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Acervo FHC e Ruth » FHC: Ação Política

Fernando Henrique começa a governar o Brasil

No primeiro ano, Fernando Henrique aprova reformas essenciais para consolidar a nova moeda, enfrenta crises externas e internas e uma oposição intransigente

O primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso seria repleto de desafios – para o país e para o presidente da República recém-empossado. “Minha intenção era gravar todos os dias”, escreveu FHC na primeira anotação no diário em que ele pretendia fazer um relato do seu cotidiano à frente da Presidência e que, 15 anos mais tarde, seria publicado em quatro volumes pela editora Companhia das Letras. “Mas, passado quase um mês que estou no governo, é a primeira vez que gravo”, justificou-se como forma de dizer que os primeiros 30 dias foram mais pesados do que ele poderia imaginar. “O tempo, hoje, não dá para isso”, reflete. E conclui logo a seguir: “A agenda de um presidente é desumana: compromissos no café da manhã, no almoço, no jantar, dia de trabalho incessante e, mais ainda, o telefone, que é a angústia cotidiana.”

“A agenda de um presidente é desumana: compromissos no café da manhã, no almoço, no jantar, dia de trabalho incessante e, mais ainda, o telefone, que é a angústia cotidiana.”

Fernando Henrique subiu a rampa do Palácio do Planalto em 1º de janeiro de 1995 à frente de um governo de centro que tinha como principais pilares o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira e o PFL (Partido da Frente Liberal, uma dissidência do PDS, partido de sustentação do regime militar). O PSDB tinha como seus principais quadros políticos e intelectuais de centro-esquerda com um histórico de luta contra a ditadura. Já o PFL era formado por políticos de centro-direita que haviam apoiado a ditadura, mas romperam com o regime, que já vivia seus últimos dias, em 1984, e apoiaram a eleição indireta de Tancredo Neves para o Planalto em janeiro de 1985. Entre eles, o vice-presidente Marco Maciel, eleito na chapa de FHC, e o senador Antônio Carlos Magalhães, o poderoso ex-governador da Bahia.

Transformando a maioria eleitoral em maioria no Congresso

Com a vantagem de receber uma “herança bendita” do presidente Itamar Franco –  sobretudo devido ao êxito do Plano Real, idealizado pela equipe de economistas  coordenada por Fernando Henrique no Ministério da Fazenda –, o primeiro grande desafio de FHC no Palácio do Planalto foi, justamente, colocar em marcha as reformas necessárias para consolidar a nova moeda, modernizar a economia e permitir o crescimento econômico e o desenvolvimento social a médio e longo prazo.

Muitas delas, como a quebra do monopólio das telecomunicações (1995) e da Petrobras (1997), exigiam mudanças na Constituição Federal de 1988 e, portanto, maioria de três quintos dos votos de deputados e senadores. Nada fácil, pois mesmo dentro de sua base de apoio no Congresso nem todos os votos estavam assegurados.

Para conseguir levar adiante seus objetivos, o novo ocupante do Palácio do Planalto necessitava ampliar desde logo a base de apoio que havia obtido na Câmara dos Deputados e no Senado, respectivamente, 36% e 30%, nas eleições gerais de 1994. Com esse objetivo, nomeou dois políticos do PMDB para o seu ministério. Desse modo, o novo presidente iniciou o seu mandato com o apoio de partidos que contavam com 57% das cadeiras na Câmara e 58% no Senado. Além do PSDB, PFL e PMDB, o governo tinha o apoio do PTB. Conhecedor do Congresso, o presidente compôs o ministério concedendo a cada partido espaço proporcional ao tamanho de suas bancadas no Legislativo. 

FHC quer mandar e explicar - Entrevista de Fernando Henrique Cardoso como presidente eleito, 7 de outubro de 1994

Reservou para a chamada “cota presidencial” ministérios estratégicos para os quais nomeou técnicos da sua confiança, a começar pelo Ministério da Fazenda, sob o comando de Pedro Malan, a Saúde, a Educação, a Cultura e o Ministério das Relações Exteriores.

Para a estratégia política do governo, foi fundamental a eleição à presidência da Câmara do jovem, mas experiente, deputado baiano Luís Eduardo Magalhães. Filho do senador Antônio Carlos Magalhães, ele tinha brilho próprio. Havia sido um dos artífices da aliança eleitoral entre o PSDB e o PFL e estava comprometido com a agenda de reformas proposta pelo candidato e pelo presidente recém-eleito. Na arquitetura do poder, a presidência do Senado ficou com o ex-presidente José Sarney, então filiado ao PMDB.  Dos três principais partidos, um tinha a presidência da República, o PSDB, e os outros dois, as presidências das duas casas do Congresso. Essa fórmula iria perdurar até quase o final do segundo mandato do presidente FHC.

