Ir para o conteúdo
Logotipo do FFHC Menu mobile

/imagens/31/60/pdt_bnn_13160.jpg

Debates » Debates

Desafios do SUS no próximo mandato presidencial

/ auditório da Fundação FHC


O êxito do Sistema Único de Saúde (SUS) no enfrentamento da pandemia de Covid-19, apesar dos obstáculos impostos pelo governo Bolsonaro, fez com que ele se tornasse praticamente uma unanimidade nacional. Porém,  o envelhecimento rápido da população e o aumento dos custos dos tratamentos de doenças crônicas, com remédios e equipamentos mais modernos e caros,  exigirão um aumento significativo do financiamento tripartite da saúde, com mais recursos, principalmente da União, que tem reduzido sua participação, sobrecarregando os estados e os municípios.

Para fazer frente à necessidade de destinar mais recursos para o SUS, será necessário repensar as prioridades do gasto público e rever a regra do teto de gastos, mas isso não basta. A economia brasileira precisará voltar a crescer com mais vigor e de maneira sustentável nos próximos anos – condição necessária para que a arrecadação de impostos também se expanda e possa custear o sistema. 

Também será fundamental aumentar a eficiência dos gastos com saúde, fechando ralos por onde recursos são perdidos, e melhorar a articulação entre o SUS, a saúde suplementar (planos de saúde) e os prestadores privados, incluindo as entidades filantrópicas. Estas foram as principais conclusões deste debate híbrido (presencial e online) realizado pela Fundação FHC, que teve dois painéis e durou uma manhã inteira.

SUS é a melhor política social brasileira

“Antes da Constituição de 1988, que lançou as bases para sua construção, mais de 60% da população brasileira vivia num vazio assistencial. O SUS trouxe um forte crescimento do acesso à saúde básica, à atenção primária e à saúde da família, o que se refletiu em indicadores como a taxa de mortalidade infantil, que, desde o final dos anos 1980, reduziu quatro vezes no país. O SUS é a melhor política social brasileira dos últimos 30 anos”, disse o economista André Cezar Medici, funcionário aposentado do Banco Mundial, com mais de 30 anos de experiência em planejamento estratégico na área da saúde.

“Estamos em uma encruzilhada porque a população brasileira está envelhecendo e as necessidades de financiamento da saúde vão aumentar muito. Diante das restrições fiscais existentes, vamos tomar a decisão de priorizar a saúde? Se o investimento federal continuar travado, vai sobrar cada vez mais para os estados e municípios, e esta tensão vai explodir mais adiante. Para fazer frente ao componente demográfico, o país precisa voltar a crescer e será necessário destinar um percentual bem maior do PIB, por meio da coleta de impostos, para financiar o SUS”, disse o professor associado da FGV EAESP Rudi Rocha, chefe de pesquisas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).

“Discordo da visão catastrofista do crescimento exponencial dos gastos frente ao envelhecimento da população e às doenças crônicas, pois creio que o avanço científico e tecnológico pode nos ajudar a diminuir custos e aumentar a eficiência do sistema. Um exemplo disso é a telemedicina, que permite realizar consultas e mesmo exames físicos à distância. Tenho uma visão mais otimista em relação à capacidade de resolver problemas por meio da inovação”, disse o médico Erno Harzheim, que foi secretário Nacional de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde (2019-2020) e secretário de Saúde de Porto Alegre.

“Para garantir os recursos de que o SUS necessita, será fundamental rever o teto de gastos, que tem um papel regressivo e foi desmoralizado pelo atual governo. Nosso compromisso é o de abrir espaço para ampliar recursos destinados às políticas sociais, como saúde, educação, ciência & tecnologia e transferências de renda, assim como os investimentos em infraestrutura que geram empregos e contribuem para o crescimento econômico”, disse o senador Humberto Costa, que foi ministro da Saúde (2003-2005) e atualmente coordena o programa de governo de Lula na área da saúde.

“Em parte devido à pandemia, existe hoje uma unanimidade quanto à importância do SUS, que vai da esquerda à direita, passando pelo centro. Este alto grau de consenso sobre a necessidade de termos um sistema de saúde forte, capaz de atender a toda a população com qualidade, representa uma oportunidade de colocarmos os grandes temas estruturantes sobre a mesa e, juntos, garantirmos que virem políticas concretas”, disse Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS).

“Diante do tamanho e da complexidade do Brasil, precisamos da complementaridade dos dois sistemas, o público e o privado. Isto ficou muito claro durante a pandemia do novo coronavírus, quando a saúde suplementar tratou de 25% da população, desonerando o SUS de atender 50 milhões de brasileiros que adoeceram, a um custo superior a R$ 30 bilhões”, disse Vera Valente, diretora executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), que anteriormente trabalhou no Ministério da Saúde e na Anvisa, onde foi responsável implantação da política de medicamentos genéricos no Brasil.

Alguns palestrantes trouxeram apresentações com grande quantidade de dados,  informações e propostas, que podem ser consultadas na seção Conteúdos Relacionados (à direita desta página).

Gastos públicos com saúde devem chegar a 6% do PIB

André Medici comparou o percentual dos gastos públicos em relação aos gastos totais em saúde de quatro países: o Brasil ficou em último lugar, atrás de Canadá (onde 70% dos gastos em saúde são de responsabilidade do Estado), Peru (63%) e Estados Unidos (51%), sendo que no Brasil este percentual é de 41%. Quase 60% dos gastos em saúde no país vêm dos planos de saúde, despesas assumidas pelas famílias e outras fontes. Entretanto, 75% da população brasileira é atendida pelo SUS, enquanto 25% é atendida pela saúde suplementar.

