A economia internacional e o futuro do dólar
Este webinar contou com as participações de Luiz Awazu Pereira da Silva e Otaviano Canuto, dois economistas brasileiros com ampla experiência e sólida formação acadêmica, no Brasil e no exterior.
Existe um processo de “desdolarização” em curso, mas ao mesmo tempo os fatores subjacentes ao domínio do dólar americano continuam prevalentes, o que resulta que essa perda da posição hegemônica seja relativa, parcial e limitada. É um processo que pode, no entanto, ser acelerado pelas mudanças geopolíticas em curso, por ações do governo Trump que minam a credibilidade dos Estados Unidos e por uma crise financeira global, causada por exemplo por um eventual estouro da bolha da inteligência artificial nos Estados Unidos.
Estas foram as principais conclusões deste webinar que reuniu dois economistas brasileiros com grande experiência internacional.
Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo do Banco Mundial, vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), ou seja, esteve em todas as três principais organizações multilaterais com sede em Washington D.C., onde vive. Foi também secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda. Atualmente, é senior fellow do Policy Center for the New South e professor da The George Washington University.
Luiz Awazu Pereira foi vice-presidente do Banco de Compensações Internacionais (Bank of International Settlements, BIS) até recentemente, atualmente é professor visitante da London School of Economics, da Universidade de Tóquio e da Science Po, em Paris, onde vive. Foi diretor do Banco Central do Brasil e secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.
Veja os principais pontos da conversa entre os dois economistas e o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC.
Fausto – Nossa conversa hoje será sobre o estado atual das finanças internacionais, em um contexto de profundas mudanças geopolíticas, tecnológicas, comerciais e nas relações internacionais. Otaviano, em que medida esses processos têm atuado para a redução da hegemonia do dólar como meio de pagamento e reserva de valor? Que implicações têm para o funcionamento do sistema monetário internacional e nas finanças internacionais?
Canuto – Há um processo de ‘desdolarização’ em curso, mas ao mesmo tempo os fatores subjacentes ao domínio do dólar americano continuam prevalentes, o que resulta que essa perda da posição hegemônica do dólar seja relativa, parcial e limitada. É um processo que pode, no entanto, ser acelerado. O dólar continua amplamente hegemônico como meio de pagamento nas trocas comerciais entre os países e como reserva de valor. Mas, como efeito de fatores geopolíticos, como a ascensão da China, e a partir das políticas adotadas pelo governo Trump, temos visto uma busca de substituição do dólar por outras moedas nas trocas comerciais internacionais.
Como reserva de valor, o efeito tem sido menor, pelo menos por enquanto. A adoção do dólar como percentual das reservas globais caiu de pouco mais de 70% no final do século passado para pouco abaixo de 60% atualmente. O euro poderia ser uma alternativa como moeda reserva, mas, para que isso aconteça, a União Europeia tem uma lição de casa a ser feita.
É importante frisar o esforço da China de ampliar o uso de sua moeda, o renminbi, e moedas de países parceiros como meios de pagamento das trocas comerciais bilaterais. Isso é uma tendência devido ao peso cada vez maior do comércio chinês com países de todo o mundo. O Brasil, por exemplo, tem um acordo em vigor, assinado em 2023, que permite que, em princípio, os importadores brasileiros façam pagamentos em reais ou em renminbi, mas isso ainda tem acontecido em pequena escala.
Fausto – Luiz, gostaria que você explicasse as incertezas que levam ao aumento da desconfiança em relação ao dólar como reserva de valor. Em que medida elas são geradas pela própria política econômica do atual governo americano?
Awazu – As relações internacionais não são pautadas apenas por trocas comerciais, elas são relações de poder. Existe um certo espanto diante das políticas de Trump 2.0, como o tarifaço e o uso geopolítico do dólar, porque os economistas são um pouco ingênuos. Como Immanuel Kant, eles acham que o comércio sempre tende a gerar ganhos mútuos e a economia internacional convergirá para a paz perpétua. Mas ao conversar com você, que é um cientista social, sugiro olharmos para Raymond Aron e o conceito de guerra e paz entre as nações. O sistema internacional nunca foi neutro, ele é estruturado por assimetrias de poder e essas assimetrias se refletem na moeda. Ou seja, moeda é poder.
Se um país tem uma moeda que é aceita globalmente, como é o caso dos Estados Unidos, esse país adquire três fontes de poder que estão embutidas nas três funções clássicas da moeda. Primeiro, ele define as normas do sistema financeiro internacional, define o padrão. E os contratos, os mercados e as expectativas de todo o mundo vão ter que se alinhar às suas decisões.
