Política Nacional de Data Centers: um passo na direção correta?
Quais são os riscos e as oportunidades dessa iniciativa? Que impactos ela pode trazer do ponto de vista ambiental, econômico e social? Neste webinar, quatro especialistas analisaram esses e outros aspectos importantes dessa nova política pública.
A demanda crescente por serviços em nuvem e a disseminação acelerada da inteligência artificial estão colocando os data centers na agenda estratégica de diversos países. No Brasil, o governo federal prepara uma Política Nacional de Data Centers, (também conhecida como Redata) com o objetivo de estimular a instalação no território nacional dessas infraestruturas críticas para o desenvolvimento econômico e social e para a soberania nacional, cada vez mais dependentes de redes e serviços digitais rápidos e confiáveis.
Para discutir os riscos e as oportunidades dessa proposta, a Fundação FHC reuniu quatro especialistas com experiências complementares: Dora Kaufman (TIDD-PUC-SP), Luciano Fialho (Scala Data Centers), Renan Lima Alves (Associação Brasileira de Data Centers) e Thiago Barral (ex-EPE e MME). A mediação foi de Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC.
O debate deixou claro que o Brasil tem vantagens relevantes, mas também gargalos urgentes a superar, na disputa global por investimentos em data centers. Os participantes destacaram cinco pontos principais:
- O país possui diferenciais positivos como uma matriz energética renovável, o que permite aumentar o número de data centers sem incrementar as emissões de gases de efeito estufa, um mercado consumidor grande e uma infraestrutura de conectividade em expansão.
- O maior desafio para aproveitar essas vantagens está em melhor coordenar as ações nos setores de energia e telecomunicações e ter uma política nacional adequada de incentivos, para o que o Redata é um passo na direção certa.
- A concentração do mercado global em poucas empresas e a atual dependência externa no processamento de dados expõem o país a riscos de soberania.
- É fundamental que a nova política traga contrapartidas concretas para o desenvolvimento interno, em ciência, indústria e inclusão digital.
- Os próximos três anos serão decisivos na disputa entre vários países para a atração de investimentos em data centers. O Brasil precisa aproveitar essa janela de oportunidade.
Um setor em transformação e o papel da ABDC
Renan Lima Alves, presidente da Associação Brasileira de Data Centers (ABDC), explicou de forma didática o funcionamento dos data centers: estruturas compostas por racks (conjuntos de servidores), que se interligam para formar a nuvem — base de toda a economia digital. “Tudo o que usamos no celular, no computador, no streaming, depende de data centers”, afirmou. A pandemia de Covid-19, segundo ele, antecipou em sete anos a curva de adoção digital no Brasil, o que gerou uma explosão na demanda por essa infraestrutura.
Ele também diferenciou dois tipos de centros de dados usados em IA: os de inferência (voltados à interação com o usuário, como no ChatGPT) e os de treinamento (voltados ao aprimoramento de algoritmos). Os primeiros, por exigirem baixa latência, ou seja, rapidez no processamento e transmissão de dados, devem ser instalados próximos aos usuários. Os segundos, por sua vez, podem estar mais distantes — o que representa uma oportunidade para o Brasil exportar serviços de dados.
“O Brasil tem uma matriz energética 89% renovável, uma base industrial robusta, é a sexta maior economia do mundo e tem a quarta maior base de usuários de internet”, destacou. Para aproveitar esse potencial, porém, é preciso agir rápido. Segundo Renan, há uma janela de dois a três anos para o país se consolidar como hub de data centers voltados à IA.
Ele apontou três desafios prioritários:
- Incentivos tributário para ativos de TI;
- Celeridade e a desburocratização no processo de conexão à rede (que hoje pode levar até 14 meses);
- Ambiente regulatório favorável para a IA.
Renan também esclareceu que o uso de água em data centers não será um fator de estresse hídrico para o país: os sistemas utilizam circuitos fechados e reusos, sem consumo constante. Na conclusão, reforçou que a política pública é essencial para impulsionar a indústria 4.0, audiovisual e outras áreas dependentes de processamento digital.
O Brasil tem uma matriz energética 89% renovável, uma base industrial robusta, é a sexta maior economia do mundo e tem a quarta maior base de usuários de internet. Há uma janela de dois a três anos para o país se consolidar como hub de data centers voltados à IA.
Renan Lima Alves, presidente da Associação Brasileira de Data Centers
Infraestrutura digital: um jogo de país
Representando a Scala Data Centers, uma plataforma de data centers de alcance latino-americano, Luciano Fialho destacou que esta é uma atividade, acima de tudo, de infraestrutura: exige alto investimento inicial, suprimento estável de insumos e integração com redes de conectividade e energia. “Sem fibra óptica, sem torres de transmissão, os dados simplesmente não circulam”, afirmou.
Luciano explicou que a pandemia acelerou exponencialmente o uso de serviços digitais, pressionando a infraestrutura a se mover para mais perto dos usuários latino-americanos: “empresas brasileiras que antes processavam dados no exterior passaram a buscar soluções locais para atender melhor o mercado interno”. No entanto, o Brasil ainda tem um déficit de US$ 6 a 7 bilhões por ano na importação de serviços de processamento de dados — recursos que poderiam circular internamente.
Ele comparou o cenário brasileiro com Ashburn, na Virgínia (Estados Unidos), principal polo de processamento global, onde a espera de novos data centers para se conectar a redes de energia pode chegar a sete anos. “O Brasil tem uma oportunidade rara: possui um grid interligado e um excedente de energia renovável entre 89% e 92%, muito superior aos 25% dos EUA”, apontou.
