Debates
21 de junho de 2023

México: uma democracia em perigo?

Neste webinar, conversamos com dois renomados intelectuais mexicanos: Luis Rubio, presidente do México Evalúa-CIDAC, e Blanca Heredia, diretora do  Centro de Investigación y Docencia Económicas A.C. (CIDE).

A democracia no México enfrenta graves problemas, mas não está sob perigo iminente de desmoronar. Isso se deve principalmente ao poder de algumas instituições como a Suprema Corte de Justiça e o Instituto Nacional Eleitoral, que ganharam independência e prestígio ao longo deste século, com o fim de um regime dominado por um só partido, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México de 1929 a 2000, recorrendo a frequentes fraudes eleitorais e à concentração de poder na Presidência da República.

“O projeto do presidente López Obrador tem sido o de reconstruir a velha presidência mexicana onipotente. Ele representa uma resposta da velha classe política, historicamente denominada nacionalista-revolucionária, contra as reformas liberalizantes do período de transição democrática”, disse Luis Rubio, presidente do México Evalúa-CIDAC, centro independente de análises e estudos sediado na Cidade do México.

“Desde o primeiro dia de governo (1º de dezembro de 2018), López Obrador tem buscado implementar um projeto que vai além do seu governo e cuja ambição é inaugurar um novo regime político. Ele tem tido êxito em estabelecer uma nova narrativa, com fortes elementos simbólicos, e mudou completamente a maneira como nós, mexicanos, discutimos e brigamos sobre política atualmente”, disse a cientista política Blanca Heredia, diretora do Centro de Investigación y Docencia Económicas A.C. (CIDE).

Andrés Manuel López Obrador, também conhecido, por suas iniciais, como AMLO, disputou sua primeira eleição presidencial, em 2006, pelo Partido da Revolução Democrática (PRD), criado a partir de uma cisão à esquerda do então partido dominante, o PRI, no fim da década de 1980. Perdeu para o candidato do Partido da Ação Nacional (PAN), de centro-direita, por uma margem ínfima de votos. Já então se apresentava como o candidato anti-establishment.

Na sua terceira tentativa, em 2018,  López Obrador finalmente chegou ao poder, sete anos após ter fundado o Movimento de Regeneração Nacional, ou MORENA, em 2011. Desta vez, não apenas venceu o pleito presidencial, mas o fez pela maior margem de votos, 53%, obtida desde que eleições realmente competitivas se estabeleceram no país, em 2000. Além disso, o MORENA conquistou a maioria dos assentos na Câmara de Deputados e no Senado.

Segundo Blanca Heredia, AMLO mobilizou, durante os anos de implantação do MORENA, e encarnou, na campanha eleitoral de 2018, a insatisfação contra as promessas não cumpridas da modernização econômica, cujos frutos se distribuíram de maneira muito desigual entre as regiões e as classes sociais, e da democratização política das últimas três décadas, em particular o combate efetivo à corrupção, que continua endêmica, e o narcotráfico, cujo grau de violência só fez crescer.

Num país que cultiva a história, apresentou-se como o líder de uma grande transformação, a quarta do México independente. As três anteriores seriam, pela ordem cronológica: a independência da Espanha, consolidada em 1821; a reforma liberal, com a separação entre Estado e Igreja, consagrada na Constituição de 1869; e a Revolução mexicana de 1917, que abriu o caminho para o fortalecimento do Estado e da economia nacional, em especial a partir da nacionalização do petróleo, em 1938.

Dessa perspectiva, a terceira grande transformação teria se esgotado ao final dos anos de 1980, quando, na visão de AMLO, o México se rende à globalização, por intermédio do NAFTA, o acordo de livre-comércio com os Estados Unidos e o Canadá. A quarta transformação, que ele prometeu iniciar com a sua chegada ao Palácio Nacional em 2018, consistiria em retomar o projeto nacional conduzido pelo Estado, sob a forte liderança de um presidente apoiado pelas massas populares, e projetá-lo para o futuro.

“Vivemos um paradoxo: com López Obrador, a figura do presidente se fortaleceu, mas o governo federal continua a ter muitas dificuldades em garantir uma cidadania plena a todos os mexicanos”, disse Rubio.

AMLO busca minar pilares do regime democrático

Contrariamente às expectativas, AMLO tem se mostrado pragmático na gestão da macroeconomia e das relações com os Estados Unidos. Conquistou a confiança dos mercados e renegociou o NAFTA sem rompê-lo, aceitando as imposições protecionistas de Trump. Ele se distingue, isto sim, pelo estilo político. A cada manhã se dirige por rádio e TV à população, nas chamadas “mañaneras”, nas quais não poupa ataques às elites e aos adversários, e pelo empenho sistemático em concentrar poder simbólico e real na Presidência da República.

Ele fez das instituições do sistema de freios e contrapesos o seu alvo principal. Por outro lado, aproximou-se dos militares, aos quais entregou postos estratégicos do Estado e, contrariando promessas de campanha, manteve à frente do combate ao narcotráfico.

“Apesar de todo o esforço presidencial no sentido de reduzir o poder de instituições independentes, o Banco do México e o INEGI (Instituto Nacional de Estadística y Geografía) seguem firmes. A Suprema Corte de Justiça e o Instituto Nacional Eleitoral também, embora um pouco debilitados”, disse Blanca. 