Segundo, se a moeda deste país é um meio de pagamento global, ou seja, se ele controla os canais (ou dutos) de liquidação das transações financeiras e comerciais globais, isso lhe dá um enorme privilégio de acesso à informação, de supervisão e também a instrumentos de coerção e sanção. Ou seja, se o país controla o sistema de pagamentos, controla o sistema bancário internacional.
Terceiro, se uma moeda se torna a reserva de valor preferida, o país emissor da moeda se financia barato, na sua própria moeda, com demanda por ela do mundo todo. É algo muito conveniente porque o país pode pagar o seu déficit de conta corrente com a moeda que ele mesmo imprime e todo mundo aceita. Sabe aquela frase ‘minha moeda seu problema’? É isso que dá aos Estados Unidos da América uma enorme margem de manobra macroeconômica e uma capacidade de executar políticas expansionistas, sem que isso necessariamente desencadeie uma crise fiscal. É o sonho de consumo de qualquer governante.
Ao emitir a moeda central do sistema internacional, no caso o dólar, os EUA controlam a economia global e a moldam aos seus interesses. É o que chamamos de ‘privilégio exorbitante’. Apesar de alguns elementos marginais de desdolarização, o dólar continua dominando nas diversas esferas do comércio, das finanças e como reserva de valor. E essa hegemonia tem bases muito sólidas, estruturais.
Como já indiquei, os EUA têm também o controle da principal infraestrutura de pagamentos internacionais, o sistema SWIFT. (O SWIFT é uma rede de comunicação segura que conecta bancos e instituições financeiras em todo o mundo, permitindo que eles troquem mensagens de forma padronizada e confiável para transações internacionais. Ele não lida diretamente com dinheiro, mas sim com as instruções de pagamento entre instituições). Por fim, as principais instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o BIS operam majoritariamente em dólares e reforçam essa credibilidade.
Ao emitir a moeda central do sistema internacional, no caso o dólar, os EUA controlam a economia global e a moldam aos seus interesses. É o que chamamos de ‘privilégio exorbitante’. Apesar de alguns elementos marginais de desdolarização, o dólar continua dominando nas diversas esferas do comércio, das finanças e como reserva de valor. E essa hegemonia tem bases muito sólidas, estruturais.
Luiz Awazu Pereira, ex-vice-presidente do Banco de Compensações Internacionais (BIS)
Fausto – A pergunta que me surge de imediato é se existe o risco de ocorrer uma crise no sistema em meio a essa transição com efeitos inesperados? Por exemplo, se ocorrer o estouro de uma bolha de ativos, qual o risco dessa transição não ser nada suave? Até porque, como disse o Luiz, ela é uma transição de poder também. E o poder tem uma tendência a ser mais bruto.
Canuto – É verdade (rs). Complementando o que o Luiz explicou sobre o poder exorbitante dos Estados Unidos, há duas pessoas-chave no governo Trump, que são o Stephen Miran (presidente do Conselho de Assessores Econômicos dos Estados Unidos) e o Peter Navarro (conselheiro sênior para comércio e manufatura e considerado o mentor do tarifaço), que, ao invés de ver a hegemonia do dólar como um bônus, vêem isso como um ônus. Para eles, a valorização do dólar é um dos fatores subjacentes ao processo de desindustrialização dos EUA. Aliás, Trump também se refere ao ônus da hegemonia americana ao cobrar dos países europeus e de outros aliados uma fatura maior pela segurança que os EUA garantem a eles. Assim como quando fala que o resto do mundo está ‘estuprando a economia americana’, ‘roubando mercados’ e assim por diante.
Então, esse sentimento de que os EUA teriam um ônus, e não somente um bônus, ao prover a moeda de referência para todo o mundo, é algo que, neste momento, está muito presente na Casa Branca. As consequências disso só não têm sido maiores porque o dólar, ao contrário do que muita gente esperava depois do tarifaço, vem se desvalorizando diante de outras moedas, o que diminuiria esse suposto ônus.
Dito isso, é visível que a tendência é mesmo de um processo, ainda que lento e parcial, de fragmentação do sistema financeiro internacional. Não tenho dúvida de que um novo sistema baseado no renminbi vai se expandir. E quando você tem um sistema fragmentado, com sistemas financeiros paralelos, sem uma regra comum, quando não há harmonia, cooperação e convergência, abre-se espaço para volatilidade, especulações, contaminações e assim por diante.
