Venezuela: há luz no fim do túnel do chavismo?
“Em março, não havia leite, arroz, açúcar e café em 81% dos estabelecimentos comerciais de Caracas. No resto do país é ainda pior”, disse o economista Luis Vicente León.
“Vivo em Caracas e não sinto que a situação esteja prestes a explodir. Parece que nada está acontecendo. As pessoas se acostumam à deterioração da qualidade de vida.”
Apesar da situação econômica crítica, com falta de produtos essenciais em 80% dos estabelecimentos comerciais, inflação extra-oficial de 240% ao ano e uma economia cuja principal atividade é o mercado negro, tudo parece normal na capital venezuelana. Como compreender tal realidade?
Em palestra na Fundação FHC, o economista Luis Vicente León, presidente da Datanalisis, importante instituto de pesquisa venezuelano, explicou como o país controlado pelo chavismo desde 1999 chegou à crise atual, o que sustenta o governo de Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez (1954-2013), e quais as perspectivas de mudança. As respostas estão abaixo, divididas em 11 tópicos, seguidos de uma frase do palestrante.
1 – Quando o preço do petróleo cai, a Venezuela entra em crise.
Com uma das maiores reservas do planeta, a Venezuela é um país fundamentalmente petroleiro, que depende das exportações de petróleo para manter suas reservas em dólar, importar os produtos necessários, arcar com os gastos do governo e financiar o dia a dia de sua economia. De dois anos para cá, o preço do barril de petróleo comercializado internacionalmente caiu de um patamar acima dos US$ 100 para cerca de US$ 40. Em 2016, a entrada de dólares oriundos da exportação de petróleo será equivalente a apenas 20% do total de 2014 e 50% de 2015.
“Nos 14 anos em que esteve no poder (de 1999 a 2013), Chávez surfou a onda dos altos preços do petróleo, que chegou a ser comercializado a US$ 150 o barril. Assim, pôde custear seus projetos sociais e driblar os problemas econômicos. Essa não é mais uma opção para Maduro. Se tivéssemos um governo sério, já seria difícil. Mas este não é um governo sério.”
2 – Mas o petróleo não é a única razão da crise.
Embora explique seu agravamento, o baixo preço internacional do petróleo não é a raiz da crise venezuelana. Ela está no colapso do modelo de intervencionismo econômico dos governos Chávez e Maduro. Esse modelo é baseado em controle de preços, expropriação e estatização de empresas, hostilidade ao setor privado e distribuição populista dos recursos do petróleo, o que resulta na falta de estímulo aos investimentos internos e externos na Venezuela. Em 2012, Maduro foi indicado vice-presidente por Chávez, diagnosticado com câncer, e o sucedeu após sua morte em março de 2013. Em abril daquele ano, foi eleito presidente com 50,66% dos votos contra 49,07% do opositor, Henrique Capriles.
“Maduro não é o culpado da situação atual, mas herdeiro de uma crise que já vinha do governo Chávez, mas era maquiada com os dólares do petróleo. O atual presidente, no entanto, não fez nada para mudar esse modelo.”
3 – Quanto vale um dólar na Venezuela?
Exemplificando as distorções da economia, há dois tipos de câmbio oficial no país vizinho. Num deles, cada dólar vale 10 bolívares. No outro, 290 bolívares. Como se não bastasse, a tentativa de controlar a compra e venda da moeda norte-americana gerou um mercado negro em que o dólar chega a valer 1.200 bolívares!
“Não é à toa que a principal atividade econômica atualmente na Venezuela é o câmbio negro de dólares. O mesmo acontece com os produtos com preços controlados, muitos deles influenciados pelo dólar, como carros, alimentos, bebidas e produtos de higiene.”
4 – Colapso das reservas, desabastecimento e inflação
Para tentar evitar o desabastecimento e o estouro ainda maior da inflação — cuja taxa oficial é de 180% ao ano —, o governo buscou substituir o setor privado nas exportações. Em 2015, 50% dos produtos foram importados diretamente pelo governo, comparado a 13% em 2000. Ocorre que as reservas internacionais não param de cair. Em 2015, houve uma perda equivalente a mais de um terço das reservas, que eram de US$ 25 bilhões no final de 2014. Com as reservas em dólar em queda livre, o sistema entrou em colapso. O resultado é a falta generalizada de produtos e inflação extra-oficial de 240%.
“Em março, não havia leite, arroz, açúcar e café em 81% dos estabelecimentos comerciais de Caracas. No resto do país é ainda pior.”
5 – Como abastecer a casa se os produtos desapareceram dos supermercados?
