No teatro da política: campanhas eleitorais e democracia (Ato 1)

A exposição “No teatro da política” apresenta o processo da redemocratização do Brasil pós-ditadura militar sob a ótica das campanhas eleitorais disputadas por Fernando Henrique Cardoso, entre 1978 e 1986.

A ideia é compor um arco narrativo dividido em três atos. O conjunto enfoca as campanhas de 1978 para o Senado, de 1985 para a Prefeitura de São Paulo e de 1986 novamente para o Senado, lembrando que os congressistas eleitos naquele ano foram os responsáveis pela escrita da Constituição de 1988. Ao longo desse período, FHC aperfeiçoou facetas de um talento político que foi consolidado a partir da resistência do intelectual ao Estado de exceção.

Neste primeiro ato você vai ver documentos do Acervo Pres. Fernando Henrique Cardoso protagonizando a história que será contada sobre a rearticulação do campo progressista da política brasileira em 1978, no contexto das eleições para o Legislativo. O cenário mostra um governo desgastado pela oposição do MDB, Movimento Democrático Brasileiro, que questiona a legitimidade do regime. Vai encontrar também análises posteriores de FHC sobre sua atuação. É o caso do primeiro texto que, referindo-se a essa campanha, sintetiza como se faz política no país do cafezinho.

A oposição mostra a sua força: 1974 a 1978

Seis anos após a instauração do AI-5, ato institucional que escancarou a postura autoritária do regime militar, o clima era de preocupação para o regime e de esperança, ainda que tênue, para a oposição. No contexto mundial, a crise do petróleo afetou o crescimento da economia, que vinha acelerado durante o período do “milagre brasileiro” (1968-1973). No âmbito político, as eleições foram decepcionantes para o governo. O MDB, partido de oposição, elegeu 16 dos 22 senadores para as vagas em disputa e ocupou 161 das 364 vagas para a Câmara, chegando perto de formar maioria. Uma dura derrota para a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), o partido da situação.

O governo respondeu: em 1976 decretou a Lei Falcão, que proibia os candidatos de usarem o rádio e a televisão para falarem no horário eleitoral. Em 1977, veio o Pacote de Abril, conjunto de leis que fechou temporariamente o Congresso Nacional e instaurou os “senadores biônicos”, parlamentares eleitos de maneira indireta. Em 1978, o governo manteve proibida a eleição direta para presidente e adiou as eleições diretas para governador. Mesmo assim, crescia a oposição institucional “permitida”, por meio do MDB, catalizador de correntes progressistas que vislumbravam diferentes caminhos de mudança política.

Em entrevista da época, FHC opina: “(…) politicamente o MDB é uma frente oposicionista que, a partir das eleições de 1974 nas quais derrotou o governo, passou a ter apoio popular e a significar um canal político de protesto (…) não haverá, portanto, divisão alguma da frente oposicionista: ao contrário, ela se ampliará, dando uma saída eleitoral para as oposições extrapartidárias”.

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Peixe pequeno em mar de peixes grandes: como FHC foi parar lá

Fernando Henrique Cardoso é reconhecido como um intelectual na política e desde cedo viu essas duas vocações se mesclaremFormou-se em Sociologia na primeira turma da Universidade de São Paulo, em 1952 e trabalhou como professor e pesquisador até 1964, quando ocorreu o golpe militar. Nos anos subsequentes viveu exilado no Chile e na França. Em 1968 voltou ao Brasil e foi aprovado para a cátedra de Ciências Políticas na USP, mas teve seus direitos cassados pelo AI-5 e foi aposentado compulsoriamente.

No ano seguinte,  participou da fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP, reduto de colegas também cassados das funções docentes, que tentavam criar um espaço de liberdade para a pesquisa e o pensamento fora da universidade. Em 1974, FHC, junto com outros membros da instituição, elaborou um programa de governo para o MDB, a pedido de Ulysses Guimarães, e desse encontro veio a aproximação com o campo institucional da política. Daí surgiu o convite para a disputa por uma vaga no Senado como representante do Estado de São Paulo. 

Políticos do MDB: de perfil, Orestes Quércia; ao centro, FHC. Sentados, Ulysses Guimarães e Euler Bentes. 1978.

Um caminho inesperado

FHC naquele momento era um intelectual conhecido e um ativista político, mas novato na corrida por cargos. Entrou na campanha de 1978 mais pelo ato simbólico que pela perspectiva de vitória. O candidato paulista favorito do MDB para o Senado era Franco Montoro, nome forte para guiar a oposição à ditadura no Congresso. 

