Debates
27 de setembro de 2016

Os Estados e o Ajuste Fiscal: é preciso sair da beira do abismo

“Como vimos hoje, tecnicamente já se sabe o que fazer, mas falta o elo político. É preciso convencer a sociedade, que está perdida e ainda não sabe que esta agenda existe”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

“Sem uma agenda de ajuste fiscal pelo lado da despesa não temos condições de fazer o Brasil voltar a crescer.”
Ana Paula Vescovi, secretária do Tesouro Nacional

A crise fiscal aguda que atinge diversos Estados brasileiros não será superada com o alívio temporário de suas dívidas com a União e com a retomada do crescimento econômico, prevista para acontecer, ainda que timidamente, a partir de 2017. Apenas reformas estruturais nos três níveis da federação poderão reverter a trajetória explosiva das finanças públicas, inclusive as estaduais.

“A crise dos Estados parece ter unido os governadores em torno da necessidade de reformas, o que é muito positivo, mas os governadores, assim como os novos prefeitos, não podem delegar o custo político das mudanças a outra instância (o governo federal). Precisamos nos unir para uma discussão franca com a sociedade em torno desta agenda”, afirmou Ana Paula Vitali Janes Vescovi, secretária do Tesouro Nacional, no seminário “Os Estados e o Ajuste Fiscal: ponte para o futuro ou volta ao passado inflacionário?”, na Fundação FHC.

Rumo ao abismo

“A correnteza está toda indo para o abismo e, se não fizermos algo estrutural, todos os Estados mais cedo ou mais tarde chegarão à situação de Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Norte, que são os Estados em situação mais crítica”, alertou Ana Carla Abrão Costa, secretária de Fazenda de Goiás.

Segundo Ana Carla, entre 2009 e 2013, a economia brasileira continuava a crescer e a arrecadação a subir. Além disso, a União incentivou os Estados a tomarem novos empréstimos, concedendo garantias do Tesouro, mesmo para os governos estaduais em situação fiscal não satisfatória. Isso, junto com os recursos extraordinários de royalties do petróleo para alguns Estados, deu aos governadores a ilusão de que poderiam seguir aumentando o gasto porque nunca faltaria dinheiro para cobri-los. “Político é muito otimista”, disse.

Mas, com a recessão iniciada em meados de 2014, que derrubou a arrecadação, e o corte do acesso a novos empréstimos com garantias do governo federal, determinada pelo ministro da Fazenda Joaquim Levy em 2015 (como parte do processo de ajuste fiscal), a fonte secou. “De uma hora para outra, as receitas caíram, mas as despesas, que são rígidas, continuaram a aumentar. A partir de 2014, os Estados deixaram de ter superávits primários e passaram a ter déficits. Foi o que aconteceu nas 27 unidades da federação”, explicou Ana Carla.

A principal causa do desequilíbrio foi o aumento dos gastos com pessoal. Ana Carla disse que o caso de Goiás é representativo. De tudo o que entra no caixa ao longo do mês, fruto da arrecadação de 6,6 milhões de contribuintes, 76% são utilizados para pagar o salário de 130 mil funcionários públicos e as aposentadorias e pensões de 30 mil inativos. “O gasto com pessoal é de uma rigidez absurda porque os servidores são estáveis e não podem ser demitidos”, disse.

Nas estatísticas oficiais, Goiás cumpre o teto de despesas com pessoal estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, 60% da receita. Como explicar a diferença? É que parte dos gastos relacionados com o funcionalismo (auxílio moradia, tíquete refeição, despesas com terceirizados) não é classificada na rubrica de pessoal. Isso acontece principalmente nos Poderes Judiciário e Legislativo.  Para Renato Villela, ex-secretário da Fazenda de São Paulo (2015-2016) e ex-secretário-adjunto do Tesouro Nacional (1999-2002), “subestimamos a criatividade do gestor público quando fizemos a LRF”.
Entre 2011 e 2015, o crescimento do gasto nominal do funcionalismo em Goiás foi de 70%, enquanto a inflação acumulada foi de 34,5%. Ou seja, houve 26% de crescimento real de salários. “Por que o governador deu 70% de aumento para os servidores públicos? Não é fácil lidar com greves da polícia, dos médicos, dos professores. A lei de greve é muito leniente e a estabilidade do funcionalismo é uma blindagem contra quase tudo”, afirmou a secretária.

Sucateamento da infra-estrutura

Para dar uma ideia das dificuldades que enfrenta, Ana Carla detalhou os números do orçamento previsto para 2017, quando Goiás poderá gastar R$ 20,117 bilhões, 7,30% (inflação prevista de 2016) a mais do que neste ano (R$ 18,748 bilhões). Ou seja, no ano que vem terá R$ 1,369 bilhão a mais. Entretanto, R$ 1,18 bilhão vai direto para o funcionalismo, sobrando apenas R$ 188 milhões. Outros R$ 177 milhões são obrigatoriamente destinados à educação e à saúde, em função das vinculações constitucionais. Sobram apenas R$ 11 milhões a mais do que neste ano para todos os gastos de custeio, como a manutenção de estradas, compra de equipamentos para a polícia etc.

