Desde o Brasil Colônia, há grande desigualdade na posse da terra. Após a Constituição de 1988, a demanda por reforma agrária ganhou força. Nos governos FHC e Lula, as desapropriações se aceleraram e foram criadas políticas de apoio à agricultura familiar e aos assentamentos. O latifúndio improdutivo praticamente desapareceu, substituído pelo agronegócio moderno. A agricultura de base familiar de tamanho médio persiste, principalmente na região Sul, mas no semiárido nordestino uma massa de pequenos proprietários rurais sobrevive graças a programas como aposentadoria rural e Bolsa Família.
Muita terra para poucos: um território de conflitos pelo uso da terra
Desde a época da colonização, a estrutura fundiária no Brasil é extremamente concentrada, ou seja, há grande desigualdade na distribuição das propriedades de terra no país. Em 2017, o Censo Agropecuário revelou que 47,5% da área total do Brasil é ocupada por propriedades rurais de 1.000 hectares ou mais. A demanda por reforma agrária ganhou força com a redemocratização.
Ela havia sido uma reivindicação crescente entre o final dos anos 1950 e 1964. Depois do golpe militar, retrocedeu. Durante o regime autoritário, embora prevista no Estatuto da Terra, aprovado no governo do General Castelo Branco, a reforma agrária não prosperou.
Em 1985, o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária foi lançado. Um ano antes, nascia o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), inicialmente formado por agricultores familiares empobrecidos do Sul do país, sob a influência da igreja católica, em especial de seus setores “progressistas”. Dez anos antes, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) havia criado a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em resposta ao surgimento do MST e à importância recobrada pela reforma agrária, proprietários rurais criaram a União Democrática Ruralista (UDR).
Entre fevereiro de 1987 e outubro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) se tornou a principal arena do debate em torno da reforma agrária. Ali se discutiram temas polêmicos, como: quais terras poderiam ser objeto de desapropriação para reforma agrária, quais os procedimentos necessários para a desapropriação e como deveriam ser pagas as indenizações aos proprietários. As diferentes visões sobre esses temas levaram os grupos a estabelecer compromissos. Prevaleceu a ideia de que a propriedade rural deveria cumprir uma função social e de que o poder público poderia definir critérios para verificar o cumprimento dessa função. Porém, os constituintes deixaram para depois a definição desses critérios e dos procedimentos para efetivar a reforma agrária, por meio de leis complementares.
Apenas em 1993, cinco anos depois da Constituição, a Lei Agrária (8.629/1993) e a Lei do Rito Sumário (76/1993) foram aprovadas, consolidando a estrutura jurídica necessária para as desapropriações das terras consideradas improdutivas. Ao mesmo tempo, o MST crescia, tanto em número de filiados e presença territorial quanto em capacidade de mobilização. Seu crescimento se traduzia no aumento do número de invasões de terra (ou ocupações de latifúndios, na linguagem do movimento), consideradas pelo MST a principal forma de pressão em favor da reforma agrária.
Num país historicamente violento, particularmente no meio rural, não surpreende que a violência no campo tenha aumentado na segunda metade dos anos de 1990, quando a reforma agrária passou do papel à prática. Um caso de grande repercussão nacional e internacional ocorreu em Eldorado de Carajás, em 1996, quando 19 trabalhadores sem-terra foram mortos em confronto com a PM do Pará. O chamado Massacre de Carajás comoveu a opinião pública e o MST conquistou simpatia em setores urbanos de classe média.
Nesse contexto, o MST promoveu uma marcha que culminou com uma grande manifestação em Brasília, em abril de 1997. Seus líderes apresentaram reivindicações diretamente ao presidente FHC em audiência no Palácio do Planalto. As relações entre o movimento e o governo se deterioraram nos anos seguintes. Medidas foram adotadas pelo governo para desestimular as invasões de terra (quem invadisse não teria direito de se beneficiar da reforma agrária), o MST passou a ocupar prédios públicos e chegou a invadir a fazenda do presidente FHC. O ritmo da reforma agrária não diminuiu, mas as desapropriações passaram a se dar principalmente nas regiões Norte e Nordeste, mais afastadas dos principais mercados e cidades do país.
Uma política mais social do que fundiária
A regulamentação do início dos anos 1990 permitiu ao governo FHC por em marcha a reforma agrária. Contribuíram também a queda do preço da terra depois do Plano Real e a valorização dos títulos da dívida agrária, usados para indenizar os proprietários desapropriados. Nos dois mandatos de Lula, a intensidade do programa de reforma agrária se manteve. Como o estoque de terras desapropriáveis já se havia reduzido muito, o governo passou a comprar terras e o programa se tornou mais caro.
Nem FHC nem Lula mexeram nos parâmetros de produtividade utilizados para distinguir terras produtivas de terras improdutivas (os índices de produtividade adotados foram os mesmos do Estatuto da Terra, de 1964). A atualização desses índices teria aumentado o estoque de terras passíveis de desapropriação. Ambos lidaram com as demandas do agronegócio, de um lado, e da pequena produção agropecuária, de outro, por meio de dois ministérios distintos e separados. Apesar da aliança política entre PT e MST, Lula jamais antagonizou o agronegócio.
Tanto no governo FHC como no governo Lula o programa de reforma agrária respondeu antes a objetivos sociais (combater a pobreza no campo) do que econômicos (desenvolvimento de uma agricultura dinâmica baseada na pequena propriedade familiar). Ao longo desse período de 16 anos, políticas de apoio à agricultura familiar e à vida nos assentamentos foram sendo criadas. Apesar disso, a maioria dos assentamentos não conseguiu se tornar autossustentável.
Nos anos seguintes, diante da constatação dos limites do programa de reforma agrária, da maior eficácia dos programas de transferência de renda (Bolsa Família) no combate à pobreza, do ininterrupto esvaziamento populacional do campo e da redução de recursos orçamentários, o programa da reforma agrária foi perdendo força. No governo Temer, se tornou residual, e o Ministério do Desenvolvimento e da Reforma Agrária foi extinto.
Nesse processo, o MST se enfraqueceu. O enfraquecimento veio acompanhado de atos de radicalização, como a invasão e destruição de laboratórios de pesquisa de empresas privadas do agronegócio. Setores de direita passaram a chamar o movimento de “organização terrorista”. Nas eleições presidenciais de 2018, o candidato Jair Bolsonaro venceu por larga margem nos municípios com maior presença do agronegócio.
Apesar da grande quantidade de terras desapropriadas a partir da Constituição de 1988 (CF-88) e dos 9.437 assentamentos existentes hoje no país, a concentração fundiária no Brasil continua a ser a maior entre as principais potências agropecuárias do planeta. Praticamente desapareceu, porém, o latifúndio improdutivo. O quadro hoje é outro: os grandes proprietários rurais são empresas ligadas ao agronegócio de escala global, altamente produtivas. A grande empresa agroindustrial coexiste com uma agricultura de base familiar de tamanho médio, presente em particular na região Sul, onde se organiza em cooperativas, com acesso a capital e tecnologia e, por isso, capaz de competir apesar da menor escala de produção. À margem, encontra-se uma massa de pequenos proprietários rurais, a maioria no semiárido nordestino, que sobrevive graças a programas governamentais. Para eles, mais importante que a reforma agrária, é a aposentadoria rural e o Bolsa Família. Na região Norte, onde a propriedade da terra não raro é disputada à bala, pequenos agricultores e extrativistas são vítimas frequentes de violência. Mais de 30 anos depois do assassinato de Chico Mendes, a realidade naquela região pouco se alterou.