Debates
03 de dezembro de 2025

Um governo de extrema direita no Chile: o que pode representar para a democracia?

Em meio a uma corrida presidencial marcada pela polarização, pesquisas apontam que o Chile chega ao segundo turno com a extrema direita em vantagem. Este webinar discutiu o que esse cenário pode significar para a democracia no país e na América Latina.

O Chile vive um período de sua história democrática caracterizado pela imprevisibilidade e há vários cenários possíveis para o próximo governo, que deve ser liderado pelo ultradireitista José Antonio Kast (Partido Republicano), favorito para vencer o segundo turno da eleição presidencial no domingo, 14 de dezembro, contra Jeannette Jara (Partido Comunista de Chile, PCCh).

Embora tenha feito uma campanha centrada em propostas radicais em relação a dois temas que mobilizam a sociedade chilena no momento — a imigração ilegal e a insegurança pública —, o mais provável é que Kast, ao assumir o governo em 2026, precise fechar acordos com os partidos de centro-direita mais tradicionais e, assim, acabe fazendo um governo mais moderado. Como, aliás, já aconteceu com o atual presidente, Gabriel Boric (eleito pela Frente Amplio, coalizão de partidos de esquerda, incluindo o PCCh), que durante seu mandato iniciado em 2022 se deslocou para a centro-esquerda.

“‘As direitas’, como chamamos aqui, não terão maioria absoluta no Congresso chileno e terão que negociar com os partidos de centro-direita que formavam a coalizão Chile Vamos (base de sustentação do segundo governo de Sebastián Piñera, 2018-2022). Kast, que cresceu politicamente atacando os acordos políticos, agora terá de negociar com a ‘direita covarde’, como ele chamava a base de apoio de Piñera”, disse o ex-senador chileno Ignacio Walker, presidente do Partido Demócrata de Centro (PDC), neste webinar realizado pela Fundação FHC após o primeiro turno das eleições no Chile.

“Kast e os membros do Partido Republicano (fundado por ele em 2019) desprezam a ‘direita covarde’ e é uma má notícia que um movimento anti-acordo chegue ao Palácio de la Moneda, pois acordos são essenciais em uma democracia. Mas é provável que aconteça algo análogo ao que ocorreu com Boric, que, para governar, precisou se aproximar de partidos mais ao centro do espectro político. Quem deu sustentação política a Boric, sobretudo após o fracasso do longo processo constituinte no Chile, foi o socialismo democrático da antiga Concertación (coalizão de centro-esquerda e centro que governou o país de 1990 a 2010)”, disse Loreto Cox, professora assistente na Escuela de Gobierno de la Pontificia Universidad Católica de Chile. 

No primeiro turno das eleições gerais no Chile, em 17 de novembro, a candidata comunista Jeannette Jara (apoiada por Boric) obteve 27% dos votos, enquanto Kast ficou com 24%. Ambos disputarão o segundo turno. O ultradireitista se tornou favorito ao receber rapidamente o apoio de Johannes Kaiser (Partido Nacional Libertario, também de extrema direita), que teve 13,93% dos votos, e de Evelyn Matthei (Unión Demócrata Independiente, centro-direita), que teve 12,56% dos votos. 

A boa votação do outsider Franco Parisi (Partido de La Gente), que ficou em terceiro lugar, com 19,7%, foi a surpresa do primeiro turno. Com um discurso populista de centro, resumido no slogan “nem fascista, nem comunista”, e antissistêmico, Parisi se recusou a apoiar um dos dois finalistas.

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‘As direitas’, como chamamos aqui, não terão maioria absoluta no Congresso chileno e terão que negociar com os partidos de centro-direita que formavam a coalizão Chile Vamos. Kast, que cresceu politicamente atacando os acordos políticos, agora terá de negociar com a ‘direita covarde’, como ele chamava a base de apoio de Piñera.

Ignacio Walker, político chileno e presidente do Partido Demócrata de Centro

Possível implantação de modelo Bukele no Chile preocupa

“O título deste webinar traz uma pergunta: um governo de extrema direita seria uma ameaça à democracia no Chile? Qual a visão de vocês?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso.

“Minha percepção é de que José Antonio Kast tem um lado mais institucional, se comparado a outros líderes de extrema direita com tendências autoritárias no mundo. Durante a campanha, ele disse se identificar com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, que é de direita, mas tem atuado com moderação e dentro das regras do jogo. Mas há o risco de Kast, se eleito, tentar copiar algumas políticas de mão dura implementadas pelo presidente Bukele em El Salvador”, respondeu Cox.

“Não creio que chegaremos ao encarceramento massivo e à eliminação de garantias constitucionais como em El Salvador, mas Kast poderia suprimir algumas garantias e direitos sob o argumento de que é necessário combater o criminalidade e o crime organizado, que têm crescido no Chile nos últimos anos”, continuou a pesquisadora, especialista em temas como comportamento político, opinião pública e funcionamento das instituições políticas no Chile. 

“O presidente Nayib Bukele é o líder estrangeiro com maior apoio popular no Chile hoje e Kast precisa dar respostas rápidas ao problema da criminalidade. Ele também fez do combate à imigração ilegal um tema central de sua campanha, prometeu transformá-la em crime e colocar os imigrantes em situação irregular na prisão. Levando em conta que o sistema penal chileno já está colapsado, é preocupante”, disse Walker.