Awazu – Uma crise pode demorar bastante tempo para acontecer, mas, quando ela se desencadeia, ela acontece muito mais rápido do que se imaginava. Moeda é poder quando existe confiança, previsibilidade e estabilidade. Se o governante de um país poderoso introduz políticas erráticas baseadas em tarifas protecionistas, ele diminui a confiança no seu ativo monetário. Isso não gera, necessariamente, uma crise imediata, mas é um acelerador do processo de perda das condições hegemônicas do dólar.
E tem também a questão da weaponization, que seria algo como a utilização de instrumentos financeiros como arma de pressão internacional. Veja, por exemplo, a questão do proibição de transações com o Banco Central da Rússia e o congelamento dos ativos da instituição, determinadas pelo governo americano após a invasão da Ucrânia, em fevereiro de 2022. Não estou fazendo juízo de valor sobre a invasão militar russa na Ucrânia, mas, ao utilizar o sistema SWIFT para punir a Rússia e reter suas reservas, isso começa a incomodar outros países que começam a pensar ‘se eu fizer alguma coisa contra a vontade política e o poder americano, eu posso ter minhas reservas congeladas também’.
Por fim, os gols contra de Trump não se resumem à política tarifária. Tem também o desequilíbrio fiscal, os desequilíbrios jurídicos, as pressões sobre o Banco Central etc. Tudo isso contribui para solapar a confiança de investidores internacionais e dos países sobre o principal ativo de reserva internacional, que são os treasuries (títulos de dívida emitidos pelo governo dos Estados Unidos para financiar suas atividades), e sobre o dólar como principal moeda de circulação internacional.
Vivemos uma fase de mudanças nas características da hegemonia mundial e há alguns elementos de crise na economia global, mas ainda não é uma verdadeira crise. Diria que o maior risco hoje é de haver uma explosão da bolha da inteligência artificial nos Estados Unidos, com implicações sistêmicas para a economia global. É fato que temos um processo de supervalorização das ações de empresas americanas de IA, com todas as características de uma bolha. Temos um sistema de governança global que melhorou significativamente desde a crise financeira global (iniciada em 2007 nos EUA). Mas não devemos menosprezar o risco de uma nova crise financeira devido a essa bolha da IA.
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Fausto – Recebemos uma pergunta sobre o papel das criptomoedas nesse cenário de mudanças em relação às moedas existentes. Que função elas desempenham hoje na agenda do governo Trump e nos interesses de Trump e sua família?
Awazu – Primeiro temos que distinguir duas coisas. Tem as criptomoedas puras, como Bitcoin e Ethereum, que são ativos voláteis, de caráter especulativo, não têm nenhum lastro e são ativos de risco. A outra categoria são as chamadas stablecoins (em tradução literal, moedas estáveis, que são criptomoedas lastreadas em dólar ou alguma outra moeda ou ativo real). Uma unidade de stablecoin americana (como a USDT, a USDC ou a USD1, esta última apoiada pela família de Trump) equivale a um dólar. Trata-se de uma espécie de dolarização 2.0 porque essas moedas digitais aumentam a demanda por ativos em dólares como lastro.
Canuto – Por que alguém vai querer entregar um título do tesouro americano para lastrear uma stablecoin? Um dos motivos é a facilidade de acesso em países onde a aquisição de títulos norte-americanos não é tão fácil. E tem também dinheiro ilícito, dinheiro escondido. Mas o fato de as stablecoins existentes nos EUA serem lastreadas em dólar tende a aumentar a demanda por títulos do tesouro americano, ainda que o Federal Reserve tenha decidido, ao menos por enquanto, abdicar de lançar sua própria uma stablecoin. Mesmo lançadas por empresas privadas, elas favorecem a hegemonia do dólar.
Já na zona do euro, em princípio a preferência não é por crypto assets, pelo contrário, a ideia é eventualmente criar uma moeda digital emitida pelo próprio Banco Central Europeu. O Brasil parecia também estar caminhando nessa direção, com o projeto do Drex (nome oficial do real digital, a versão em formato digital da moeda brasileira que o BC estuda criar). No entanto, por ora o Drex foi suspenso. O fato é que o entusiasmo de Trump pelas stablecoins não é apenas porque o próprio e sua família apoiaram uma delas, mas também porque elas tendem a reforçar a demanda externa por títulos do tesouro norte-americano.
Fausto – Nos EUA, os emissores de stablecoins atualmente são privados, certo? Como é possível estruturar e dar credibilidade a essas moedas de tal maneira que haja demanda consistente por elas? Me parece que os EUA, ao deixarem de lado a ideia de uma moeda digital do próprio Federal Reserve, estão buscando ampliar o mercado para emissores privados de stablecoins. De que maneira isso não deixa de ser expressão de uma certa agenda econômica, de um certo arranjo de poder?