Havia ainda uma incerteza sobre a própria legalidade da candidatura de FHC, devido à sua aposentadoria compulsória da Universidade. Duas semanas antes do pleito, o Superior Tribunal Federal permitiu que ele se candidatasse pelo fato de não ter sido cassado como político. O calouro obteve a segunda maior votação, derrotando Claudio Lembo, candidato da ARENA, uma surpresa para muitos. Com isso, tornou-se o suplente de seu colega de partido. Quatro anos mais tarde, assumiu a vaga no Senado, quando Montoro se elegeu governador. 

Nasce um candidato e uma campanha: corpo a corpo e mão na massa

Essa foi a primeira corrida eleitoral de um candidato cuja vivência anterior se resumia à atuação política extrapartidária. Momento de aprendizado em um contexto no qual ainda vigorava a ditadura e a própria noção de campanha política estava se reconstruindo.

Os documentos mostram uma jornada modesta, quase artesanal, com textos rodados no mimeógrafo e faixas em silk. Fernando Henrique tinha postura de ativista, cercado por militantes, jovens voluntários que se posicionavam contra o regime.


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São Fernando

Os santinhos são documentos incontornáveis nas campanhas eleitorais: pequenos impressos que destacam a foto, o nome, o número do candidato e suas principais bandeiras. Alguns trazem as “dobradinhas”, apoios entre candidatos de um partido para cadeiras do legislativo estadual e federal, que se juntam na divulgação de suas candidaturas. Santinhos funcionam também como “cola” para o momento de transcrever o número do escolhido na cédula de votação, muito útil para uma população que há muito tempo não praticava o voto direto.

As palavras de ordem dos impressos de FHC propunham pautas sociais, vinculadas às preocupações do sociólogo, pragmáticas e voltadas para o cotidiano da população, em contraste com Franco Montoro que levantava temas relacionados à atuação do governo e suas instituições.

Meu amigo tem um carro

A rotina era muito mais espontânea do que planejada. Aqueles que dispunham de tempo, iam ao comitê – na rua Sena Madureira, na Vila Mariana -, ver o que tinha para fazer. Dessa maneira, a campanha avançava, tocada por universitários, colegas e militantes. A primeira tarefa era apresentar FHC à população e para isso se contava com a ajuda de quem pudesse doar papel, tecido e tintas para confeccionar faixas e santinhos. Outra necessidade era arranjar um carro para levar o candidato aos bairros de São Paulo, com um microfone e um banquinho usado como palanque.

Em depoimento dado para a produção da Mostra, Marie Worms, amiga, socióloga e fotógrafa envolvida nessas jornadas, expõe o clima: o grupo, muito pequeno, não parava o trânsito, mas “era uma coisa tão alegre (…) era mesmo uma coisa de projetar o FHC naquele momento, mostrar de onde ele veio e porque ele queria se candidatar.”. 

Apoios de peso

Artistas apareciam para dar uma força. Atores e atrizes conhecidos e respeitados estiveram ao lado de Fernando Henrique nessa marcha. A imagem deles ajudava a captar a atenção dos eleitores, facilitando a apresentação do candidato desconhecido da massa. O maior esforço da campanha, além de apresentar o postulante, era deixar claro o objetivo da candidatura. Por que ele e por que agora? Esses eram temas recorrentes nas entrevistas da época. E o candidato respondia, olho no olho, com um empenho que as imagens evidenciam, em percursos a pé, de carro e de ônibus, em meio aos mais diversos setores da população, em espaços universitários e reuniões políticas. Outra iniciativa foi a aproximação com políticos mais conhecidos, como Mário Covas, figura de referência na Baixada Santista e nome forte do MDB. 

Um dos companheiros de jornada foi Eduardo Graeff, também sociólogo, ex-aluno de Ruth Cardoso e FHC. Ele levava o candidato no seu carro. Foi quando se aproximou, tornando-se mais tarde assessor do Presidente da República. Ele relembra o ritmo de trabalho dos dias de viagens pelas curvas da estrada de Santos: “(…) foi descer pra Baixada, dormir na casa do Mário Covas lá e daí passar o dia fazendo campanha de rua, feira, mais isso e aquilo. Aí ele foi pro Porto e depois foi pra Cubatão com os sindicalistas (…)“.

