
Ficar bem na foto
Enquanto presidente da República, Fernando Henrique Cardoso tinha o cotidiano preenchido por audiências, despachos, reuniões, viagens, assinaturas, lançamentos de programas e mais um sem-número de atividades protocolares. Nos seus calcanhares, havia sempre os fotógrafos oficiais, trabalhando no registro de cada passo para documentar as imagens dos eventos da agenda presidencial. Na tangente, estavam os profissionais de fotojornalismo, com maior liberdade criativa na produção dos registros para diversos veículos de imprensa brasileira.
A exposição compara uma seleção de fotografias de eventos oficiais clicadas pelos fotógrafos do Palácio e por fotojornalistas. Os primeiros produzem espécies de relatórios visuais do cotidiano do poder, enquanto os segundos buscam agregar comentários, surpreender momentos não protocolares ou fazer leituras psicológicas das personagens. Mas há muito mais a observar, pois nem sempre a foto oficial é neutra e nem sempre a não oficial vai além do registro do evento.
Cada conjunto de imagens do mesmo evento será apresentado com observações da equipe do Acervo. Aos visitantes, caberá o desafio de fazer suas próprias reflexões.
Até onde a vista alcança
Cerimônia de homologação de territórios indígenas, a partir da assinatura de decretos de demarcação de terras, em Brasília (DF), em 3 de novembro de 1997.
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A política indigenista desenvolvida durante o governo FHC promoveu a homologação de 145 territórios indígenas e implantou políticas públicas, graças à mobilização dos povos originários e o diálogo estabelecido entre as partes.
A foto oficial mostra uma imagem de impacto: um líder indígena e o Presidente da República – um encontro singular. O fato em si já causa efeito no espectador, mas parece uma foto menos pensada, um pouco desfocada, sem o cuidado na busca dos melhores ângulos dos atores.
Diferente é a fotografia de Eraldo Peres, que explora a diversidade de cores, suficiente para atiçar a curiosidade do olhar. O espectador pode até ficar dividido entre apreciar o que parece uma pintura e entender o contexto do evento. A expressão corporal de Aritana, cristalizada no gesto que aponta para frente, e o semblante enigmático do presidente da República suscitam interpretações: qual seria o longe mostrado pelo cacique? FHC está alheio à fala do líder indígena e imerso em outros pensamentos ou está tão atento que seu corpo se inclina para ouvir melhor?
Outros elementos indicam dados da persona política de Fernando Henrique: as mãos contidas e pousadas sobre as pernas cruzadas denotam uma sobriedade não contaminada pelo gesto de Aritana.
E o vento levou…
Entrevista à imprensa no Palácio da Alvorada, na cerimônia de recepção a Bill Clinton (presidente dos Estados Unidos da América) em visita ao Brasil, em 4 de outubro de 1997.

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A primeira foto sugere neutralidade e se nota que o objetivo do fotógrafo oficial foi registrar o que ocorria: presidentes em seus púlpitos concedem uma coletiva à imprensa. A escolha do perfil formaliza a imagem e mostra microfones alinhados, à semelhança das vestimentas e nenhum indício de emoção inquietante: as ideias de ambos parecem confluir em uma mesma direção.
Contrapondo-se ao lugar-comum, a dupla de imagens de Gustavo Miranda tem movimento. Como o encontro ocorreu ao ar livre, o vento provocou o momento mágico e deu asas aos papéis de Clinton, que não se furtou a recuperá-los. As lentes flagram imponente líder estadunidense em posição desprevenida: agachando-se e depois, mais agachado ainda. O fotógrafo captura a cena até o fim e FHC parece não se abalar. Um contraste entre a liturgia do cargo e a vida como ela é.
Nas terras de Lilibeth
Cerimônia oficial de chegada a Horse Guards, uma das etapas da visita de Fernando Henrique Cardoso ao Palácio de Buckingham (Londres), em 2 de dezembro de 1997.

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A companhia e o meio de transporte denunciam que aquela terça-feira fria não foi um dia corriqueiro, até mesmo para FHC. A fotografia oficial apresenta, em primeiro plano, cavaleiros em suas montarias, ambos com adornos típicos do universo da realeza britânica. Os condutores da carruagem são o destaque da foto, enquanto as principais personagens ficam ao fundo, bem distantes do foco. Curiosamente, o fotógrafo da Presidência não fez outras imagens daquele momento, mas mostrou, ao fundo, a imponência do palácio.
Quem retrata a rainha mais de perto são os fotógrafos da mídia impressa. A imagem de Joveci C. de Freitas faz um close de Elizabeth, que não encara as lentes, e de FHC, que acena de dentro da carruagem, com sua disposição costumeira. À época, os jornais brasileiros foram povoados por charges, sendo que em uma delas o Presidente foi chamado de “Cinderelo”.
Com a agenda cheia, FHC cumpriu o extenso protocolo, com direito a rainha e príncipe consorte. No aconchego do seu diário, ele escreveu:
“A rainha me pareceu uma pessoa inteligente, tem um olhar rápido, parece às vezes voluntariosa e irônica. Essa primeira impressão foi se confirmando no decorrer dos dias. Não vou descrever cada um dos eventos na Inglaterra, porque seria longo. Direi minhas impressões gerais. Houve vários banquetes. O primeiro nos foi oferecido pela rainha na noite de nossa chegada. Antes disso, eu e a Ruth fomos tomar chá com a rainha-mãe, [Condessa Elizabeth de Snowdon, viúva do rei George VI e mãe da rainha Elizabeth II e da princesa Margaret]. Uma figura encantadora, 97 anos, lúcida, falou sobre tudo conosco, sobre o Brasil, sobre gado, sobre Aberdeen Angus, sobre a família, foi muito agradável. Muito simpática mesmo a velhinha.”