Ele salientou, no entanto, que as Forças Armadas do Chile, assim como os carabineros (polícia nacional responsável pela manutenção da ordem interna), têm adotado uma atitude institucional de neutralidade desde o retorno do país à democracia, em 1990: 

“Quando ocorreram os grandes protestos conhecidos como ‘estallido social’ (em novembro de 2019), o governo Piñera quase caiu e houve momentos em que parecia que a democracia estava em perigo. Mas os militares não se dispuseram a ir para as ruas, e o presidente Sebastián Piñera resistiu à pressão de alguns setores mais radicais à direita que pediram a decretação de estado de sítio. Ele optou pela via institucional e buscou um acordo com quase todas as forças políticas no Congresso, menos o Partido Comunista, que se recusou a participar.”

“Nos últimos anos, a política chilena tem se mostrado cada vez mais fluída, talvez como resultado do quase desaparecimento dos partidos políticos tradicionais, que davam um pouco de previsibilidade e estabilidade ao processo político. É difícil saber no que  vai resultar essa ‘maioria das direitas’ que deve sair das urnas. Pesquisas mostram que cerca de 50% da população está disposta a abrir mão de parte das liberdades públicas para combater a delinquência. Espero que as elites políticas exerçam um papel de conter essa demanda autoritária”, completou Cox.

Faça o download de duas edições da série Conexão América Latina:
Um “modelo Bukele” para a América Latina?
Chile: o governo Boric e a coalizão Apruebo Dignidad

Kast e os membros do Partido Republicano desprezam a ‘direita covarde’ e é uma má notícia que um movimento anti-acordo chegue ao Palácio de la Moneda, pois acordos são essenciais em uma democracia. Mas é provável que aconteça algo análogo ao que ocorreu com Boric, que, para governar, precisou se aproximar de partidos mais ao centro do espectro político.

Loreto Cox, professora assistente na Escuela de Gobierno de la Pontificia Universidad Católica de Chile

Candidata comunista carrega peso do partido e da impopularidade do governo

De acordo com os convidados, é pequena a chance de Jeannette Jara sair vitoriosa na etapa final, apesar de ter chegado em primeiro lugar no primeiro turno. O principal motivo é um “sentimento anti-incumbente” que tem predominado na política chilena já há quase duas décadas.

“A última vez que um presidente chileno conseguiu fazer o sucessor foi com Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, em 2006. Depois disso, a política tem sido pendular e, nos últimos anos, a polarização se acirrou. No primeiro turno, triunfaram a esquerda dura e a direita dura. Jara tem pouca chance no segundo turno porque carrega o peso de ser apoiada por um presidente que tem 66% de desaprovação. E carrega o peso do Partido Comunista. Não dá para ser marxista-leninista de manhã e reformista de tarde”, disse Walker.

O palestrante frisou, no entanto, que o presidente Gabriel Boric obteve sucessos no combate à criminalidade e à imigração ilegal, esta última resultante sobretudo dos milhares de venezuelanos que deixam seu país por razões econômicas ou fugindo da ditadura Maduro. Segundo Walker, o envio de forças de segurança à fronteira Norte do país reduziu a entrada de imigrantes ilegais em 46% em dois anos. E nos últimos três anos houve uma redução de 78% na criminalidade na região de Araucanía (ao sul de Santiago), que vivia um surto de violência.

Um aspecto positivo das eleições deste ano foi a grande participação do eleitorado: “As eleições foram impecáveis, do ponto de vista da organização, apuração e participação cidadã. Antes, quando o voto não era obrigatório, apenas 40% a 45% do eleitorado comparecia às urnas. Desta vez, houve 86% de participação”, disse Walker. Esta foi a primeira eleição com voto obrigatório desde o retorno do país à democracia. O Chile não permite a reeleição subsequente do presidente da República.

“Em comparação com outros países da América Latina, o Chile continua sendo um país seguro, mas crescem os indícios de que temos hoje uma maior presença do crime organizado que no passado. E a percepção da cidadania é de que a criminalidade é um problema grave”, disse Cox.

A pesquisadora salientou que os últimos três governos chilenos — Bachelet (2014-18), Piñera (2018-22) e Boric (2022 até hoje) — apresentaram desgaste e problemas de governabilidade logo no primeiro ano: “Acho difícil isso mudar, a não ser que o eleito (ou a eleita) obtenha resultados rápidos no tema da insegurança. Considerando que as polícias vão ser as mesmas, o sistema judicial será o mesmo, isso é pouco provável.”

Eventual fracasso do futuro governo pode aprofundar sentimento anti-establishment

Loreto e Ignacio demonstraram preocupação com os rumos da política chilena, caso o novo governo não consiga, novamente, corresponder às expectativas elevadas dos chilenos:

“O êxito de Franco Parisi, um populista antissistema, acende o sinal amarelo. Ele é jovem e pode ganhar força para a próxima eleição, o que é muito preocupante porque aprofunda as incertezas”, disse Walker.

“Desde o ‘estallido’ tem sido quase impossível prever o que vai acontecer no Chile. Desta vez não é diferente”, concluiu Cox.



Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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