Debates
08 de agosto de 2012

Saúde Municipal: Os Desafios do SUS e o Papel das Parcerias Público-Privadas

O debate fez parte do ciclo “As Grandes Cidades Brasileiras: Identificando Problemas, Buscando Soluções”, promovido pela Fundação FHC e Fundação BRAVA.

A Fundação Fernando Henrique Cardoso e a Fundação BRAVA se uniram para promover uma série de oito seminários com acadêmicos e gestores que vivenciam a formulação e implementação de políticas públicas metropolitanas, e assim promover discussões sobre desafios e soluções para as grandes cidades brasileiras.

A iniciativa busca contribuir para a qualidade do debate neste ano de eleições municipais. Além disso, pretende difundir exemplos, conhecimentos e inovações que melhorem a gestão pública nos próximos anos.

Saúde pública: como conciliar o público e o privado na busca por uma gestão mais eficiente

O governo federal ainda é o principal responsável pelo financiamento da saúde pública no Brasil, mas é crescente a importância dos estados e – sobretudo – a dos municípios nessa área. Se, em 2000, as participações da União, dos estados e dos municípios no financiamento do SUS eram, respectivamente, de 59,8%, 18,6% e 21,7%, esses números alteraram-se para 44,7%, 26,7% e 28,6% em 2010*. Cada vez mais responsáveis pelo atendimento à população, como as cidades brasileiras têm conciliado esse dever público com os limites fiscais a que devem obedecer? A aposta das duas maiores cidades do país tem sido em modelos de gestão compartilhada com instituições de direito privado, os quais têm otimizado os investimentos no setor. Sozinhos, no entanto, esses modelos não são capazes de sanar todas as formas de ineficiência do gasto público em saúde. Essa é a visão compartilhada pelos secretários de saúde das prefeituras de São Paulo e Rio de Janeiro – respectivamente, Januario Montone e Hans Domann –, exposta em seminário realizado no dia 21 de agosto de 2012.

Entre as instituições de direito privado, as organizações sociais de saúde (OSS’s) têm sido a opção preferida tanto no Rio de Janeiro, como em São Paulo. Diferentemente do que se passa no modelo de parcerias público-privadas (PPP’s) , as OSS’s não recebem concessões para realizar investimentos com recursos próprios nas áreas em que atuam ou para buscar lucros nos serviços que oferecem. As OSS’s administram recursos que lhes são repassados pelo poder público, administração essa que é pautada por contratos de gestão nos quais estão estipuladas as atividades que devem desempenhar, bem como o orçamento do qual dispõem e as metas que devem alcançar. Caso não cumpram essas determinações, elas são punidas com perdas de contratos com o poder público e / ou na remuneração que, em princípio, deveriam receber pela prestação do serviço.

Hans Domann e Januario Montone são categóricos quanto aos benefícios desse modelo. No caso do Rio, o secretário aponta, entre outras conquistas, a adoção do regime celetista em unidades de pronto-atendimento, o que contribuiu decisivamente para a maior atração e menor rotatividade de médicos nessas unidades. Já em São Paulo, as parcerias com as OSS’s foram as principais responsáveis pela expansão de 545 para 945 equipamentos de saúde próprios do município entre 2004 e 2012, segundo Montone. Outra virtude do modelo seria a ampliação da transparência do gasto dos recursos públicos. Dado que os recursos alocados às OSS’s devem ser empregados de acordo com os termos dos contratos de gestão, torna-se mais fácil fiscalizar como e por que as verbas públicas foram, ou não, gastas.

O entusiasmo dos dois secretários em relação ao modelo não é compartilhado por Sonia Fleury, professora titular da EBAPE/FGV. Para ela, as mesmas metas que são impostas a parceiros privados poderiam ser adotadas também no setor público. Além disso, não haveria nenhuma garantia de que esquemas de corrupção não possam ser formados também em torno dos recursos públicos alocados a instituições de direito privado.

