No teatro da política: campanhas eleitorais e democracia (Ato 2)

A exposição “No teatro da política” apresenta o seu segundo momento, no caminho da redemocratização do Brasil pós-ditadura militar. Ela enfoca a campanha para a Prefeitura da cidade de São Paulo, que marcaria mais um passo nesse processo. O pano de fundo era o movimento das Diretas Já que arrastou para a rua milhões de pessoas clamando por eleições diretas para a presidência da República.

Os documentos de campanha são fontes imprescindíveis para a história do período. Foram ouvidas outras vozes, como a de testemunhas da época e correligionários, pessoas que esclarecem fatos e revelam os fios que unem os documentos, permitindo uma compreensão mais completa dos fatos e suas circunstâncias.

Fernando Henrique Cardoso era um dos candidatos das forças progressistas. A campanha de 1985 não o levou à vitória, mas o confrontou com a realidade de um cargo executivo, que requer outras habilidades, além de posicioná-lo definitivamente na arena política brasileira.

A campanha pelas Diretas: FHC ganha espaço político

Fernando Henrique Cardoso estreou como senador em 1983, ocupando o lugar de Franco Montoro que havia renunciado ao cargo para assumir o governo do Estado de São Paulo. A partir desse momento tornou-se cada vez mais popular. Atuou nas articulações para superar a ditadura militar, que resultaram no movimento das “Diretas Já!” e na candidatura de Tancredo Neves à presidência, no Colégio Eleitoral. Também atuou como líder do governo Sarney no Congresso Nacional. Essa notoriedade fez dele, em 1985, o potencial candidato de seu partido, o PMDB (antigo MDB), para a prefeitura de São Paulo, embora ele próprio não se sentisse preparado.

Ele avalia: “como Mário Covas, prefeito em exercício, não podia legalmente se candidatar, o PMDB ficou sem candidato natural, que teria o apoio de Montoro e o meu. O governador, então, se voltou para o meu nome, mas confesso que eu não tinha grande motivação para essa candidatura. Não era meu estilo. Nunca fui síndico de prédio. O prefeito é um pouco um síndico da cidade”.

 

FHC e o locutor esportivo Osmar Santos. Comício das Diretas Já!. São Paulo (SP), 1984.

Eleições de 1985 em uma cidade estratégica

A campanha eleitoral dessa vez era para um cargo executivo. Pressupunha enfrentar Jânio Quadros, um político tradicional e muito popular. O contexto era a luta de um campo progressista ainda em organização e embalado pela campanha das Diretas, contra forças representativas do regime autoritário, travada no principal colégio eleitoral municipal brasileiro e reduto político do PMDB.

Para FHC era imperativo evitar o retorno das “forças do velho regime”, derrotadas paulatinamente ao longo das últimas eleições. A candidatura, nas suas palavras, pretendia “livrar São Paulo e o Brasil desse desastre e dar continuidade às mudanças políticas e sociais iniciadas por Tancredo Neves”. O slogan da campanha – Meu voto é coisa séria – demonstrava a preocupação com um eventual retrocesso político e aludia à renúncia de Jânio, que deixou a presidência da República poucos meses depois de assumi-la, em 1961. A campanha buscava dar continuidade ao clima de otimismo frente ao processo de redemocratização e manter a mobilização popular, pois perder São Paulo poderia ser um baque na militância, sobretudo depois do falecimento inesperado de Tancredo Neves.

Santinho da candidatura de FHC. São Paulo (SP), 1985.

Videoclipe da canção “Vai Ganhar”. São Paulo, 1985. Paródia da canção “Vai Passar”, adaptada pelo autor, Chico Buarque de Hollanda, com imagens da campanha das Diretas, da morte de Tancredo Neves e com a presença de políticos progressistas.

“Quem não se comunica, se trumbica”: estratégias da campanha na TV…

Assim como em 1978, participaram da campanha gente das artes e dos esportes, em um novo contexto, beneficiado pelos recursos eletrônicos. Em 1984 caiu a famigerada Lei Falcão e surgiram novas experiências com a linguagem audiovisual, como a utilização do videoclipe, de depoimentos de apoio e o uso de paródias com os adversários. Cantores como Chico Buarque e personagens da novela Roque Santeiro – a viúva Porcina e o Sinhôzinho Malta, representados por Regina Duarte e Lima Duarte – aderiram à campanha de FHC, com participações memoráveis.

…e nas ruas.