Ops, desculpe o mau jeito
Jantar oferecido por Fernando Henrique Cardoso a Margrethe II, rainha da Dinamarca, no Palácio do Itamaraty, Brasília (DF), em 3 de maio de 1999.

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A imagem palaciana é oficial e reflete a formalidade da recepção a uma rainha. Todos os elementos de protocolo de Estado estão ali: a ordem das pessoas na foto, sendo a primeira-dama do país, d. Ruth Cardoso, posicionada ao lado do príncipe consorte, enquanto a rainha Margrethe fica à direita do presidente. Também se nota que todos portam, do lado esquerdo do corpo, as insígnias das honrarias trocadas: a rainha com o grande colar da Ordem do Cruzeiro do Sul e FHC com a peculiar medalha da Ordem do Elefante. Ruth Cardoso porta a honraria dinamarquesa da Ordem Dannebrog, enquanto os príncipes dinamarqueses, pai e filho, ostentam outras insígnias.
As personagens são as mesmas, mas o fotógrafo Roberto Stuckert achou um outro momento, que desmonta a cena posada. É visível a surpresa no rosto da primeira-dama ao perceber ter pisado no esvoaçante vestido da rainha, que, no entanto, sorri divertida, enquanto FHC olha para o foco da cena e o príncipe consorte mira o rosto da esposa. A escolha do vestido claro e floral da rainha é um elemento que contribui para chamar atenção. Nunca saberemos o que de fato estão sentindo as pessoas envolvidas na ação, mas é razoável crer que a segunda fotografia provoca no espectador aproximação, já que o erro é comum a todos os mortais.
7 de Setembro
Desfile do presidente e autoridades no Dia da Independência do Brasil, Brasília (DF), com a presença popular, em 1997.

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Neste dia de homenagem à Pátria, o presidente da República participa dos festejos da capital, na Esplanada dos Ministérios, em atividades que se repetem todos os anos. Em 1997, as pessoas nas ruas esperavam o desfile cívico-militar e o show da Esquadrilha da Fumaça, mas o destaque era a passagem de FHC em carro aberto, com o presidente de Portugal, Jorge Sampaio.
O fotógrafo oficial registrou exaustivamente cada momento do ato cívico, resultando em mais de 200 imagens arquivadas no Acervo. A foto apresentada aqui é similar a muitas outras e mostra a ambientação, enquadra o espaço físico, as figuras principais e o entorno da cena central.
A imagem do fotojornalista se aproxima do Presidente, destacado do ambiente propositadamente desfocado, e captura um semblante apaziguador e o aceno confiante à multidão. Um retrato que busca analisar o homem, seu caráter e sua disposição interna. A construção se completa com a visibilidade perfeita dos símbolos da Nação: a faixa presidencial e a bandeira brasileira. Fernando Henrique, de pé no carro, fica acima dos populares que o saúdam, confirmando sua posição de chefe da Nação.
Tango no Alvorada
Jantar oferecido por Fernando Henrique Cardoso a Carlos Menem (presidente da Argentina), Brasília (DF), em 29 de julho de 1999.

