC: Ação Política

O protagonismo que o Brasil exerceu na América Latina

Em seus dois mandatos, Fernando Henrique soube dar ao país um papel de relevância na condução dos temas políticos, econômicos e diplomáticos do continente

Como presidente eleito, a primeira referência sobre a América Latina que Fernando Henrique Cardoso anotou em seu diário, em dezembro de 1994, revelava um interesse bem específico: o seu desejo de nomear um civil para comandar o futuro Ministério da Defesa, um de seus projetos de governo. Enquanto amadurecia a ideia, que só se concretizou em 1999, ele já sentia que essa decisão se afinava não apenas com questões de âmbito nacional, mas também com uma tendência que ocorria em outros países do continente. 

“A importância de consolidar a democracia na América Latina e o papel que os militares desempenhariam em seus países era uma das preocupações do presidente Fernando Henrique. Era também um tema novo”, lembra Celso Lafer, que assumiu o Ministério das Relações Exteriores em janeiro de 2001, já na metade final do segundo mandato.

Ao subir a rampa do Palácio do Planalto em janeiro de 1995, FHC estabeleceu a política externa como uma de suas prioridades. Sua intenção era que o país assumisse um papel cada vez mais ativo no panorama político e econômico internacional, caracterizado pela globalização. Na América Latina, o objetivo era promover uma maior integração regional e aumentar o protagonismo do Brasil na região. E ele queria ter um papel central na condução dessa política. 

Para tanto, precisava de um chanceler afinado com ele. Sua escolha pessoal foi o embaixador Luiz Felipe Lampreia, que havia sido secretário-geral do Itamaraty durante o período em que o próprio Fernando Henrique esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, entre 1992 e 1993 (governo Itamar Franco). Trabalharam juntos por seis anos e continuaram amigos até a morte de Lampreia, em 2016. 

Com vasta experiência nos meios acadêmico, diplomático, no setor público e privado, Lafer foi o escolhido para substituir Lampreia no Ministério das Relações Exteriores nos últimos dois anos do governo FHC. Os dois já tinham uma longa trajetória de convívio no meio acadêmico desde a década de 1970, na formação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e também na estruturação da primeira campanha de Fernando Henrique ao Senado Federal, em 1978 pelo MDB, que marcou sua estreia na política.

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A importância do contexto regional

Lafer sabia como o presidente pensava e já tinha, portanto, uma noção clara de como deveria dar seguimento à política externa do governo FHC à frente do Ministério das Relações Exteriores, cargo que já havia ocupado anteriormente. “Mesmo antes de assumir a pasta, eu tinha um relacionamento próximo com o presidente e muitos de seus ministros. Era íntimo das ações do governo”, destaca Lafer. 

No Itamaraty, Lafer buscou aprofundar o modelo de cooperação regional: “É aquele que provém dos inter‑relacionamentos que ocorrem entre países que compartilham uma mesma área geográfica”. Ao analisar o contexto histórico e geográfico da América Latina, o ministro compreendia que no continente existiam formas compartilhadas de inserção no sistema internacional. “Estas formas são uma herança da experiência colonial. Deve-se ao fato de a América Latina ser, historicamente, o resultado não apenas da expansão do universo econômico europeu, mas também, em maior ou menor extensão, do universo democrático, social e cultural da Europa”. 

Mercosul não era opção, era destino 

Brasil e Argentina eram os países mais importantes do bloco e ambos tinham interesse no sucesso do Mercosul, fundado em 1991 por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. A Argentina, por ver no Mercosul uma porta de acesso ao mercado interno brasileiro, e o Brasil, por enxergar no país vizinho um mercado complementar ao seu e um espaço para que suas empresas pudessem se fortalecer e participar em melhores condições da competição global. Nem tudo correu conforme o previsto, devido a diferenças nas políticas macroeconômicas e comerciais entre os dois países, mas houve importantes avanços. 

Em junho de 1999, Fernando Henrique chegou a avaliar a proposta de criação de uma moeda comum no Mercosul, como o presidente argentino Carlos Menem havia sugerido. “O caminho para chegar lá é fazer um pequeno Maastricht (FHC fazia alusão ao tratado assinado pelos países membros da comunidade europeia que estabeleceu as bases legais do euro). Ou seja, leis de responsabilidade dos dois lados”. A ideia não prosperou.

Ainda assim, havia o entendimento de que tensões comerciais localizadas e supostamente momentâneas, não deveriam comprometer o futuro da integração. Na definição de Celso Lafer, “o Mercosul não era opção, era destino”. Mais de vinte anos depois, o Mercosul enfrenta dificuldades, mas continua vivo e com muitos desafios pela frente, entre eles a conclusão de um acordo comercial com a União Europeia.

