Debates
20 de outubro de 2020

Uso medicinal da maconha: é possível avançar com segurança?

Opositores dizem que o Projeto de Lei 399/2015 “abre porta para as drogas”, enquanto apoiadores dizem que não há riscos e sim benefícios para milhares de pacientes que sofrem com convulsões e outras doenças.

O novo texto do Projeto de Lei 399/2015, que propõe a regularização do cultivo da Cannabis medicinal no Brasil, é seguro e não abre portas para o cultivo para fins recreativos, assunto que deve ser debatido pela sociedade e pelo Congresso em outro momento. “O objetivo deste projeto, que pretendemos colocar em votação em regime de urgência, é legalizar o plantio apenas para fins medicinais e de pesquisa de forma absolutamente controlada. Optamos propositalmente por não tratar, agora, do uso recreativo e do cultivo individual, pois inviabilizaria a aprovação na Câmara e no Senado. O PL é sério, seguro e beneficiará milhares de brasileiros e brasileiras que precisam desses medicamentos para ter uma vida melhor”, disse o deputado federal Luciano Ducci, relator do texto substitutivo entregue ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em 18 de agosto.

Primeiro a falar neste webinar – uma parceria entre Fundação FHC, Humanitas360, Quebrando o Tabu e The Green Hub -, Ducci lembrou que o uso medicinal da Cannabis já é autorizado no país, embora o cultivo seja proibido para qualquer finalidade: “O Conselho Federal de Medicina já permite a prescrição de medicamentos à base de Cannabis, e a Anvisa autoriza a produção no Brasil com insumos importados ou a importação de pequenas quantidades diretamente pelo paciente (não é permitido ter estoque). A regularização do plantio tem como principal objetivo reduzir os preços desses remédios, hoje vendidos em dólar, tornando-os mais acessíveis, inclusive através do SUS. É uma questão de saúde e de justiça social”, disse.

O texto propõe que empresas, associações de pacientes e o próprio governo terão direito à licença de plantio, mas mediante a uma pré-demanda justificada a ser analisada. Serão obrigados a seguir as regras já existentes dos órgãos competentes, caso da Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária). “O governo saberá exatamente quem está plantando, onde e em qual quantidade. As sementes, as  plantas e os medicamentos poderão ser rastreados. Não há possibilidade de desvio de finalidade; se houver, os responsáveis estarão sujeitos às normas legais vigentes, como já ocorre atualmente”, disse Ducci.

O PL também autoriza o cultivo do cânhamo (Cannabis sem substância psicoativa), matéria-prima para a indústria de celulose, de cosméticos e têxtil.

 ‘Produção no Brasil aumentará segurança dos medicamentos’

O neurocirurgião Pedro A. Pierro Neto salientou que o PL 399/2015, se aprovado, não apenas ampliará e democratizará o acesso como melhorará a segurança dos medicamentos: “Muitos dos produtos importados hoje não seguem as normas exigidas para remédios fabricados no Brasil. Não sabemos o que têm dentro. Se pudermos cultivar a planta em nosso território de forma legal, teremos maior controle da produção do início ao fim.”  

Segundo a Comissão Especial da Câmara que analisou e deu sinal verde para o projeto, atualmente 95% dos produtos utilizados no Brasil são importados. Nas farmácias, há dois medicamentos registrados pela Anvisa à venda. Um é o Sativex, da inglesa GW Pharma, e o outro o Canabidiol, da brasileira Prati-Donaduzzi. Em média, cada um deles custa R$ 2,5 mil.

“Só quem tem muito dinheiro pode pagar o tratamento, que pode ser necessário durante toda a vida do paciente. Enquanto isso, milhares de crianças, jovens e adultos com menos recursos simplesmente não têm acesso a eles. Muitos nem sabem que eles existem e possibilitam uma qualidade de vida melhor”, explicou o médico, que prescreve Cannabis para fins medicinais há mais de seis anos, com mais de cem pacientes atendidos e em tratamento. Epilepsia, câncer, Parkinson, dores crônicas e glaucoma são algumas das doenças que a Cannabis ajuda a controlar e a reduzir os sintomas.


‘Crises reduziram 80% e hoje minha filha dorme bem e brinca normalmente’

A bancária Cidinha Carvalho, mãe de Clárian, portadora de síndrome de Dravet, relatou que a menina começou a apresentar sintomas como sucessivas paradas cardiorrespiratórias em 2013: “Este é um tipo de epilepsia raro e ela podia morrer de uma hora para outra, mesmo dormindo. Na luta contra a doença, ouvi falar desses medicamentos. Consegui trazer de fora uma primeira remessa por US$ 500, o que é totalmente fora da minha realidade e da maioria das famílias brasileiras. O resultado foi excelente. Ela ficou 11 dias sem ter crise. Decidi que não poderia parar o tratamento.”

Em 2014, ela e o marido começaram a cultivar Cannabis, mesmo ilegalmente, para produzir o óleo utilizado por Clárian. Com ajuda do advogado Emílio Figueiredo (também convidado para o evento), foi a primeira mãe a obter na Justiça paulista o direito de cultivar a planta para fins medicinais. “Muitas mães começaram a nos procurar para saber como cultivar ou ter acesso aos remédios a preços mais acessíveis”, contou Cidinha, que decidiu então fundar a Cultive – Associação de Cannabis e Saúde, da qual é presidente.