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Fernando Henrique Cardoso sempre teve bom trânsito com seus pares da América do Sul, mas a Argentina, certamente em função das negociações do Mercosul, foi o país mais visitado – 9 vezes ao todo – e Menem foi o presidente mais pródigo em presentes ofertados. As fotos do Acervo transmitem o clima de proximidade, mas há uma sutil diferença entre as imagens escolhidas. A oficial mostra um caloroso, mas corriqueiro apertar de ombros, visto em outras poses da dupla.
A foto de Cacalos Garrastazu captura o momento em que as sorridentes autoridades parecem prestes a executar o paso ocho, um caminhar típico da mais popular dança argentina, o tango. Contrapondo-se aos assuntos espinhosos tratados no jantar dos presidentes, as cenas das fotografias expressam boa disposição para o entendimento. Os outros documentos do Acervo podem responder aos questionamentos que as fotografias não traduzem.
Isso está no protocolo?
Recepção a Jiang Zemin (presidente da China) no Palácio do Planalto, em sua visita ao Brasil, em 11 de abril de 2001.
O registro fotográfico da visita do presidente Jiang Zemin em Brasília contempla a sequência protocolar executada pelas mais altas autoridades do Estado: a subida da rampa até o palácio, os inúmeros apertos de mão entre as equipes de governo, a tradicional foto com os dois presidentes e depois as audiências e os jantares de homenagem ao visitante, dentre outros eventos.
O objetivo da cobertura imagética oficial é produzir documentos que comprovem as ocorrências que estão em sintonia com a agenda presidencial. Em meio a tantos cliques, algumas imagens se destacam. Foi o caso do afetuoso abraço entre Fernando Henrique Cardoso e Jiang Zemin. Não à toa, essa imagem, entre 82 fotogramas do conjunto de negativos, foi escolhida pelos documentalistas da Presidência da República para ser copiada em papel.
O clima da foto oficial é confirmado pela fala do presidente, nos Diários da Presidência:
“Ele foi tão simpático que no final quis conhecer o Alvorada. Disse: “Vou tomar um chá, vamos lá com chá ou sem chá! Eu quero ver!”. E lá foi ele! À meia-noite fomos para o Alvorada com toda a comitiva, num gesto de extrema simpatia, mostrando um relacionamento pessoal muito, muito agradável mesmo”.

O furo
Despacho de Fernando Henrique Cardoso com Marco Maciel (vice-presidente do Brasil), Brasília (DF), em 14 de agosto de 1995.

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O despacho com o presidente é uma atividade rotineira, sempre testemunhada pelos fotógrafos do Palácio. A foto oficial se parece com dezenas de outras preservadas no Acervo e apresenta o enquadramento usual: o ambiente principal da sala do Palácio do Planalto mostrado à certa distância, as poltronas de couro onde se acomodam o chefe da Nação e à sua direita, membros do governo, políticos e pessoas da sociedade civil. No momento do clique, o clima é de total descontração e percebe-se uma similaridade dos ternos e das gravatas de Maciel e FHC, além de certo espelhamento da linguagem corporal de ambos, que igualmente sorriem e seguram os braços dos sofás.
Com certeza não foi o bom corte dos ternos escuros que Ailton de Freitas evidenciou no seu clique, mas sim uma visão inusitada. Delimitando o foco no meio perfil de FHC, o que aparece abaixo é um furo na sua meia esquerda. A foto já se mostrava plástica pela pose descontraída, mas ficou famosa pelo furo e rendeu uma inundação de meias presenteadas por cidadãos ao presidente. Comparando os documentos: a primeira foto corta os pés de FHC – será que foi acaso ou uma decisão prudente do fotógrafo oficial?
El Comandante
Cerimônia de abertura de duas sessões plenárias na comemoração do Cinquentenário do Sistema Multilateral de Comércio (SMC), no Palácio das Nações, em Genebra (Suíça), em 19 de maio de 1998.

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Uma fotografia com a presença de Fidel Castro angariava toda a atenção do mundo político. Sua figura altiva, aliada a uma personalidade esfuziante, propiciava a construção de retratos divertidos e o líder cubano não se intimidava. Os profissionais sabiam que a sessão iria render boas imagens.
Na foto oficial, Fidel aparece bem-comportado e FHC tem as mãos unidas à frente do corpo, como em tantas outras imagens suas. Todo o quadro está montado, os participantes olham para a câmera e portam os mesmos broches nas lapelas dos ternos escuros, configurando uma típica fotografia oficial.
Já nas imagens dos fotógrafos da imprensa, a descontração… Na primeira, uma língua fora do lugar e olhos arregalados; ao que parece, Fidel gostava dessa forma de irreverência. Na segunda, um movimento semelhante dos dois presidentes tocando seus respectivos relógios. O cubano parece chamar a atenção de Fernando Henrique sobre o horário, enquanto o brasileiro confere as horas. Algum acaso? Nunca saberemos.
É fogo!
Cerimônia de inauguração do Gasoduto Bolívia-Brasil, com os presidentes dos dois países, em Mutum (MS), em 9 de fevereiro de 1999.

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A fotografia oficial faz uma panorâmica do evento com os assessores ao fundo, os protagonistas em plano médio, à esquerda, e, em primeiro plano, a pira simbólica. O acinzentado do chão, das estruturas da tenda e dos ternos dos presidentes contrasta com a exuberância colorida do fogo.
A imagem de José Paulo Lacerda mostra FHC resoluto, com a mão direita estendida para o cumprimento que sela um acordo. O inusitado é o ângulo da câmera, que sobrepôs o fogo da pira à figura do presidente, criando uma ilusão que pode se desdobrar em interpretações abstratas e até contraditórias. O fogo estaria queimando a figura? Purificando? Iluminando? A ambiguidade é sempre interessante por ampliar as possibilidades e não resultar em respostas fáceis.