A resposta novamente está no mercado negro, a atividade econômica que mais cresce na Venezuela. Segundo o palestrante, os mais pobres enfrentam filas de até sete horas para comprar produtos regulados a preços incrivelmente baratos e os vendem na esquina a um preço 15 ou 20 vezes superior. Desta maneira, as classes média e alta conseguem os produtos de que necessitam e a base da pirâmide social ganha uma renda.
“A redistribuição perversa de produtos e dinheiro através do mercado negro garante um certo nível de estabilidade social. A Venezuela é hoje um país primitivo, mas acostumado a seu primitivismo.”
6 – Mudança só em 2019?
Segundo o analista, o situação descrita acima permite compreender por que a Venezuela, mesmo diante de todos os problemas citados e uma situação social explosiva, não parece estar à beira de uma revolta popular para colocar fim ao chavismo. Ele aposta em uma mudança de governo apenas em 2019, quando haverá novas eleições presidenciais. Segundo pesquisas da Datanalisis, 92% da população acha que o país vai mal ou muito mal.
“A crise atual tira o sonho do presidente Maduro, que deve estar pensando ‘O que vou fazer quando tiver de disputar uma eleição que não tenho como ganhar?’.”
7 – A debilidade da oposição
Em dezembro passado, a oposição venceu as eleições parlamentares.
Mas, embora tenha obtido uma super-maioria na Assembleia Nacional (posteriormente reduzida por uma manobra do governo), a oposição não tem controle sobre nenhuma das outras instituições mais importantes do país, como o todo-poderoso Tribunal Supremo de Justiça, o Ministério Público, a Presidência, as forças de segurança, o Exército e os meios de comunicação, todos sob controle do chavismo.
“Com a derrota parlamentar, o governo se blindou nas demais instituições. Adiantou a aposentadoria de 17 juízes e assumiu controle total sobre o Tribunal Supremo de Justiça. A partir de então, todas as decisões da Assembleia Nacional foram consideradas inconstitucionais por esse tribunal, contra o qual ninguém pode apelar. A oposição não consegue nem convocar ministros porque eles simplesmente não comparecem.”
8 – O erro da oposição
Depois de 17 anos perdendo, a oposição teve uma grande vitória e tinha diante de si uma oportunidade de ouro para começar a mudar o sistema político da Venezuela. Mas o que aconteceu? Passou a defender o fim imediato do chavismo, “em seis meses Maduro está fora”, “vamos tirar os ministros”, “vamos fazer o impeachment”. Só que, diante da mão-de-ferro governamental, não teve sucesso até o momento e acabou criando uma falsa expectativa.
“Ao prometer algo que não consegue cumprir, como não ser vista como incapaz? Em vez de tentar derrubar o governo a qualquer custo, a Assembleia oposicionista deveria aprovar uma lei por dia para forçar sua revogação pelo Tribunal Supremo de Justiça, escancarando assim a obediência do Judiciário ao governo.”
9 – Existe risco de um golpe militar?
Para Vicente León, se houver uma revolta popular dificilmente a oposição conseguirá capitalizá-la, pois não tem vínculos com os setores militares. O mais provável seria os militares apoiarem outro líder chavista com mais perspectivas de futuro. Ele não crê em um golpe tradicional, pois haveria forte reação internacional e o novo regime duraria pouco.
“O status quo é favorável aos militares. Afinal, o presidente é débil popularmente e precisa dos militares para reprimir uma eventual radicalização. Por isso, transfere ao Exército amplos recursos, armas e uma grande parcela do poder. Além disso, os militares vivem uma situação econômica melhor do que o resto da população.”
10 – Capriles vs. Leopoldo López
Em 2013, o candidato oposicionista Henrique Capriles foi derrotado por Nicolás Maduro por um ponto percentual, o melhor resultado eleitoral da oposição durante todo o período chavista. Mas, segundo o analista, ele hesitou entre reconhecer ou não o triunfo de Maduro e passou a ser visto como covarde por setores oposicionistas. Outro jovem líder oposicionista, Leopoldo López, viu nisso a oportunidade de pegar o touro pelos chifres. Radicalizou o enfrentamento com Maduro, acabou preso e condenado a 13 anos de prisão. Os tradicionais partidos políticos venezuelanos — COPEI e Ação Democrática — perderam força com a ascensão de Hugo Chávez no final dos anos 90.
“Para fazer frente a Chávez, as forças de oposição tiveram de ceder protagonismo à Mesa da Unidade Democrática (MUD). Por isso, têm tido dificuldade de apresentar uma identidade própria nas eleições.”
11 – Para terminar, uma inesperada comparação com o Brasil.
Ao fazer um paralelo entre a crise venezuelana e a brasileira, o palestrante Luis Vicente León soltou uma frase que provocou risos nervosos na plateia.
“Com tudo isso em mente, vocês diriam que eu exagero quando digo que, comparado com a Venezuela, o Brasil parece a Suíça?”
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.