“A grande pergunta do momento é se as estruturas democráticas que têm resistido às investidas presidenciais serão fortes o suficiente para garantir que o atual governo conclua seu mandato no tempo e na forma previstos, e para que ocorra uma transição normal para um novo governo, seja ele qual for”, disse Rubio, que é autor e editor de 52 livros, sendo o mais recente “La nueva disputa sobre el futuro: Ideas viejas para un México moderno” (GRIJALBO, 2021).

“Quem quer que seja o próximo presidente, homem ou mulher, da situação ou da oposição, terá muita coisa a fazer, o que representa também uma grande oportunidade para a consolidação da democracia no México”, continuou Rubio. No México, o presidente da República é eleito para um mandato de seis anos, sem reeleição consecutiva. Ou seja, López Obrador não poderá se recandidatar ao cargo em 2024, mas terá papel decisivo na escolha de seu sucessor ou sucessora.

Em 2024, o partido do presidente quer conquistar dois terços do Congresso

Segundo Rubio, López Obrador tem utilizado de sua força política e do cargo que ocupa para tentar desqualificar qualquer outro pré-candidato ou pré-candidata que não seja do MORENA nas eleições gerais de junho de 2024, em que serão eleitos o próximo (ou a próxima) presidente, governadores, senadores e deputados federais. 

“López Obrador capturou uma base social de grande importância  que se sentia excluída, e de fato tem dominado a política nacional nos últimos anos. Mas, apesar de sua retórica hegemônica, o panorama político é mais complexo e competitivo do que ele pretende fazer parecer. Nas eleições intermediárias de 2021, a oposição venceu em nove das dez principais cidades mexicanas. Se somarmos os votos dos candidatos de oposição, eles tiveram 1 milhão de votos a mais do que os candidatos do MORENA”, disse Rubio.

“A realidade é que há narrativas contrastantes e divisões muito profundas na sociedade mexicana”, seja entre regiões, seja em termos de renda”, afirmou. “Estamos vivendo um período de retrocesso democrático, mas ao mesmo tempo surgem resistências e forças que podem constituir o cimento de uma democracia mais profunda e sólida. No final das contas é possível que Obrador acabe levando à criação de um país mais moderno e democrático que, de certa forma, ele queria cancelar.”

MORENA será o novo PRI?

Segundo Blanca Heredia, as eleições gerais de 2024 serão fundamentais para o projeto de López Obrador de fazer do MORENA um partido hegemônico, como o PRI foi em boa parte do século passado: “Se ele conseguir eleger seu sucessor e, sobretudo, se ele ‘arrasar’ nas eleições para o Congresso da União (Parlamento), como promete fazer, são grandes as possibilidades de reconfiguração de um regime de partido hegemônico.”

“A pergunta central que ronda a política mexicana hoje é se os limites do poder presidencial continuarão a sofrer restrições, como as que ainda perduram, ou serão cada vez mais diluídos, com a debilitação das condições que tornam possível o pluralismo político e a competição eleitoral efetiva. Tudo ou muito vai depender do que acontecer em 2024”, disse a cientista política.

Segundo Blanca, no regime de partido hegemônico — como o que o México viveu entre 1929 e 2000 com o PRI — o partido dominante não elimina todo o pluralismo político, mas o limita. “Na tradição política mexicana, o regime de regime de obediência política não é produto de simples coerção, mas do consentimento voluntário das classes políticas, empresariais, trabalhadoras e da maioria da sociedade. Com seu discurso dominante, López Obrador busca conquistar esse consentimento voluntário para seguir no centro do poder.”

Apesar da comparação com o longo período de dominância do PRI, Blanca salientou que o MORENA é um movimento político recente, criado em 2011 pelo próprio AMLO, e nada garante que se torne hegemônico por um período mais longo. “O que temos hoje é um presidente da República que busca uma personalização extrema do poder, por meio de uma narrativa exitosa que garantiu a ele uma ampla base social. Sua intenção em 2024 é eleger seu sucessor ou sucessora e conquistar dois terços do Parlamento para, então, fazer do MORENA uma espécie de novo PRI”, concluiu Blanca.

México não tem estratégia nacional para combater o narcotráfico 

Segundo Luis Rubio, os diversos governos do período de transição democrática fracassaram na tentativa de combater o narcotráfico, que controla hoje territórios onde vivem milhões de mexicanos. Este é um tema que terá de ser enfrentado pelo próximo presidente, junto com os governadores e prefeitos.

“O México simplesmente não tem uma estratégia integrada de combate à violência envolvendo o governo federal, os governos dos estados e das cidades. O Exército não tem meios para enfrentar os cartéis, e o governo federal não tem as estruturas de justiça e de polícia para garantir a segurança da população mexicana, que vive hoje sob permanente extorsão por parte dos narcotraficantes”, explicou.

“A verdade é que os narcos são os donos do jogo. Para mudar isso, seria necessário destinar amplos recursos financeiros e humanos para criar polícias civis profissionais em todo o território, com forte capacidade de investigação, controle e coação, como foi feito na Cidade do México com sucesso. Se houver vontade política e maior integração entre os governos federal, estaduais e municipais, é possível replicar essa estratégia a nível nacional”, disse Blanca Heredia.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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