Religião, Democracia e Educação no Brasil: ‘É preciso debater o tema para superar a polarização’
O ensino religioso na rede pública coloca um risco à laicidade do Estado? Representa uma ameaça à diversidade cultural e religiosa?
“A presença da questão religiosa no espaço público brasileiro é um fato incontornável, que obriga a uma revisão nas relações entre religião e política, para resguardar tanto a liberdade religiosa como a democracia”. Assim o sociólogo Bernardo Sorj abriu o evento de lançamento do livro “Religião, Democracia e Educação no Brasil”, a mais recente publicação da Plataforma Democrática – iniciativa da Fundação FHC e do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais – disponível gratuitamente em formato digital.
O livro, organizado por Sorj e pelo cientista político Sergio Fausto, diretores do projeto Plataforma Democrática, traz textos de oito autores sobre as relações entre religião e educação em uma democracia como a brasileira, onde a separação entre Estado e religião é assegurada pela Constituição, mas a influência da religião na política é crescente.
“O tema que nos toca analisar é complexo e remonta às nossas origens enquanto nação. O ensino religioso é um ingrediente a mais a tensionar o cotidiano da escola e, ao redor disso, há muitas pesquisas e opiniões bem fundamentadas, contra e a favor”, disse Elcio Cecchetti, coordenador do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper).
Ensino religioso no Brasil: uma visão histórica
Doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Elcio integrou a equipe de redatores da área de Ensino Religioso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em sua fala, ele apresentou uma visão histórica das relações entre educação e religião no Brasil.
“No Império, ser cidadão significava ser católico e toda a educação era religiosa (e católica). À medida que as ciências avançaram, a religião foi perdendo espaço e se condensando em uma disciplina”, explicou. A fórmula da facultatividade (a não obrigatoriedade) da aula de ensino religioso – presente até hoje na Constituição Federal e na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) – nasceu no final do Império e foi retomada em todas as Constituições da República, exceto na primeira. A fórmula da facultatividade ajudou os legisladores a não desagradar a nenhum dos lados.”
A questão do ensino religioso voltou à tona na Assembleia Constituinte de 1977-88 e o interesse foi tão grande que o assunto foi o segundo em termos de assinaturas e manifestações populares durante o processo constituinte. O ensino religioso foi, então, incluído no primeiro parágrafo do artigo 210 da Constituição Federal de 1988.
“É a única disciplina escolar prevista explicitamente na Constituição e, para compreender esse fato inusitado, só olhando para a história. Permanecem na sociedade brasileira aqueles que, de um lado, defendem a sua inclusão, e de outro, buscam a exclusão completa desse componente”, disse.
Nos anos 1990, surgiu uma “terceira via” que passou a defender a ideia de converter o ensino religioso em um componente curricular com uma identidade pedagógica, e não eclesial, proposta que veio a se configurar no Fonaper, o fórum que Elcio Cecchetti coordena. Hoje, essa terceira via se mantém como perspectiva oficial no âmbito do currículo escolar.
“Pela primeira vez na história da República, temos atualmente um currículo de ensino religioso não-confessional, homologado, servindo de referência para todos os sistemas de ensino (embora seja facultativo para as escolas privadas). Há uma tentativa de equilibrar a laicidade da escola pública ao preceito de inclusão e respeito à diversidade, a partir de uma abordagem pedagógica”, salientou o educador, acerca do texto da BNCC.
O Brasil é de fato um Estado laico?
A advogada Joana Zylbersztajn, sócia da Veredas – Estratégias em Direitos Humanos e colaboradora da Comissão Dom Paulo Evaristo Arns de Direitos Humanos, abordou o tema da laicidade do Estado brasileiro, sobre o qual escreveu um livro. “Esse debate é muito tensionado por paixões e opiniões e, às vezes, muito pouco acadêmico. Sentimos falta de alguns conceitos mais sólidos, pois os termos são usados de acordo com os interesses do interlocutor”, disse.
Segundo a autora do livro “A laicidade do Estado brasileiro” (Verbena Editora, 2016), é preciso definir melhor termos como secularismo, laicismo, ateísmo e deísmo. Acerca da laicidade, a advogada apresentou a definição encontrada na “Declaração Universal da Laicidade no Século XXI”, apresentada no Senado francês em 2005 por ocasião do centenário da separação entre Estado e Igreja na França.
“Segundo esse documento, a legitimação do poder já não está mais em Deus, mas no povo. Seus autores também falam em liberdade de consciência e prática, ou seja, a liberdade, inclusive religiosa, é um elemento constitutivo da laicidade – que não é contra a religião, pelo contrário, absorve a religiosidade. A ideia de laicidade também trabalha com a ideia de imparcialidade, ou seja, não há uma religião melhor do que a outra”, explicou.
Para a especialista, a Constituição Federal de 1988 não declara textualmente que o Brasil é um Estado laico, embora em diversos trechos da Carta Magna haja referências à separação entre religião e Estado: “Falamos com tranquilidade que o Brasil é laico, pois há diversos elementos da laicidade em sua Constituição: o artigo 1º fala em democracia, o artigo 5º fala em liberdade e em igualdade, o artigo 19 fala em separação de Estado e religião. Podemos, portanto, falar que o país é constitucionalmente laico. O que não significa que ele seja laico na prática. Há países que não são formalmente laicos, mas na prática social e política podem ser mais laicos do que países que definem a separação entre Estado e religião.”
Joana lembrou que até o Império o Brasil era um país confessional, católico e, na primeira Constituição da República, houve uma tentativa de exclusão de qualquer religiosidade da esfera pública. Mas, no desenvolvimento posterior da sociedade brasileira, os elementos de religiosidade ressurgem com força. “Isso parte de uma compreensão de que não é possível excluir a religiosidade de forma completa da vida pública, pois ela faz parte da sociedade”, disse.
Diversidade e pluralidade na educação
Em sua intervenção final, Bernardo Sorj buscou estabelecer uma distinção entre os temas da diversidade e da pluralidade e o ensino da religião, no contexto da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). “Há toda uma preocupação, que não é de ordem religiosa, sobre pluralidade e diversidade na escola. Isso não tem a ver com ensino religioso, e sim com valores morais e éticos que estão na Constituição. Na realidade temos duas coisas distintas que foram amalgamadas: de um lado, valores cívicos, éticos e cidadãos; e uma outra matéria, que é o ensino religioso, ou o ensino sobre religiões, que é fundamental e deveria integrar a área de humanidades.”
Joana Zylbersztajn disse que o debate franco e amplo é o melhor caminho para superar a polarização em torno do assunto. “Fortalecer a laicidade do país é um desafio histórico. Mas, assim como em todos os outros direitos fundamentais, não se conquista o objetivo último de uma hora para a outra. Precisamos ser honestos com a situação em que vivemos. Este não é um assunto resolvido e há muito o que fazer para que atinjamos a laicidade real. Temos que rever nossos próprios preconceitos e restrições.”
“A laicidade nunca é uma violência. É uma violência apenas para um grupo: as pessoas antidemocráticas”, concluiu Bernardo.
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Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.