Awazu – A sua pergunta tem a ver com entender e aceitar que as tecnologias digitais vão ser uma concorrente para a sua própria hegemonia, então como você pode organizar esse processo de maneira que ele possa eventualmente te beneficiar. No caso dos EUA, a USDT, a USDC, a USD1, a PayPal USD (PYUSD), todas essas stablecoins foram criadas por empresas privadas e podem servir, digamos, como moeda alternativa ao dólar nos ecossistemas digitais. Como já dissemos, os tokens digitais são desenhados para manter uma paridade um por um. Eles têm que ser lastreados em reservas, seja em cash, seja em algum ativo de risco zero, que seriam os treasuries.
A China também está envolvida não só em criar uma moeda digital do Banco Central da China, mas também na criação de stablecoins. Agora, tem outras coisas acontecendo que podem, eu diria, causar riscos maiores, como a criação pela China do CIPS (que significa Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços), para ser uma alternativa ao SWIFT.
Neste contexto, o Brasil pode ter um papel importante com o Pix, que já é uma tecnologia extremamente bem-sucedida no país e pode ser expandido para outros países da América do Sul e Latina, diminuindo a dependência regional ao dólar nas relações comerciais entre os países da região.
Fausto – Este é um ponto importante. Seria esta a razão principal pela qual o Pix entrou no radar das sanções do governo americano?
Awazu – Eu acho que sim, porque isso faz parte, faz parte, digamos, de um movimento em uma área onde nós temos domínio tecnológico. Quando você paga com seu cartão de crédito, você recebe uma autorização de pagamento, mas o settlement vai demorar algum tempo. Já o Pix é uma tecnologia barata, com custo praticamente zero, instantânea e segura, de pagamento com liquidação instantânea em real. Se for desenvolvida a nível regional, tem o potencial de favorecer a integração comercial, o investimento regional, enfim abre possibilidades para ter um tipo de organização que contorna a dominação do dólar, o que é olhado com certa desconfiança por quem quer manter a hegemonia da sua própria moeda.
Fausto – Otaviano, você mora nos Estados Unidos há muito tempo? Há sinais de que começou a entrar areia no tarifaço de Trump, que essa política está elevando a inflação e o custo de vida do consumidor americano. Em breve, a Suprema Corte deve tomar uma decisão se o presidente tem autoridade para impor tarifas como fez. Em que medida essas incertezas sobre a sustentabilidade política do governo Trump começa a entrar no horizonte e a afetar mercados e transações?
Canuto – Pesquisas de opinião confiáveis já vêm mostrando essa queda de popularidade do Trump em ritmo muito mais acentuado do que no primeiro mandato dele ou de outros governos. As derrotas eleitorais dos republicanos nas eleições para a prefeitura de Nova York e em três estados no início de novembro indicam isso. É o que explica o arrependimento tarifário dele quando decidiu anular as tarifas sobre alguns produtos brasileiros. Então tem uma percepção crescente do dano que as políticas do Trump estão causando.
No entanto, a economia americana está caminhando em duas estradas, em direções diferentes. Por um lado, a parte de baixo da pirâmide social enfrenta aumento de custo de vida e carestia. Por outro, o boom da inteligência artificial, inclusive por conta dos investimentos em capital fixo, construção de data centers e investimentos em energias renováveis, tem garantido o bom desempenho da economia americana. Mas esse boom beneficia o pessoal de cima da pirâmide. A Meta está ganhando dinheiro como nunca. Por isso, há quem diga que o desempenho da economia está no formato de K, com um traço apontando para cima e outro apontando para baixo.
A economia americana está caminhando em duas estradas, em direções diferentes. Por um lado, a parte de baixo da pirâmide social enfrenta aumento de custo de vida e carestia. Por outro, o boom da inteligência artificial, inclusive por conta dos investimentos em capital fixo, construção de data centers e investimentos em energias renováveis, tem garantido o bom desempenho da economia americana.
Otaviano Canuto, ex-vice-presidente e diretor executivo do Banco Mundial
Fausto – Gostaria de finalizar nossa conversa analisando as estratégias da China, da União Europeia e também do Brasil diante desse cenário de mudança nas finanças internacionais. No nosso caso, é possível construir uma estratégia que, obviamente, não é de autonomia absoluta, mas que amplie nosso grau de liberdade na esfera monetária?