Para Luciano, a Política Nacional de Data Centers é um passo na direção certa por sinalizar que o tema se tornou importante do ponto de vista de política pública. Mas há entraves. Um dos principais é a fila de conexão elétrica, muitas vezes congestionada por especuladores — que não são provedores de data center sérios — Esses “freeriders” pedem acesso à energia apenas para revender o “lugar na fila”. A exigência de garantias financeiras, medida adotada pela ANEEL, deverá desestimular os especuladores. A agência deveria também suprir a lacuna de informação sobre onde se localizam e que capacidade terão os data centers previstos nos projetos que solicitam conexão à agência. Isso permitiria um melhor planejamento de investimentos públicos e privados.
Luciano defendeu ainda ajustes na LGPD para deixar claro que dados de não residentes no Brasil, que sejam aqui processados e devolvidos ao país de origem, estejam isentos das obrigações da lei. Isso estimularia empresas de outros países, em especial as que estejam pressionadas por metas de redução de emissão de carbono, a processar seus dados no Brasil, aproveitando a ampla oferta de energia renovável que aqui existe. É como, concluiu ele, se estivéssemos fazendo “exportação de energia com valor agregado”.
Planejamento energético e gargalos
Tiago Barral, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e ex-secretário nacional de Transição Energética, trouxe dados da Agência Internacional de Energia que mostram a expansão global dos data centers: hoje, eles já representam 1,5% da demanda por energia no planeta, número que deve dobrar até 2030. Desde 2017, a demanda energética do setor cresce mais de 12% ao ano, impulsionada pela IA, ritmo quatro vezes superior ao crescimento médio do consumo elétrico global.
Barral destacou que essa expansão tem sido altamente concentrada: EUA (45%), China (25%) e Europa (15%) respondem pela maior parte da demanda, e devem concentrar 80% do crescimento até o fim da década. “O Brasil tem uma chance histórica de mudar esse mapa”, afirmou.
Segundo ele, o país reúne dois fatores decisivos: abundância de energia renovável e um sistema elétrico nacional interligado. Isso permite não apenas ampliar o atendimento interno, mas também posicionar o Brasil como exportador de serviços digitais. No entanto, há riscos. Os pedidos de conexão saltaram de 2,5 GW (em maio de 2024) para mais de 13 GW — crescimento exponencial que exige planejamento conjunto entre setor público e privado, sob risco de socializar custos e perder competitividade. Parte desse crescimento, como destacou Luciano Fialho, é puramente especulativo, e deve se retrair com a exigência de garantias financeiras para solicitação de conexão à Aneel. De qualquer modo, é um crescimento expressivo.
“O ciclo de planejamento energético é de sete anos. E a janela de oportunidade dos data centers é de dois a três. Precisamos de estratégias excepcionais”, alertou.
Para ele, a política de atração deve ter como “cláusula pétrea” o compromisso de que parte da capacidade de processamento sirva à sociedade brasileira — empresas, academia, usuários e governo. “É isso que gera ganho de produtividade e PIB. O resto é só infraestrutura física.”
Dados e soberania nacional
Dora Kaufman, professora do TIDD/PUC-SP, abriu sua fala destacando duas questões: a sociedade hiperconectada, que gera dados o tempo todo, e a crise climática, que exige soluções sustentáveis. A inteligência artificial, segundo ela, opera nesses dois eixos: consome muitos dados e energia, mas também pode ser usada para mitigar impactos e otimizar sistemas.
Dora alertou para a concentração global do mercado de dados: três empresas americanas — AWS, Microsoft e Google — controlam 63% do processamento mundial. Esse domínio implica controle de preços e reduz a competitividade de empresas brasileiras, que enfrentam custos elevados para acessar esses serviços. Estima-se que 60% dos dados do Brasil são processados nos EUA, inclusive dados governamentais, o que gera preocupações sobre soberania e segurança.
Apesar disso, ela enfatizou que o Brasil tem vantagens competitivas claras: matriz energética renovável, recursos naturais abundantes, e rede elétrica interligada. O problema, segundo ela, está na distribuição de energia — não na geração — e na carga tributária. “Com o mesmo provedor, processar dados no Brasil custa 25% mais caro do que nos EUA”, afirmou.
Sobre o impacto social da política, Dora argumentou que o benefício não está no número de empregos diretos (reduzidos devido à automação), mas no aumento da capacidade nacional de processar dados com soberania, eficiência e custos menores. Isso, sim, gera ganhos sociais amplos.
Ela também explicou que data centers voltados ao treinamento de IA não precisam estar próximos ao mercado consumidor, o que amplia as possibilidades de localização estratégica em regiões com melhor oferta de energia e espaço.
“O Estado não pode apenas oferecer atrativos. Tem que garantir que o país se beneficie desses investimentos”. Dora falou sobre a política nacional, e elogiou suas contrapartidas, como:
- Percentual da capacidade do processamento para empresas brasileiras, públicas e privadas;
- Investimentos obrigatórios em pesquisa e centros de conhecimento nacionais;
- Regras transparentes para transferência e exportação de dados.
Veja também:
6ª temporada da série de minidocs inéditos Vale a Pena Perguntar, que aborda a relação entre Inteligência Artificial e Meio Ambiente;
Desafios da Inteligência Artificial Generativa, com Glauco Arbix;
Dados podem impactar a soberania nacional? , com Fernanda Rosa;
Como a Inteligência Artificial poderia diminuir desigualdades?, com Glauco Arbix.
Saiba mais:
Desafios para o Brasil avançar na restauração ecológica e na redução da mudança climática
Descarbonização, Desafios e Oportunidades para a Indústria Brasileira – Diagnóstico e Propostas
Isabel Penz é historiadora (FFLCH-USP) e mestre em comunicação (Universitat Pompeu Fabra/Espanha). É analista de Estudos e Debates na Fundação FHC.