Debates
07 de agosto de 2017

Peru: um modelo para a América Latina?

“Vivemos uma fase de incerteza. O consenso de centro que vigorou nas últimas décadas começa a mostrar fissuras e surge a possibilidade de aventuras populistas”, disse Martín Tanaka, pesquisador do Instituto de Estudos Peruanos.

Embora o atual presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, economista liberal de centro-direita, tenha sido eleito há pouco mais de um ano (5 de junho de 2016), o cenário político e econômico está mudando rapidamente e cresce a incerteza sobre o futuro do país. Esta foi a principal conclusão do seminário “Peru: um modelo para a América Latina?”, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.

“Para quem vê de fora, o Peru é difícil de entender. A sensação é de que a economia vai bem, mas a política vai mal, com uma sucessão de presidentes frágeis e com baixa popularidade. Esta percepção é verdadeira?”, perguntou Sérgio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC, no início do debate. “A ideia hoje é justamente analisar o Peru sob esta dupla perspectiva, da economia e da política”, continuou o mediador do evento, que reuniu um economista e um cientista político peruanos, respectivamente Elmer Cuba Bustinza, diretor do Banco Central peruano, e Martín Tanaka, do Instituto de Estudos Peruanos. Ambos lecionam na Pontifícia Universidade Católica do Peru.

“A vitória de PPK (iniciais do nome do presidente, amplamente utilizadas no Peru) não se traduziu em maior dinamismo econômico. Hoje existe um empate entre os 500 principais líderes empresariais do país em relação às perspectivas do país. Metade está otimista, a outra metade pessimista”, afirmou Elmer Cuba, um dos diretores do Banco Central peruano.

As três razões da incerteza

Segundo Martín Tanaka, o crescimento do sentimento de incerteza tem três razões principais:

1. A oposição, liderada por Keiko Fujimori (filha do ex-presidente Alberto Fujimori, preso por corrupção e violações de direitos humanos), domina o Congresso;

2. As políticas de centro, que foram consensuais desde o final dos anos 1990, começam a ser questionadas pela população;

3. o prestígio de uma “elite tecnocrata”, que ocupou cargos-chave, em especial na área econômica, em todos os governos nas últimas duas décadas, está em xeque, em parte devido a denúncias de corrupção, algumas delas relacionadas à Operação Lava Jato.

PPK venceu o segundo turno da eleição do ano passado com 50,11% dos votos, contra 49,88% de Keiko, mas o partido Fuerza Popular, da filha de Fujimori, controla 73 das 130 cadeiras do Parlamento (unicameral), enquanto o presidente conta com apenas 18 deputados. Os presidentes anteriores também não tinham maioria quando eleitos, mas não enfrentaram oposição tão sólida e conseguiram governar por meio de coalizões.

“Neste último ano, nem o governo nem o fujimorismo souberam como manejar essa situação. A percepção da população é a de que o governo não consegue governar e o obstrucionismo fujimorista prejudica a economia”, explicou Tanaka. Embora Keiko não possa se desvincular totalmente das políticas moderadas de centro, que, queira ela ou não, foram implementadas por seu pai nos anos 1990, a líder da oposição flerta com um populismo de direita.

“Os cenários mais catastróficos, em que o Congresso tentaria derrubar o governo de PPK, por meio de um voto de desconfiança (admitido no Peru), ou o presidente tentaria fechar o Congresso, não se confirmaram neste primeiro ano e não estão no horizonte. Mas há um impasse político e não se sabe como a relação entre o Executivo e o Legislativo vai se desenvolver”, afirmou.

Consenso de centro abalado

Ainda segundo o cientista político, as reformas econômicas implementadas durante o governo Fujimori (1990-2000), que colocaram fim à hiperinflação e abriram caminho para duas décadas de estabilidade e crescimento, foram essencialmente mantidas pelos três presidentes que vieram em seguida.

“Depois de Fujimori, veio Alejandro Toledo (2001-2006), que nunca questionou o modelo econômico dos anos 90 e foi eleito com a promessa de lutar contra a corrupção e o autoritarismo e fortalecer as instituições democráticas”, disse. Toledo enfrenta processo de extradição nos Estados Unidos, onde vive, após um juiz de Lima ter determinado sua prisão preventiva por supostamente ter recebido US$ 20 milhões da empreiteira brasileira Odebrecht para favorecê-la na concessão da Rodovia Interoceânica Sul, que liga o Acre, na Amazônia brasileira, à costa do Pacífico peruana.

Alan García (do partido APRA, originalmente de centro-esquerda, que governou de 1985 a 1990, auge do terrorismo do Sendero Luminoso e da hiperinflação, e de 2006 a 2011), “consciente do desastre econômico que havia sido seu primeiro mandato, reforçou o consenso de centro e, embora não tivesse uma política social bem definida, se beneficiou da redução da pobreza resultante do boom das commodities (produtos agrícolas e minerais) nos anos 2000.”