Discurso de FHC na Reunião do Conselho do Mercosul; junho de 1999

Convenção América Latina, Caribe e União Europeia; Rio de Janeiro; 1999

A ALCA: avanços e retrocessos

Outra questão diplomaticamente delicada era a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Proposta feita pelo presidente Bill Clinton, durante a Cúpula das Américas, em Miami, em 9 de dezembro de 1994, a ALCA tinha o objetivo de eliminar as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, com exceção de Cuba, formando uma extensa área de livre comércio unindo as três Américas e o Caribe. A estratégia era a de gradualmente suprimir as barreiras ao comércio, prevendo-se a isenção das tarifas alfandegárias para quase todos os itens de comércio. Porém, uma das dificuldades para a formação do bloco era a enorme disparidade entre a economia dos EUA e a dos demais países. 

A intenção dos EUA era acelerar o processo, porém Fernando Henrique defendeu que era preciso ter paciência, frisando que, do contrário, as negociações poderiam não evoluir a contento. Clinton concordou e, na memória de Fernando Henrique, elogiou o Brasil por ter uma “posição muito construtiva”, ressaltando que, “apenas em alguns casos os interesses econômicos eventualmente se chocam”.

Embora o Brasil ainda tivesse dúvida se a ALCA seria boa ou não para os interesses brasileiros, o governo FHC nunca pensou em abandonar as negociações. Quem defendia a ruptura era a oposição, representada pelo PT, alguns partidos de esquerda e os movimentos sociais, como o MST. Assim, tudo mudaria com o fim do governo de FHC, em 2003. O novo governo brasileiro, chefiado por Lula, não demonstrava interesse. E o próprio governo dos Estados Unidos, comandado por George W. Bush, deixou de lado a bandeira do livre comércio nas Américas e focou mais no combate ao terrorismo mundial, sobretudo após o atentado contra as Torres Gêmeas em 2001

Dependência e desenvolvimento na América Latina 

Em 1968, quase três décadas antes de assumir o Planalto, FHC e Ruth Cardoso viveram exilados em Santiago do Chile, período em que ele formulou aquela que talvez tenha sido a sua principal contribuição intelectual ao debate sobre a América Latina, que ficou conhecida como teoria da dependência. 

Escrito em conjunto com o sociólogo chileno Enzo Faletto (quando os dois trabalhavam para a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe das Nações Unidas), o livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina estudava a situação de dependência dos países mais pobres em relação aos mais ricos, mas trazia uma inovação, contrária ao pensamento dominante na Cepal: ambos recusavam, por exemplo, a ideia de que a dependência implicava necessariamente estagnação econômica. 

Embora tenha sido escrita por dois sociólogos, a teoria foi considerada uma das principais contribuições latino-americanas ao pensamento econômico nas décadas de 1960 e 70 e se tornou um marco da sociologia latino-americana. A proposta dos autores foi formular um esquema de interpretação com ênfase na dinâmica política entre as classes e os grupos sociais, no contexto de cada país.

“A atuação do presidente nos campos político, econômico e diplomático lhe deu uma respeitabilidade que era reconhecida pelos seus pares”, lembra Celso Lafer. 

Conhecedor de temas internos e externos

Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Lafer acrescenta ainda que Fernando Henrique aprofundou seus conhecimentos sobre a América Latina quando lecionou em importantes universidades da França e dos Estados Unidos. Como senador da República, cargo que exerceu de 1983 a 1994, teve papel relevante no processo de redemocratização do país e adquiriu sensibilidade para a negociação política e diplomática, aprimorada durante sua passagem pelo Itamaraty no governo Itamar Franco.

Por fim, como ministro da Fazenda, Fernando Henrique foi responsável pela implantação do Plano Real, que deu estabilidade à economia brasileira e a colocou em outro patamar. “A atuação do presidente nos campos político, econômico e diplomático lhe deu uma respeitabilidade que era reconhecida pelos seus pares”.

El pensamiento socioeconómico latinoamericano, las últimas cuatro décadas - Artigo de FHC na revista Nueva Sociedad; agosto de 1995

Negociador da paz entre Peru e Equador

Ao debate teórico, Fernando Henrique acrescentou movimentos práticos. Seu primeiro teste se deu em março de 1995, quando esteve no Chile e foi recebido pelo presidente Eduardo Frei e todo o seu gabinete. Antes desse encontro, Fernando Henrique havia estado com Luis Alberto Lacalle, presidente do Uruguai, num jantar que também reuniu os presidentes do Peru e do Equador. Aí, pela primeira vez em seu mandato, Fernando Henrique pôde mostrar seu talento como hábil negociador.