O estilo “olho no olho” continuou importante, a campanha realizou diversas manifestações, como as tradicionais carreatas e a versão mamulengo do candidato passeou pela cidade.

 

 

 

 

 

Imagem 1 – Carreata no bairro da Santa Ifigênia. São Paulo (SP), 1985.
Imagem 2 – Trio de música nordestina toca em comício com FHC no bairro da República. São Paulo (SP), 1985.
Imagem 3 – Mamulengo de FHC na caminhada no Parque do Ibirapuera. São Paulo (SP), 1985.

 

Não basta apoiar, tem que vestir a camisa…

As camisetas, peça básica da indumentária do militante, divulgavam a candidatura, esbanjando o colorido típico dos anos 1980. Uma delas chama a atenção por se referir à adesão da deputada federal Bete Mendes (eleita pelo PT), atriz, ativista, presa e torturada na década anterior, criando um forte contraste com a candidatura de Jânio Quadros, apoiada massivamente por membros e simpatizantes do regime autoritário.

Primeiro Comício da Mulher. São Paulo, 1985.

A nova sociedade civil organizada e suas pautas: participação feminina…

A novidade da campanha foi a presença de grupos representativos da Nova República, tais como o de mulheres, sob inspiração de Ruth Escobar, Ruth Cardoso e da deputada Bete Mendes, entre outras, que cobraram o engajamento dos candidatos em questões de gênero. Reunidas em torno do Conselho da Condição Feminina no Estado de São Paulo, traziam reivindicações feministas, derivadas do “PMDB Mulher”. Só os candidatos FHC e Eduardo Suplicy aceitaram discutir as propostas.  

Camiseta de apoio (frente e verso) do PMDB Mulher. São Paulo, 1985.

 

Gilda Portugal Gouvea, socióloga, acompanhou FHC nesta e em outras campanhas e relembra que Ruth Cardoso adotou uma postura de independência, organizando um comitê de mulheres, separado do oficial. “Ela aparecia pouco ao lado do Fernando Henrique. Eu lembro uma vez, na primeira reunião que ela iria fazer com as mulheres; a agência de propaganda encheu o lugar de flores e ela chegou lá e ficou uma fera, e falou: por que são mulheres você acha que mulher não tem cabeça? Ela só recebe flores? Tiveram que correr e tirar um pouco”

Botton de apoio do PMDB Mulher. São Paulo, 1985.

Fala de Divaldo Rosa, liderança da comunidade negra, em apoio a FHC. São Paulo (SP), 1985.

…e do movimento negro

Também ganhou espaço político a comunidade negra organizada, bem conhecida do candidato desde os seus estudos acadêmicos. Espaços como terreiros de Umbanda, Candomblé e rodas de capoeira se tornaram locais de debate. Representantes desse movimento se engajaram, parte do grupo apoiou o candidato do PMDB e outra, o candidato do PT.

Visita à União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil. São Paulo (SP), 1985.

 

Confraternização com capoeiristas. São Paulo (SP), 1985.

FHC luta em duas frentes: Eduardo Suplicy

A campanha de Suplicy (PT) se referia a Cardoso como candidato oficial e questionava se ele seria capaz de implantar os projetos divulgados. A principal crítica do PT era de que o PMDB não tinha compromisso real com os setores populares.

Quando a data da eleição se aproximou, o PMDB lançou a campanha pelo voto útil dos petistas, que reagiram alegando que Jânio e FHC, no fundo, eram farinha do mesmo saco. Ficaram estremecidas as relações entre antigos aliados políticos contra o regime autoritário.

Trecho do programa partidário de Eduardo Suplicy (candidato do PT), sobre a polarização da campanha eleitoral.

FHC luta em duas frentes: Jânio Quadros

O enfrentamento ao adversário nem sempre ocorreu de forma republicana. A máquina de propaganda janista atacava as posições progressistas de FHC. Foi um batismo de fogo eleitoral. Uma das táticas de desqualificação foi atribuir a ele uma postura permissiva em relação a temas tabus, tais como o comunismo, o ateísmo, a corrupção e o consumo de drogas. O objetivo era abocanhar votos do eleitorado simpático a uma agenda conservadora, em especial em relação aos costumes.

As opiniões de Fernando Henrique sobre a legalização do consumo de maconha dadas à revista Playboy, em 1984, foram amplamente exploradas e nesse contexto aparece a acusação do vereador Eurípedes Salles (PMDB), em um dos programas eleitorais, afirmando que ele teria “decretado a liberação da maconha”.