“Nos últimos dois anos, Goiás fez um dos maiores ajustes proporcionais do país, basicamente cortando investimentos. Dá para fazer isso por um ou dois anos, mas não por três anos seguidos porque o resultado é o sucateamento da infra-estrutura, o que é grave em um Estado que precisa escoar sua produção agropecuária por estradas”, explicou Ana Carla.

“O rei está nu”

Para Renato Villela, a atual crise fiscal dos Estados, que começou há cerca de dois anos e se aprofundou em 2015, aconteceu de forma muito mais rápida do que a ocorrida nos anos 90, gestada por mais de uma década. “Graças a um conjunto de medidas tomadas no final dos anos 90 e início dos 2000, o grau de liberdade que os gestores públicos têm para inventar soluções heterodoxas foi reduzido significativamente. A recessão econômica brasileira, que teve início em 2014 e já dura mais de dois anos, e a consequente queda das receitas tributárias, somadas ao aumento das despesas, principalmente com pessoal, dos últimos anos, desnudou o rei muito rapidamente”, disse Villela. Segundo reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 20 dos 26 Estados brasileiros (além do Distrito Federal) já atrasaram pagamentos de servidores desde 2015.

Entre 1997 e 1999, 25 Estados e 180 municípios renegociaram suas dívidas com a União. Em troca, bancos estaduais, que serviam como fontes cativas de financiamento dos desequilíbrios fiscais dos governos dos Estados, e empresas estatais, em sua maioria deficitárias, tiveram de ser privatizados ou fechados. Em 2000, foi promulgada a Lei de Responsabilidade Fiscal, que definiu regras para a gestão das contas públicas, incluindo limites de gasto e endividamento. Recentemente, os Estados passaram a pressionar o governo federal a realizar um novo refinanciamento de suas dívidas, já aprovado pela Câmara dos Deputados e em processo de análise pelo Senado Federal.

“A LRF teve papel importantíssimo lá atrás e também agora, mas precisa ser aperfeiçoada, principalmente para definir melhor o que é gasto com pessoal e como calculá-lo corretamente”, disse Villela. Durante o seminário, foram exibidos gráficos sobre a situação fiscal dos Estados brasileiros, incluindo a evolução de gastos com pessoal, novos empréstimos autorizados pelo governo federal nos últimos anos e outras informações.

Endividamento

Segundo Ana Paula Vescovi, que assumiu a Secretaria do Tesouro no início de junho (depois do afastamento de Dilma Rousseff pelo Senado durante o processo de impeachment), os Estados se beneficiaram nos últimos anos de uma série de operações excepcionais criadas pelo governo federal para limitar os efeitos negativos da crise global iniciada em 2008.

“Em 2007, antes da crise global de 2008, já houve um primeiro ensaio de reedição das concessões de garantias da União para empréstimos de Estados e municípios. O gostinho foi bem sentido e teve início um novo ciclo de endividamento dos Estados. Apenas em 2013, a União concedeu R$ 60 bilhões em garantia para Estados e municípios, sendo que R$ 27 bilhões para Estados que naquela época já apresentavam problemas”, disse a secretária do Tesouro.

Além disso, ainda houve os recursos extras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), da Copa do Mundo (em 2014) e da Olimpíada (em 2016). “Por que isso assusta? Até 2014, o volume de operações concedidas a Estados que não poderiam pegar operações de crédito foi muito maior do que o volume concedido a aqueles que poderiam”, afirmou.

“Por isso hoje, quando alguns governadores argumentam que, por terem recebido menos recursos, teriam direito a um auxílio maior, minha resposta é: ‘Sim, mas não vou empurrá-los para o mesmo lugar onde estão os mais endividados. Pode confiar que vou protegê-los do abismo”, disse.

Passo a passo

“O programa de consolidação fiscal é importantíssimo, mas temos de ir passo a passo. Não vamos colocar tudo na mesa de uma vez só”.

De acordo com a secretária do Tesouro, o primeiro passo foi o governo federal ter reconhecido o tamanho do déficit fiscal em 2016, calculado em R$ 170,5 bilhões. “Alguns disseram que era uma meta folgada, outros que era apertada. O importante é que nós vamos cumpri-la”, garantiu.

Veja 15 pontos desta agenda:

1) Aprovação da PEC do teto dos gastos públicos Na semana de 10 de outubro, a Câmara dos Deputados deve votar a Proposta de Emenda Constitucional que limita o aumento dos gastos públicos pelos próximos 20 anos. Se aprovada, o governo federal só poderá gastar a cada novo ano o mesmo valor que no ano anterior corrigido pela inflação. Sua aprovação por três quintos (⅗) dos deputados e senadores é considerada um passo essencial para que o governo Temer dê novo rumo à economia e tenha chance de ser bem sucedido.

2) Limites também para as despesas dos Estados Assim como a União, Estados também deverão obedecer a um teto de gastos e esta medida faz parte do acordo de renegociação de suas dívidas, em fase de aprovação no Senado Federal.