Nesse encontro, FHC testemunhou que os então presidentes do Peru e do Equador se negaram a se cumprimentar. O motivo da briga vinha de uma disputa territorial entre os dois países iniciada em 1828 e que desde então se arrastava. Inúmeras tentativas foram feitas para definir as fronteiras, mas ambos os governos não conseguiam chegar a um acordo. O momento mais grave ocorreu em 1981, quando houve um breve confronto militar e o exército peruano assumiu o controle de três destacamentos militares equatorianos. 

A situação só seria controlada a partir de 1992, quando os presidentes dos dois países se comprometeram a procurar uma solução pacífica para o conflito. No entanto, em janeiro de 1995, estourou uma nova guerra, pelo controle de vários postos avançados localizados dentro de uma faixa de 78 quilômetros de território que ambos os países alegavam como sendo seu. 

Preocupado com a possibilidade de um conflito armado na vizinhança do território brasileiro, Fernando Henrique decidiu assumir o papel de interlocutor e negociador junto aos dois governos. Após muitas negociações, a situação se alteraria no período de três anos. Houve então uma troca de presentes, elogios e homenagens que marcaram a cerimônia de assinatura do acordo de paz entre peruanos e equatorianos. 

A solenidade, no Palácio do Itamaraty, em 1998, teve o presidente Fernando Henrique Cardoso como anfitrião. Junto de outros seis presidentes latino-americanos e do rei da Espanha, os presidentes do Equador, Jamil Mahuad, e do Peru, Alberto Fujimori, abraçaram-se efusivamente por três vezes e cumprimentaram-se com apertos de mãos outras quatro vezes. “Nessa questão específica, Fernando Henrique teve um papel importantíssimo”, destaca Lafer. “Ele foi o grande negociador, atuando como mediador em uma longa disputa que afetava os dois países vizinhos”.

Grupo del Río; 1997

Herdeiro de uma tradição diplomática respeitável

Para Lafer, numa reflexão mais abrangente e em consonância com o conhecimento histórico, o governo do presidente Fernando Henrique tinha a exata noção de seu papel. Era um governo que sabia ser herdeiro da tradição diplomática importante que o Brasil sempre teve na América Latina, atuando na consolidação das fronteiras, na manutenção da paz e no estímulo à cooperação entre os países-vizinhos. “O presidente sabia do valor que o capital diplomático que o Brasil lhe dava poderia representar na busca de entendimento com todos os países”, avalia o ex-ministro, hoje presidente do Conselho Curador da Fundação FHC.

Além dos aspectos diplomáticos, uma pauta comum que aproximava os presidentes da América estava vinculada aos assuntos econômicos. Ao mesmo tempo que registrava que “todos estão com a ideia de que as nossas economias vão bem”, Fernando Henrique também anotou que “um raio de fora cai na nossa cabeça num dia de céu azul” e que a “instabilidade financeira que tentamos mostrar” é um problema que “transcende à América Latina que se deve encarar como um defeito do sistema internacional de sustentação dos Bancos Centrais”. Em específico, o presidente se referia às perdas financeiras decorrentes de fraudes em investimentos especulativos que levaram o Banco Barings à falência, em fevereiro de 1995.

Un nuevo equilíbrio mundial; artigo de FHC na revista Archivos del Presente; 2005

Combate constante ao narcotráfico

Pela extensão territorial, pela força econômica, era natural que o Brasil assumisse um protagonismo na região. A América Latina viveu, no período que vai do final do século 20 a meados da segunda década do século 21, uma decolagem econômica e social sem precedentes em sua história. Era proposta de todos os governos consolidar a democracia, reduzir a pobreza, criar mais e melhores empregos, elevar a qualidade de vida de seus cidadãos e cidadãs. Naquele momento, não parecia algo utópico, mas alcançável em um prazo relativamente curto de tempo. Reforça Lafer: um dos problemas básicos da política externa do Brasil e da América Latina, o de buscar compatibilizar os interesses nacionais e regionais nos campos estratégicos e econômicos, encontrou todos os líderes latino-americanos comprometidos com esse esforço comum.  

Outro exemplo: não apenas as questões ligadas à política e à economia exigiam a atenção dos governos latino-americanos. Era preciso também exercer um forte combate a um inimigo que atingia a todos os países da região: o narcotráfico. Lafer lembra que, ainda que o problema da transnacionalidade do crime à época não tivesse a intensidade que tem hoje, o assunto já era uma questão que clamava por uma ação conjunta, principalmente na fiscalização das fronteiras.

Na condução da política diplomática brasileira, Fernando Henrique – na visão de Celso Lafer – soube inserir o Brasil em um cenário global, ao mesmo tempo que abria o país para um esforço de cooperação regional que, embora incompleto, segue dando frutos até hoje, mais de duas décadas depois.

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Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação - Sig e A História do Pasquim" (Matrix, 2022).

 

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