Eleitorado midiático

O material impresso ganha protagonismo em uma campanha com restrições no rádio e na TV. Faixas, cartazes, panfletos, santinhos apresentavam os bordões do discurso político. Além da imagem do candidato, pegava-se carona nos famosos, decisivos na comunicação com seus públicos. 

Nos cartazetes produzidos, as atrizes Débora Duarte e Bruna Lombardi falavam do desejo de libertação de quem vive a transição da adolescência para a juventude sob um regime autoritário. Luiz Inácio da Silva, o mais importante líder sindical do país naquele momento, aproximava FHC dos setores populares. Gianfrancesco Guarnieri, ator, diretor e dramaturgo, reiterava o desejo de expressão dos intelectuais e artistas. Lima Duarte, ator, diretor e apresentador de televisão, figura do emblemático Teatro de Arena, falava do candidato como fiador da democracia. E Chico Buarque, compositor, cantor, poeta, fez uma paródia de uma marchinha de Carnaval (Acorda, Maria Bonita) para ser o jingle da campanha. A visibilidade dessas pessoas foram transferidas a um nome que contava com uma aura de juventude e competência.

 

Com uma ajudinha dos meus amigos

Um dos episódios fortes foi a ‘passada de chapéu’ entre os mais de 30 artistas visuais que aderiram à campanha e ofertaram gravuras. Foi organizada uma grande exposição para venda na Galeria Millan, uma das mais prestigiosas da cidade. O evento acentuou o caráter militante da iniciativa e também revelou a generosidade dos notáveis das artes brasileiras, como: Tomie Ohtake, Claudio Tozzi, Antônio Maluf, Lygia Pape, Luiz Sacilloto, Alice Brill,  entre outros.

Muitas das gravuras pertencem ao acervo da Fundação e testemunham o esforço coletivo para virar a página da ditadura.

Bibliografia

  1. CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: a história que vivi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 699 p. ISBN 852000735X.
  2. CARDOSO, Fernando Henrique. [A candidatura. Revista de Política, México], maio 1978. 4 p. Datilografado.
  3. CARDOSO, Fernando Henrique. A oposição tem que dar as cartas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 26 nov. 1978. Folhetim, p. 3-6. Entrevista concedida a Jefferson del Rios.
  4. CARDOSO, Fernando Henrique. A tarefa da oposição é unir o povo. Movimento, São Paulo, n. 141, p. 7, 13 mar. 1978. Entrevista concedida a Teodomiro Braga.
  5. CARDOSO, Fernando Henrique. Democracia para mudar: Fernando Henrique Cardoso em 30 horas de entrevistas. Organização de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 108 p. (Documentos da Democracia Brasileira, 4).
  6. CARDOSO, Fernando Henrique. Fernando Henrique Cardoso IV (depoimento, 2011). Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (2h 8min).
  7. CARDOSO, Fernando Henrique. O candidato Cardoso. Isto É, São Paulo, p. 36-39, 13 set. 1978.
  8. CARDOSO, Fernando Henrique; WINTER, Brian. O improvável presidente do Brasil: recordações. Prefácio de Bill Clinton; tradução de Clóvis Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 365 p., il., fotos. Título original: The accidental president of Brazil: a memoir. ISBN 9788520012093.
  9. CARDOSO, Fernando Henrique. O presidente segundo o sociólogo: entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 366 p. ISBN 8571647690.
  10. CARDOSO, Fernando Henrique. Um intelectual na política: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 315 p., il., fotos. ISBN 9786559210671.
  11. FARIA, Adriano; FONTENELLE, André. Especial: Senado 74 – A eleição que abalou a ditadura. Brasília, DF: Agência Senado, 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/11/14/especial-senado-74-2013-a-
    eleicao-que-abalou-a-ditadura. Acesso em: 26 maio 2023.

 

Ficha técnica

Concepção:

Grifo Projetos e Fundação FHC

Curadoria e desenvolvimento:

Alexandre de Almeida, Jéssica de Almeida, Laura Mollo, Mariana Popperl, Silvana Goulart

Pesquisa:

Alexandre de Almeida, Jéssica Almeida, Laura Mollo e Mariana Popperl

Depoimentos:

Eduardo Graeff, Gilda Portugal Gouvea e Marie Worms

Textos:

Alexandre de Almeida, Laura Mollo e Mariana Popperl

Edição:

Silvana Goulart

Identidade visual, tratamento de imagens:

Sintrópika

Agradecimentos:

Eduardo Graeff, Gilda Portugal Gouvea, Isabel Penz, Marie Worms, Renata Bassetto, Sergio Fausto.