3) Reforma da Previdência Em processo de discussão dentro do governo, com centrais sindicais e parlamentares, o objetivo é reduzir progressivamente o crescente déficit do sistema de aposentadorias em função de regras diferentes para os setores público e privado, privilégios e da inexistência de uma idade mínima de aposentadoria diante do rápido envelhecimento da população brasileira. O déficit atual da Previdência, no INSS, é de quase R$ 180 bilhões. O governo pretende levar a reforma para votação no Congresso em 2017.

4) Revisão de programas sociais e benefícios para combater fraudes e desvios – Segundo Ana Paula, já está em andamento uma revisão de programas como Bolsa Família, seguro-defeso e auxílio-doença, entre outros. “A meta é economizar entre R$ 5 bilhões e R$ 10 bilhões no próximo ano. Não é muito, mas é uma questão de mérito”, disse a secretária.

5) Nova lei de finanças públicas – Proposta originalmente pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), o PLS 229, deve substituir a Lei Geral de Orçamentos ou Lei de Finanças Públicas em vigor desde os anos 60 e enquadrar a elaboração do Orçamento da União na Lei de Responsabilidade Fiscal.

6) Fortalecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal – Um dos objetivos é aprimorar o cálculo das despesas com pessoal, que impactam de forma permanente os gastos nos três níveis de governo. Também deve definir como utilizar as receitas de royalties do petróleo, que são finitas e não devem ser usadas para gastos correntes.

7) Criação do Conselho de Gestão Fiscal – Já aprovado pelo Senado, o projeto regulamenta o funcionamento do órgão que auxiliará na análise e fiscalização do equilíbrio fiscal do país. Cabe ao Poder Executivo definir a composição do conselho, que deverá contar com membros de todas as unidades da Federação.

8) Modernização do sistema de garantias de empréstimos concedidas pela União – De acordo com os participantes do seminário, um dos motivos da atual crise dos Estados foi o aumento do endividamento dos governos estaduais, com garantias de concedidas pela União, nos últimos anos. A partir de 2015, com a posse do ministro da Fazenda Joaquim Levy (que deixou o cargo em dezembro do mesmo ano), as garantias foram suspensas, fechando a torneira do endividamento dos Estados.

9) Agenda de aumento de produtividade – O objetivo desse conjunto de medidas é aumentar a produtividade no país e, consequentemente, a competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Inclui reforma tributária, maior segurança jurídica, redução da burocracia, melhoria do ambiente de negócios, novos marcos regulatórios (incluindo o do setor de petróleo e gás), fortalecimento das agências reguladoras etc.

10) Fortalecimento da governança nas estatais e nos fundos de pensão – Também já em andamento.

11) Privatizações e desmobilização de ativos.

12) Programa de parcerias público privadas e investimentos do setor privado – Segundo Ana Paula, o Estado precisa “reaprender a fazer parcerias, principalmente na área de infra-estrutura, e construir um novo marco para que o setor privado volte a investir”.

13) Modernização da legislação trabalhista – A atual CLT vem dos anos 40 e não prevê as novas formas de trabalho do século 21.

14) Maior integração ao comércio internacional – Nos últimos anos, o Brasil se isolou do resto do mundo, não é membro de nenhum dos principais tratados de comércio negociados recentemente e não faz parte das cadeias globais de valor. O Mercosul também está em crise e precisa ser repensado.

15) Piso do magistério – A ideia é estabelecer uma remuneração para os professores atrelada a uma melhoria dos resultados do ensino público.

16) Revisão da lei que regulamenta a greve dos servidores públicos – O objetivo, segundo Ana Paula, é “reequilibrar a balança na queda-de-braço entre as corporações de funcionários públicos e o governo”.

“É muito importante convencer a sociedade.” (FHC)

Ao término da exposição dos três economistas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso elogiou a agenda de reformas estruturais do governo Temer, mas destacou a importância de comunicá-la melhor para obter apoio da sociedade e do Congresso. “Como vimos hoje, tecnicamente já se sabe o que fazer, mas falta o elo político. É preciso convencer a sociedade, que está perdida e ainda não sabe que esta agenda existe”, disse.

Para FHC, há tempo de o presidente Michel Temer mudar a percepção das pessoas, mas, se o governo não souber se comunicar, outra narrativa poderá se impor. “Sempre existe a possibilidade de retrocessos, como vimos recentemente. E com aplauso da população porque, quando o governo gasta mais do que pode, num primeiro momento as pessoas sentem um benefício. A conta acaba chegando, mas elas se esquecem do que houve anteriormente”, alertou.

De acordo com o presidente, uma agenda clara por parte do governo também é muito importante para que o Congresso dê sua contribuição. “Nada funciona sem o Congresso, que é do jeito que é. O parlamento só funciona se existe a ignição de uma agenda apoiada pela sociedade. Aí ele acaba votando pelo menos parte das medidas, mas já é alguma coisa”, disse.

Fernando Henrique também salientou a importância das medidas de austeridade, mas desde que tenham um sentido igualitário. “É difícil pedir austeridade, tem que ser em nome de mais igualdade (social). A reforma da Previdência é absolutamente necessária, mas é muito difícil de fazer, mesmo que no final resulte em um sistema mais justo”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.