Crise cambial ameaça estabilização

Apesar da base reforçada e do clima de otimismo, as dificuldades não tardaram a aparecer. A primeira surgiu sob a forma de uma crise cambial que ameaçou o processo de estabilização da economia, que estava longe de ser consolidado. Os efeitos da súbita desvalorização do peso mexicano em dezembro de 1994 alcançaram o Brasil no terceiro mês de governo do novo presidente. O México havia sido nos anos anteriores o destino de muitos fluxos financeiros atraídos pelas perspectivas positivas despertadas por reformas econômicas modernizadoras e pelo acordo de livre-comércio com os Estados Unidos e o Canadá (NAFTA, na sigla em inglês). 

A desconfiança sobre a sustentabilidade das contas externas mexicanas, porém, cresceu a ponto de provocar uma rápida fuga em massa de capitais daquele país, só controlada quando os Estados Unidos anunciaram um pacote de apoio de emergência. Desconfiança semelhante passou a pairar sobre o Brasil, que acabara de derrubar a inflação e eleger um presidente comprometido com reformas. A razão da desconfiança era a rápida e expressiva valorização da nova moeda, o real, frente ao dólar, positiva para colocar a taxa de inflação em rápida trajetória de queda, mas negativa para as contas externas do país. 

Ciente do problema, o governo buscou corrigir a apreciação excessiva do real sem comprometer a trajetória declinante da inflação. A tentativa de transitar para um câmbio flutuante não deu certo, em grande medida porque o mercado internacional ainda estava sob o impacto da crise mexicana. Depois de três dias de grandes perdas das reservas internacionais, o governo voltou atrás e, em lugar do câmbio flutuante, adotou um regime de bandas cambiais visando corrigir, aos poucos, a valorização excessiva que a nova moeda havia acumulado desde o seu lançamento. Em meio à tempestade, fez uma opção pelo gradualismo, temeroso de perder o seu grande trunfo: a rápida queda das taxas mensais de inflação. O recuo não se fez sem vítimas e problemas. O presidente do BC deixou o cargo e o país incorreu no risco inerente de conviver por tempo mais prolongado com déficits expressivos nas contas externas e maior dependência de capitais de curto prazo para financiá-los.

O Exército é convocado para enfrentar a greve dos petroleiros

No front interno, a primeira grande adversidade se deu em 3 de maio de 1995, no início do quinto mês de governo, quando teve início a greve dos petroleiros, que duraria 32 dias. Convocada pela Federação Única dos Petroleiros, entidade sindical filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e estreitamente ligada ao PT, a paralisação não tinha motivação econômica e sim, política. O alvo era a agenda “neoliberal” do governo, em particular a proposta de quebra do monopólio da Petrobras, encaminhada ao Congresso ainda em fevereiro. 

Com os estoques de combustíveis em níveis críticos, o presidente determinou a ocupação pelo Exército de quatro refinarias da Petrobras para garantir a retomada da produção. A ação surpreendeu os grevistas e foi duramente atacada pela oposição petista, liderada por Luiz Inácio Lula da Silva, que havia sido derrotado por FHC no ano anterior. Para o presidente, a medida se justificava não apenas pelo risco ao abastecimento de combustíveis, mas também como sinal de que não estava disposto a recuar em seu propósito de avançar com a agenda de reformas estruturais. 

O clima de confronto só começaria a desanuviar a partir de uma proposta de alguns deputados do PT, que procuraram o pefelista Luís Eduardo Magalhães, garantindo que os petroleiros voltariam ao trabalho se houvesse algum recuo do governo federal no sentido de punir apenas os principais líderes do movimento e não todos os grevistas.

Aprovação de cinco emendas constitucionais

Em que pese os tropeços e adversidades, o apoio ao presidente na sociedade e no Congresso se mantinha elevado, graças ao declínio persistente da inflação, que alcançaria 25% ao final de 1995, taxa próxima à variação mensal dos preços antes do lançamento do Plano Real. Ao longo daquele ano foram aprovadas nada menos do que cinco emendas constitucionais, que reescreveram o capítulo econômico da Constituição de 1988, até então marcado por restrições ao capital privado, em particular o estrangeiro. 

O governo obteve mais de 3/5 dos votos, em duas votações em cada uma das casas do Congresso, para quebrar o monopólio estatal nas telecomunicações e no setor de petróleo, abrir o setor de energia elétrica e a mineração ao investimento estrangeiro, permitir o ingresso de capital privado no setor de gás e na navegação de cabotagem, além de acabar com a distinção entre empresa brasileira de capital nacional e empresa brasileira de capital estrangeiro. 