Awasu – A estratégia dos Estados Unidos é, obviamente, preservar a hegemonia deles. Trump quer manter o status quo e ainda reúne vantagens substantivas para conseguir isso, como já vimos. Mas tem também uma contradição fundamental ao estimular, ao mesmo tempo, uma demanda externa infinita por dólares como ativo financeiro e, ao mesmo tempo, desejar um dólar depreciado. Esta é a contradição das políticas que estão sendo implementadas por Trump.
A estratégia da União Europeia é de ser um segundo pilar monetário internacional. A seu favor, tem a moeda única e um mercado de capital consolidados, o projeto de criar um euro digital, um importante trabalho de homogeneização das políticas regulatórias etc. Mas a contradição europeia é que os 27 membros da UE não conseguem se entender para ter uma política fiscal comum. A UE tem um banco central e uma política monetária comum, mas não tem uma política fiscal comum. Isso é um elemento limitador para construir um uma estratégia coerente para que o euro se torne uma moeda de reserva internacional como o dólar.
A estratégia da China, obviamente, é internacionalizar o renminbi e pretende fazer isso, no lado comercial, liquidando o comércio com outros países em sua própria moeda. A China também está desenvolvendo a sua própria rede de transferência de pagamentos internacional, o CIPS. Agora, a contradição chinesa é que eles querem, ao mesmo tempo, manter o controle de capital e um sistema financeiro particularmente fechado. E tem também a questão do rule of law na China. Se você é um investidor e tem um contencioso na China, como é vai resolver?
Finalmente, para concluir, qual deve ser a estratégia do Brasil? Acho que não devemos escolher um ‘lado monetário’. Temos que manter boas relações com os EUA, que nos garante acesso ao dólar, aprofundar os laços financeiros e comerciais com a União Europeia e aproveitar as oportunidades que a China nos traz, como maior parceiro comercial brasileiro. E fazer tudo isso com sabedoria e prudência. Internamente, devemos fortalecer nossa autonomia macroeconômica.
E, como já disse, temos uma oportunidade de ouro de regionalizar o Pix e transformá-lo em uma infraestrutura de liquidação de pagamentos no comércio intrarregional. Não se trata de enfrentar os EUA. Todo mundo se beneficia de uma região, no caso a América do Sul, que tenha um comércio intrarregional florescente. São estas as grandes direções estratégicas que vejo para o mundo.
Para concluir, a minha experiência em matéria de relações financeiras e internacionais é a de que os responsáveis pela sua condução devem ser técnicos, calmos, prudentes, coerentes, consequentes e certamente tomar cuidado com a retórica, ou seja, com o que dizem, porque frases de efeito não ajudam em nenhuma negociação. E um dos elementos que, na minha visão, tem sido absolutamente contraproducente para os Estados Unidos, com impactos no mundo, é a retórica agressiva e autoritária do presidente americano, ao não reconhecer o direito internacional, ao pisar em cima de tratados. Isso tira a legitimidade dos EUA na esfera internacional e adiciona um elemento de fragilização em termos de autoridade moral e autoridade financeira. As pessoas começam a pensar ‘se isso não é um acidente de percurso, já que aconteceu já duas vezes, eu vou tirar um pouco da minha confiança nos ativos americanos e vou tratar de diversificar o meu portfólio.
Fausto – Qual é a importância da aprovação final do acordo UE-Mercosul, que pode acontecer ainda este ano? Isso deve aumentar as transações comerciais e correntes entre os dois blocos e fortalecer o euro como moeda de referência no sistema internacional. Deveríamos olhar isto com bons olhos pelo fato de que a Europa, nessa disputa geopolítica internacional, representa um conjunto de valores mais próximo do que o Brasil professa ao defender o multilateralismo, a democracia e os direitos humanos? Ou estou fazendo aqui uma espécie de devaneio romântico?
Canuto – Não acho que seja um devaneio romântico. Na semana passada foi divulgado um relatório anual feito pela OMC, com a colaboração do G20, sobre a relação entre tarifas e políticas comerciais. O relatório mostra que, se por um lado, evidentemente, as tarifas de Trump elevaram brutalmente o patamar médio das tarifas no mundo e têm o potencial de desarranjar o comércio internacional, por outro lado, tem havido um crescimento de acordos de facilitação de comércio entre países e regiões. Os demais países estão sendo mais proativos na integração comercial. Nunca foi tão alta a probabilidade de finalmente a UE e o Mercosul chegarem ao final desse processo, que começou a ser negociado em 1999 ,e finalmente concluírem o acordo entre os dois blocos econômicos. Seria uma ótima notícia.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.