Depoimento de Eurípedes Salles, vereador pelo PMDB, sobre a suposta permissividade de FHC com a maconha. São Paulo (SP), 1985.

FHC contra-ataca

A campanha de Fernando Henrique respondeu as acusações, especialmente de Jânio Quadros, explorando a imagem de um candidato politicamente instável. Gilda Portugal Gouvea, socióloga e participante da campanha, relatou que Quadros, apesar de muito popular, precisava lutar contra essa rejeição. Lembrou que muita gente tinha raiva dele: “Foi eleito presidente com uma votação esmagadora, e seis, sete meses depois, renunciou. Então foi uma enorme decepção do povo com ele”.


Paródia de Jânio Quadros veiculada no programa partidário FHC. São Paulo (SP), 1985.

 

Levanta, sacode a poeira e dá volta por cima

Jânio Quadros se elegeu por uma pequena margem de votos e é difícil cravar os motivos da derrota de FHC. Seria o recall de Jânio junto ao eleitorado?

Em suas memórias FHC ponderou os motivos de sua derrota e admitiu não ter percebido o potencial devastador dos boatos espalhados pela campanha do adversário. “Parecia-me tão descabido alguém acreditar na versão que não imaginei que a história ‘pegasse’. Pois pegou. E seu efeito demolidor superou o do suposto ateísmo. Um dia, na periferia de São Paulo, na Cidade Tiradentes, uma senhora me perguntou: é verdade que o senhor vai distribuir maconha no lanche das escolas?”

Um fato a lamentar foi a fatídica foto de campanha na qual FHC apareceu sentado à mesa do prefeito de São Paulo, produzindo uma reação negativa entre o eleitorado: “… a foto prova que eu merecia perder… por ingenuidade.”

Eduardo Graeff, parceiro de campanha, pondera que “a exposição como candidato a prefeito acabou de espalhar o nome dele no Estado, o suficiente para ele se eleger senador, com uma boa votação em 1986”.

 

 

Após a vitória, Jânio Quadros desinfeta a cadeira onde FHC havia se deixado fotografar. São Paulo (SP), 1985.

Bibliografia e Ficha Técnica

  1. CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: a história que vivi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 699 p. ISBN 852000735X.
  2. CARDOSO, Fernando Henrique. Cartas a um jovem político: para construir um país melhor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. 194 p. (Cartas a um Jovem…). ISBN 8535218661.
  3. CARDOSO, Fernando Henrique. Democracia para mudar: Fernando Henrique Cardoso em 30 horas de entrevistas. Organização de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 108 p. (Documentos da Democracia Brasileira, 4).
  4. CARDOSO, Fernando Henrique. Fernando Henrique Cardoso IV (depoimento, 2011). Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), (2h 8min).
  5. CARDOSO, Fernando Henrique; WINTER, Brian. O improvável presidente do Brasil: recordações. Prefácio de Bill Clinton; tradução de Clóvis Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. 365 p., il., fotos. Título original: The accidental president of Brazil: a memoir. ISBN 9788520012093.
  6. CARDOSO, Fernando Henrique. O presidente segundo o sociólogo: entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Roberto Pompeu de Toledo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 366 p. ISBN 8571647690.
  7. CARDOSO, Fernando Henrique. Um intelectual na política: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. 315 p., il., fotos. ISBN 9786559210671.
  8. FARIA, Adriano; FONTENELLE, André. Especial: Senado 74 – A eleição que abalou a ditadura. Brasília, DF: Agência Senado, 2014. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/11/14/especial-senado-74-2013-a-
    eleicao-que-abalou-a-ditadura. Acesso em: 26 maio 2023.

 

Ficha técnica

Concepção:

Grifo Projetos e Fundação FHC

Curadoria e desenvolvimento:

Alexandre de Almeida, Jéssica de Almeida, Laura Mollo, Mariana Popperl, Silvana Goulart

Pesquisa:

Alexandre de Almeida, Jéssica Almeida, Laura Mollo e Mariana Popperl

Depoimentos:

Eduardo Graeff, Gilda Portugal Gouvea e Marie Worms

Textos:

Alexandre de Almeida, Laura Mollo e Mariana Popperl

Edição:

Silvana Goulart

Identidade visual, tratamento de imagens:

Sintrópika

Agradecimentos:

Eduardo Graeff, Gilda Portugal Gouvea, Isabel Penz, Marie Worms, Renata Bassetto, Sergio Fausto.