“O cultivo para fins medicinais é uma realidade sem volta no país e o projeto de lei vem para reconhecer e regularizar isso”, disse Cidinha, que defendeu o direito ao autocultivo, pois, segundo ela, é comum o paciente precisar de um tratamento específico. “A terapia com canabidiol é personalizada. Com frequência, é preciso testar diferentes cepas, ou fazer um mix delas, para obter o melhor resultado. Às vezes a Clárian desenvolve tolerância a um óleo e temos de buscar alternativas”, explicou.

Segundo Cidinha, as crises de Clárian reduziram 80%, a menina não tem mais apneia durante o sono, transpira normalmente, corre, pula e brinca como as outras crianças. Após alguns anos de tratamento, a quantidade de remédios necessária para controlar a doença diminuiu 75%.

Para Emílio Figueiredo, consultor jurídico de associações de pessoas que fazem uso terapêutico da Cannabis e de iniciativas públicas e privadas que buscam a regularização da produção no Brasil, o PL vai diminuir o número de processos que pedem na Justiça o fornecimento dos medicamentos pelo SUS, assim como os pedidos de habeas corpus para o cultivo.  

O advogado disse que, quando o Congresso analisar a nova lei, é importante tomar cuidado para que o futuro mercado de Cannabis medicinal não seja dominado por grandes empresas farmacêuticas. “Há anos pais lutam, individualmente ou por meio de associações, para poder oferecer a terapia a seus filhos. Não é justo que agora empresas que só visam lucro monopolizem o mercado e os preços dos remédios não caiam, como deveriam”, disse.

Segundo Figueiredo, o Estado também se beneficiará com a aprovação do projeto de lei, pois atualmente o SUS importa esses medicamentos. Estima-se que, se o cultivo fosse legalizado e o mercado devidamente desenvolvido, o custo mensal do tratamento com remédios produzidos no Brasil seria de aproximadamente R$ 300.

Brasil tem potencial para se tornar um grande ‘player’

Por suas características climáticas, de solo e água, o Brasil pode se tornar um dos maiores produtores mundiais de Cannabis para fins medicinais, com produção suficiente para atender ao mercado interno e exportar. A consultoria Euromonitor International estimou que até 2025 a Cannabis vai movimentar US$ 166 bilhões por ano, em todo o mundo. Este valor representa um aumento de cerca de 1.200% em relação a 2018, quando este mercado movimentou US$ 12 bilhões.

“Com a legislação proibitiva que temos hoje, estimulamos o plantio em países como Estados Unidos, Canadá e Suíça, entre outros que já liberaram o cultivo para fins medicinais. Por que não produzir aqui, gerar emprego, renda e possibilitar que o SUS compre esses remédios a preços significativamente mais baixos?”, perguntou Luciano Ducci.

Segundo o deputado, o SUS prevê atualmente o fornecimento de remédios à base de Cannabis para até 4.000 pessoas, mas a demanda é muito superior a isso. “Existem mais de 25 associações no Brasil, cada uma com dezenas de milhares de associados”, afirmou. Não há números exatos, mas estima-se que milhões de brasileiros ou brasileiros poderiam se beneficiar dessas terapias.

Ducci reforçou que o PL em discussão não autoriza o cultivo individual nem o uso recreativo ou mesmo religioso da Cannabis. “É um projeto muito completo e inovador, que, se aprovado, colocará o Brasil em posição de liderar o mercado internacional de Cannabis medicinal”, concluiu.

‘Passo necessário para uma política de drogas mais positiva’

“A Cannabis é um patrimônio vegetal, arcaico, que foi demonizado nas últimas décadas, mas que, associado à tecnologia existente hoje, pode trazer grandes benefícios”, afirmou Emílio Figueiredo. Segundo o advogado, a legalização da Cannabis medicinal “é um passo necessário para o país adotar uma política de drogas mais positiva, democrática e civilizada, baseada na regulação e não na proibição e na penalização”.

Ducci solicitará regime de urgência para que o projeto seja votado no plenário da Câmara e se diz confiante quanto à possibilidade de aprovação, ainda que com emendas: “Acredito que as chances são boas, pois muitos deputados já se conscientizaram dos benefícios da Cannabis medicinal e do sofrimento enfrentado por milhares de famílias em todo o país.”

Se aprovado na Câmara — são necessários pelo menos 257 votos (metade mais um do total de deputados) — o PL segue para o Senado Federal e, se bem sucedido, vai para sanção presidencial. “Sei que temos hoje um presidente ultraconservador, mas um desafio de cada vez. Se ele vetar, trabalharemos para derrubar o veto”, disse.

“Não é novidade o pioneirismo do Brasil na pesquisa científica e na criação de programas revolucionários na área da saúde como os programas de DST/Aids e de remédios genéricos. Chegou a hora de quebrar mais um tabu”, disse Patrícia Villela Marino, presidente da Humanitas360. O evento foi mediado pela jornalista Valéria França, autora do blog Cannabis Inc (Folha de S.Paulo).

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.