Certamente, esses são desafios e perigos reais, mas abrir mão do modelo de OSS’s ou de seu aprimoramento seria o mesmo que jogar o bebê fora junto com a água do banho, afirmam os secretários. Afinal, nenhum modelo de administração pública – seja ele baseado mais no setor público ou no privado – é inerentemente eficiente ou livre de corrupção. Seu desempenho depende do modo como é desenhado e gerido. Ademais, apostar no modelo de OSS’s não significa sucatear a administração pública direta. No Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 75% do orçamento da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil é destinado à administração direta, ao passo que apenas os 25% restantes são alocados a ações desenvolvidas em parcerias com OSS’s e outras instituições de direito privado, como ONG’s e hospitais particulares conveniados.

Ainda que venha se mostrando um parceiro útil ao aprimoramento da eficiência do setor público na área da saúde, a iniciativa privada também impõe desafios a serem superados. O principal deles é a falta de coordenação entre os dois setores. Para Januario Montone, o problema mais delicado está no fato de que, graças a determinações constitucionais, mesmo cidadãos que possuem planos privados de saúde têm permissão para utilizar os serviços do SUS. Isso cria uma legião de “usuários-surpresa”, ou seja, usuários que podem, ou não, vir a utilizar o sistema. Diante dessa indefinição, a capacidade do gestor público de planejar adequadamente sua rede de atendimento à população fica seriamente abalada. A saída proposta por ele é que nenhum cidadão perca o direito ao SUS, mas que não possam acessá-lo aqueles que estiverem vinculados a planos privados de saúde. Ao deixarem esses planos, eles recuperariam o livre acesso ao SUS. Ao menos no curto e no médio prazo, a proposta não possui qualquer chance de se tornar realidade. Afinal, dificilmente ela encontraria adeptos políticos dispostos a defendê-la publicamente.

Januario Montone defende também a definição de uma estrutura clara e bem articulada entre União, estados e municípios na prestação de serviços de saúde. Atualmente, os municípios são responsáveis por atendimentos de baixa e de média complexidade, enquanto os estados cuidam de atendimentos de média e de alta complexidade e a União, dos atendimentos de alta complexidade. Essa linha de cuidado bastante fragmentada por esferas de governo faz com que o encaminhamento de pacientes de atendimentos mais simples para os mais complexos – por exemplo, de uma unidade básica de saúde municipal para um hospital estadual – não aconteça com facilidade, mesmo nos municípios que desfrutam de boas relações com os níveis estadual e federal. Além de prejudicial aos usuários, essa fragmentação faz com que não seja claro qual é o papel das secretarias municipais de saúde: elas são prestadoras de serviço ou gerenciadoras do sistema? Enquanto essa definição não vem, uma alternativa é continuar apostando na gestão compartilhada com parceiros de natureza privada, já que – ao contribuir ao aprimoramento da gestão pública do setor – ela permite às secretarias não descuidar das obrigações constitucionais que têm como gerenciadoras do sistema.

Apesar do aprimoramento da gestão pública por meio de parcerias com o setor privado ser uma das opções mais viáveis diante de indefinições constitucionais e de restrições fiscais, essa é uma saída que também têm limites. Hans Domann e Januario Montone são igualmente categóricos em afirmar que, no setor, o dilema “Mais gestão ou mais recursos?” é uma falácia. Para eles, mais gestão e mais recursos são igualmente importantes. Como apontado por Januario Montone, os municípios estariam trabalhando cada vez mais nas duas frentes, enquanto a União – ao menos no que tange ao financiamento do SUS –, não. Além de prejudicial ao atendimento da população, esse “desfinanciamento” por parte do governo federal teria um forte impacto sobre as administrações públicas das grandes cidades, sobretudo nas regiões metropolitanas. Isso porque cada município investe em seus sistemas próprios de atendimento, e não em redes intermunicipais. Sem as verbas federais – as únicas que, mediante a imposição de contrapartidas pela União, seriam capazes de dar “liga” a sistemas desse tipo –, as cidades continuarão a necessitar de recursos (financeiros e administrativos) adequados para enfrentar cenários locais cada vez mais complexos.

* “A Saúde no Brasil em 2030”, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2012.