Parte dessas mudanças da Constituição não era, porém, autoaplicável. A quebra do monopólio nos setores de telecomunicações e petróleo teria que se desdobrar em complexas legislações complementares, que requeriam aprovação por maioria absoluta na Câmara e no Senado. A agenda de reformas, no segundo ano do mandato, incluía ainda duas emendas constitucionais cuja aprovação se afigurava muito mais difícil do que havia sido a das emendas constitucionais ao capítulo econômico. Elas tocavam em temas sensíveis e em interesses corporativos arraigados. Uma visava equilibrar as contas do INSS, que apresentava tendência a déficits crescentes, e da previdência dos funcionários públicos, já muito deficitária. A outra consistia na reforma da administração pública, para modernizar as suas estruturas e modos de gestão. 

Os efeitos colaterais do fim da inflação

Não havia céu de brigadeiro pela frente. Consolidar a estabilidade da moeda depois de décadas de inflação alta, crônica e crescente produz muitos efeitos colaterais. A queda da inflação era benéfica para os assalariados, em especial os de menor renda, mas afetava negativamente as contas dos estados que haviam dado aumentos salariais maiores do que a variação do índice de preços no correr do ano. Vários dos governadores que assumiram em março deram reajustes na expectativa de que a inflação seria maior e corroeria o valor real das despesas com a folha de pagamento. O governo federal teve de socorrê-los com empréstimos para evitar que deixassem de honrar os seus compromissos. A queda da inflação revelou também os desequilíbrios de alguns bancos que viviam de ganhos inflacionários. 

Em agosto de 1995, o Banco Central interveio no Banco Econômico e, em novembro, no Banco Nacional. Não eram bancos quaisquer, embora não estivessem entre os maiores do país. O Econômico tinha sede em Salvador e seu principal controlador, Ângelo Calmon de Sá, era um empresário muito próximo do senador Antônio Carlos Magalhães. Sob sua liderança, os parlamentares da Bahia reagiram à intervenção do BC como se fosse uma declaração de guerra ao Estado. O presidente Fernando Henrique teve de tomar posição firme, respaldando a decisão do BC, e serena, para debelar o que poderia ter sido uma crise política de maiores proporções em sua própria base de apoio. 

Já o Banco Nacional pertencia à família Magalhães Pinto, do ex-governador de Minas Gerais, José de Magalhães Pinto, que tinha relações de parentesco com familiares de FHC. Diante da acumulação de sinais de que o país corria o risco de assistir a uma crise bancária, o governo decidiu adotar um programa de reestruturação do sistema financeiro privado que criava condições para a venda dos bancos insolventes para novos controladores e o afastamento e punição dos sócios controladores anteriores. 

Ainda que necessário, o Proer serviu à oposição um prato feito para atacar o governo. Não era fácil explicar à população a lógica do programa. Mais fácil era dizer que FHC decidira salvar os banqueiros. Ao lado das privatizações, o Proer seria o alvo preferencial dos ataques da oposição ao longo dos dois mandatos de FHC. Liderada pelo PT, a oposição ao governo seria inclemente no Congresso e ativa na sociedade.

Primeiro ano termina com saldo positivo

Enquanto FHC enfrentava os desafios de conduzir o Brasil, o líder da oposição Luiz Inácio Lula da Silva percorria o país em suas Caravanas da Cidadania, percorrendo 26 estados e 359 cidades entre 1993 e 1996, sempre com um discurso extremamente crítico, visando a próxima eleição presidencial (1998).

Como se fosse pouco, da intervenção do BC no Banco Econômico resultou o chamado “escândalo da pasta rosa”, que eclodiu ao final de 1995. Tratava-se de listas encontradas na sede do banco com os nomes de políticos que haviam recebido doações na campanha eleitoral de 1994. Havia candidatos a governador, senador e deputado, com os respectivos valores doados anotados em frente a cada um dos nomes. Todos pertenciam a partidos aliados ou próximos do governo FHC. À época, a legislação vedava a contribuição de empresas a partidos e candidatos. 

Com desafios pendentes na agenda de reformas que requeriam maioria de 3/5 na Câmara e no Senado e um ambiente político menos favorável, o presidente FHC decidiu agregar mais um partido ao seu ministério e à sua base de apoio no Congresso. Com a nomeação do deputado federal pelo Rio de Janeiro Francisco Dornelles para o cargo de ministro da Indústria e do Comércio, formalizou a adesão do PPB à base governista. Perdeu o cargo a ministra Dorothea Werneck, a única mulher a integrar o gabinete que tomara posse com Fernando Henrique. 

 O primeiro ano de mandato terminou com um saldo positivo para o governo, mas com desgastes políticos importantes. Como se verá, o ano de 1996 tampouco seria fácil para o presidente. A ideia de fazer gravações diárias para o seu diário teria de ser definitivamente arquivada.


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Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação - Sig e A História do Pasquim" (Matrix, 2022).

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