Segundo o IBGE, as despesas de consumo final com saúde no Brasil somaram R$ 711,4 bilhões em 2019, equivalente a 9,6% do PIB do país naquele ano. As despesas de consumo do governo (incluindo União, estados e municípios) com saúde totalizaram R$ 283,6 bilhões, o que representa 3,8% do PIB. Os planos de saúde, as famílias e as instituições sem fins lucrativos responderam pela maior parte dos gastos: R$ 427,8 bilhões do total, correspondente a 5,8% do PIB.

Segundo texto publicado pela Agência de Notícias do IBGE em 2022 (consolidando as informações acima), a participação dos planos de saúde, das famílias e dessas instituições nos gastos com a saúde vem crescendo desde 2011, enquanto a do governo, que havia crescido entre 2013 e 2016, permaneceu estável após uma queda em 2017.

André Medici, Rudi Rocha, Humberto Costa e Nésio Fernandes propuseram que o Estado brasileiro elevasse sua participação no financiamento do SUS para ao menos 6% do PIB, de forma paulatina, no decorrer dos próximos anos. “Para fazer frente ao envelhecimento demográfico, precisamos aumentar os gastos totais com saúde para o patamar de R$ 1 trilhão anualmente. Cabe ao Estado aumentar sua participação, empatando o jogo em relação ao gasto privado”, alertou o professor da FGV EAESP. 

De acordo com Medici, o governo federal destina atualmente cerca de R$ 160 bilhões ao SUS, mas deveria elevar esse gasto para ao menos R$ 260 bilhões anualmente.

Para os palestrantes, esses recursos adicionais devem ser garantidos com uma priorização mais adequada do orçamento público, sobretudo o federal, por meio de reformas, eliminação de subsídios e também pelo fim do chamado orçamento secreto, que bloqueou mais de R$ 10 bilhões de recursos da saúde para atender a emendas parlamentares. 

Vários dos convidados afirmaram, no entanto, que será necessário rever a regra dos tetos de gastos, que estipula que os gastos totais do governo federal não podem ser superiores aos do ano anterior acrescidos da inflação. “No caso da saúde, se apenas aplicarmos a inflação do ano anterior, em uma geração chegaremos a um gasto público de apenas 20% dos gastos totais com saúde, equivalente ao dos países mais pobres da África”, disse Rocha.

Ainda que o próximo governo mude a regra do teto de gastos, substituindo-o por outro mecanismo de controle dos gastos públicos, a conta da saúde não vai fechar se a economia brasileira não voltar a crescer nos próximos anos, resultando em um PIB mais robusto e em mais impostos recolhidos.

Tornar o Sistema Único de Saúde mais eficiente

“O aumento do financiamento público é desejável, mas não adianta aumentar recursos sem fechar os ralos”, disse Erno Harzheim, que defendeu a criação de um sistema unificado para o agendamento de consultas, exames e internações. “Se não tiver uma fila única, não tem como gerir o sistema. Fizemos isso em Porto Alegre e zeramos a espera”, disse o ex-secretário de saúde da capital gaúcha.

Ele também criticou o reembolso de planos de saúde no Imposto de Renda, o que representaria cerca de R$ 18 bilhões de renúncia fiscal anualmente. “Por que eu, que tenho o privilégio de ter um plano de saúde e recebo um serviço melhor do que o restante da população, devo ter direito a um subsídio estatal? Eu quero que a saúde suplementar contribua com o SUS, mas não quero mais que tenha subsídio estatal. É claro que isso deve ser implantado de maneira gradual, sem sustos”, disse.

Humberto Costa também se manifestou favorável à revisão do abatimento de gastos com planos de saúde no Imposto de Renda, mas disse ser necessário fazer uma compensação aos contribuintes, ampliando, por exemplo, a oferta de medicamentos gratuitos por meio de programas como o Farmácia Popular.

Rudi Rocha propôs avançar na regionalização do atendimento à saúde, de maneira a que municípios próximos trabalhem de forma articulada, somando recursos humanos, financeiros e de infraestrutura física e tecnológica. “Este é o caminho, mas o problema é que a figura da região de saúde ainda não está devidamente regulada”, disse o pesquisador da FGV.

Vera Valente defendeu a expansão da telemedicina, a interoperabilidade/prontuário eletrônico e a possibilidade das operadoras poderem comercializar planos de saúde ambulatoriais, com direito a consultas e exames, mas sem direito a internações e terapias e custo inferior a um plano completo. “A lei criou esse segmento, mas pendurou nele terapias, cujo custo não é trivial. Este custo adicional faz com que o plano ambulatorial, que poderia ser bem mais em conta, não seja comercializado, deixando muita gente de fora da saúde suplementar”, explicou. 

“É fundamental integrar os processos em rede e concentrar os investimentos em hospitais de maior porte”, disse Medici, que também sugeriu a ampliação do acesso a medicamentos associados a doenças crônicas e raras através do SUS e a priorização da entrega de serviços sobre bases epidemiológicas. “A epidemiologia tem que ser a mestre que organiza as prioridades do SUS”, disse o especialista.

“Nós não precisamos submeter o SUS a revisionismos históricos e à revisão de seu marco constitucional. O fundamental é recompor o federalismo de cooperação. Em plena pandemia, vivemos o pior conflito institucional da história no que diz respeito à execução de uma política social tão fundamental como a saúde pública. Está na hora de encerrar esse período de beligerância e voltarmos a trabalhar conjuntamente em prol da saúde dos brasileiros”, afirmou Nésio Fernandes, presidente do CONASS.

Assista ao vídeo completo do debate.

Saiba mais:

Lições da pandemia para reforçar o SUS: a cooperação em favor da saúde pública

Pandemias no curso da história - Com Rubens Ricupero

O SUS no século 21: desafios e mudanças necessárias (debate realizado em agosto de 2019, antes da pandemia)

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

Mais sobre Debates