Até mesmo o presidente Ollanta Humala (do esquerdista Partido Nacionalista Peruano, que governou de 2011 a 2016) optou por manter a política econômica herdada dos tempos de Fujimori. “Apesar de representar um giro à esquerda um tanto tardio (na América do Sul), Humala se inspirou no exemplo do presidente Lula e nomeou um ministro da Economia e um presidente do Banco Central ortodoxos”, explicou Tanaka. Após ser eleito, em 2002, Lula indicou Antônio Palocci para o Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles para o Banco Central, mantendo o essencial da política econômica do governo FHC durante boa parte do primeiro mandato.

“Portanto, desde os anos 90, nenhum governo questionou pra valer as reformas pró-mercado implementadas por Fujimori. Mas, agora que passou o boom econômico dos anos 2000 (em parte motivado pelo alto preço das commodities no mercado internacional), essas políticas mais moderadas estão sendo crescentemente desafiadas, até mesmo pelo partido de Keiko”, completou.

Tecnocracia sob suspeita

De acordo com Tanaka, os presidentes da era pós-Fujimori optaram por colocar os cargos mais importantes do governo, em especial os da área econômica, nas mãos de profissionais tecnicamente respeitados. “O êxito relativo (da economia) nos últimos anos se baseava, de certa maneira, no prestígio de uma elite tecnocrata que tomava as grandes decisões. Intromissões políticas eram vistas como prejudiciais ao bom funcionamento do Estado”, disse.

Mas, com o surgimento de denúncias de corrupção envolvendo todos os últimos ex-presidentes, figuras centrais de seus governos (incluindo alguns ‘técnicos’) e grandes grupos empresariais, entre eles o brasileiro Odebrecht, aquela aura de eficiência que, de certa forma, blindou os últimos governos está sob ataque.

“Neste momento, com uma taxa de crescimento menor e uma onda de denúncias de corrupção contra membros dos últimos governos, surge espaço para discursos populistas tanto de esquerda quanto de direita”, disse o cientista político. “Fortalece-se também o discurso de que técnicos não devem governar um país tão complexo como o Peru e que os políticos, supostamente mais sensíveis às necessidades da população, devem ter maior protagonismo.”

Além de Toledo, foragido nos Estados Unidos, o ex-presidente Ollanta Humala foi preso em julho deste ano em um caso de corrupção envolvendo a Odebrecht. Também Alan García foi citado em delações da Lava Jato e enfrenta denúncia de corrupção. “Keiko certamente será uma das protagonistas na eleição de 2021, mas há espaço para um candidato totalmente outsider, que diga que não tem nada a ver com os quatro últimos governos”, disse.

Estrela macroeconômica ainda frágil

Embora a economia peruana tenha crescido em média 6% ao ano entre 2004 e 2013 e na faixa de 4% ao ano entre 2014 e 2016, bem acima da média latino-americana, ela vem perdendo fôlego nos últimos anos.

“Mesmo após o fim do boom das commodities, o Peru conseguiu se manter no topo (de crescimento da região). Mas, após a vitória de PPK, tivemos uma mini-recessão, que começa a dar sinais de melhora”, disse Elmer Cuba Bustinza, um dos diretores do Banco Central do Peru.

O crescimento elevado durante mais de uma década, com inflação sob controle, resultou na duplicação do PIB per capita nesse período (apesar de o Peru ainda ocupar o 6º lugar no ranking das principais economias latino-americanas, tendo ultrapassado recentemente a Venezuela). “Também houve um notável crescimento da classe média, o que pode ser visto pelo aumento da venda de automóveis e casas”, relatou o economista.

Embora o investimento público e privado estejam no negativo e o consumo privado esteja se desacelerando, o Peru deve crescer algo entre 2% e 2,5% em 2017 (a economia brasileira, com sorte, vai parar de diminuir, após três anos de recessão) e acima de 3% nos próximos anos. “Com este crescimento, não é possível incorporar todos os jovens ao mercado de trabalho e os salários ficam estagnados”, afirmou o palestrante.

Apesar dos avanços, ainda há muitas fragilidades, como a grande diferença de nível de vida entre Lima, as demais cidades peruanas e o mundo rural e o alto grau de informalidade do mercado de trabalho. Enquanto nas cidades haja em torno de 14% de pobres, este percentual sobe para 40% no mundo rural. E 70% da população urbana trabalha na informalidade, sem direito a seguro de saúde, plano de aposentadoria e férias remuneradas. Devido à rigidez das leis trabalhistas, mesmo empresas formais têm funcionários em situação informal.

Na área da saúde, os dados não são animadores: 33% das crianças de 6 meses a 59 meses de idade são anêmicas, sendo que no mundo rural essa taxa chega a 40%, apesar da desnutrição infantil ter caído pela metade nos últimos 8 anos. A qualidade da educação está melhorando, mas apenas 46% dos peruanos apresentam nível satisfatório de compreensão de leitura. Em matemática, são 34%. “Com uma educação de baixa qualidade, estamos formando os pobres do futuro”, disse o palestrante.

“O Peru não tem um grande déficit fiscal, mas não sabe gastar bem os recursos de que dispõe, o que revela um fracasso do Estado”, completou Elmer Cuba.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.