Os desafios de financiamento à saúde pública no Brasil
Recebemos André Médici, economista e especialista em saúde do Banco Mundial, e José Roberto Afonso, também economista, um dos grandes conhecedores das finanças públicas no Brasil.
Para um debate sobre o financiamento à saúde pública no Brasil, a Fundação FHC recebeu, no dia 28 de agosto, os palestrantes André Médici, economista e especialista em saúde do Banco Mundial, e José Roberto Afonso, também economista, um dos grandes conhecedores das finanças públicas no Brasil, consultor do Senado e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.
Primeiro de uma série de dois seminários – o segundo será sobre os desafios da gestão na saúde pública, no dia 16 de setembro – o evento contou com a mediação de Januário Montone, secretário municipal de saúde da prefeitura de São Paulo, entre 2007 e 2012.
Com base em dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), Médici mostrou que os gastos totais (públicos e privados) com saúde no Brasil vêm crescendo e já atingem patamar comparável ao de muitos países desenvolvidos (9% do PIB em 2010, contra 7,2% do PIB em 2000), a exemplo de Itália e Espanha. A porcentagem do gasto do governo em saúde em relação aos gastos totais do governo também apresentou um aumento. Subiu de 6,3%, em 2000, para 8%, em 2010. Já quando a comparação se faz com base no gasto privado em saúde, o quadro é bem outro. Em 2010, de todo o gasto com saúde no país, 53% foram gastos privados, número ainda alto que situa o Brasil entre os países em desenvolvimento, na incômoda companhia de Venezuela e Equador. A insuficiência do gasto público se agrava pela pressão de custos, decorrente, entre outras razões, de decisões judiciais que obrigam o SUS a pagar a importação de medicamentos de última geração requeridos por pacientes brasileiros com base na disposição constitucional que assegura a cobertura integral à saúde a todos os cidadãos brasileiros.
Ao gasto insuficiente, soma-se o problema da má qualidade do gasto. Usando como referência o índice Bloomberg de eficiência em Saúde, que mede resultados com base em critérios como expectativa de vida ao nascer, entre outros, Médici apontou para o fato de o Brasil se encontrar na última colocação em uma lista de 48 países no que se refere aos gastos com saúde em geral.
Para explicar o mau desempenho do sistema de saúde pública, o economista assinalou alguns fatores, a começar pelas deficiências de articulação entre os governos federal, estaduais e municipais na gestão do Sistema Único de Saúde: a União não atua como deveria para reduzir desequilíbrios na oferta de serviços entre as diferentes regiões, os Estados perderam capacidade de investimento e coordenação de serviços espalhados pelos municípios e estes muitas vezes não têm recursos para oferecer os serviços demandados pela população. Igualmente falha seria a articulação entre o SUS e os serviços privados de saúde, responsáveis por dois terços dos leitos hospitalares utilizados pelo SUS. Médici destacou também a falta de organização e hierarquização do SUS. O sistema deveria ser capaz de encaminhar o paciente do atendimento de menor complexidade ao de maior complexidade, independentemente de o prestador do serviço ser o pronto socorro município, o hospital estadual ou federal (isso evitaria as longas esperas, em certos casos fatais). À lista de causas para o mau desempenho do sistema de saúde, o economista agregou ainda, entre outras, a insuficiente cobertura dos programas e ações de prevenção (a expansão do programa Saúde da Família, acelerada na segunda metade da década de 90, perdeu velocidade nos últimos anos; hoje o programa está presente em pouco mais da metade dos municípios brasileiros). A prevenção insuficiente sobrecarrega o SUS com casos de doenças evitáveis ou que poderiam ser resolvidas sem necessidade de o paciente recorrer a unidades de pronto- socorro e hospitais.
Além desses fatores institucionais e organizacionais, Médici destacou problemas de gestão, que poderiam ser resolvidos com maior e melhor uso de tecnologia, a exemplo da criação de um banco de dados único com o histórico médico dos pacientes do SUS, e a difusão de uma cultura de monitoramento e avaliação.
Em suma, se faltam recursos, faltam também mudanças nas formas de organização e gestão do sistema. Sem elas, o eventual aporte de mais dinheiro não produzirá os resultados esperados. Resta ainda, sugeriu Médici, uma discussão mais profunda para definir parâmetros científicos, financeiros e sociais reguladores da disposição constitucional que assegura cobertura integral à saúde. As decisões judiciais individualizadas sobre importação de medicamentos de última geração não apenas geram uma conta crescente e imprevisível sobre o Estado (estará a sociedade disposta a pagá-la indefinida e indeterminadamente?), mas também acentuam desigualdades sociais no acesso aos serviços de saúde.
Especialista em tributação, José Roberto Afonso tomou a conclusão de Médici como ponto de partida de sua apresentação, Declarou-se favorável ao aumento do gasto público em saúde, valendo-se de uma tabela que aponta o aumento do uso do SUS à medida que se reduz a renda da família. Em outras palavras, quando o governo gasta mais com a saúde pública, são os mais pobres que mais se beneficiam. No entanto, ressalvou Afonso, são também os mais pobres que, em termos proporcionais, mais pagam impostos no Brasil, pois o sistema tributário no Brasil é regressivo. Ao aumentar a tributação para financiar um gasto maior com saúde em benefício dos mais pobres, o governo estaria dando com uma mão e tirando com a outra. Era o que ocorria com a CPMF, argumentou Afonso: é verdade que o grosso da arrecadação desse tributo provinha das transações financeiras feitas por empresas, mas ao final o seu custo recaia sobre o consumidor, já que as empresas o repassavam ao preço dos produtos. Para complicar, o Brasil já tem uma carga tributária de 37% do PIB, um excesso para um país com o nosso grau de desenvolvimento. Seria o caso de aumentá-la ainda mais para financiar a saúde?
Com esse raciocínio, Afonso recolocou a questão no terreno mais amplo da reforma tributária e da redefinição das prioridades do gasto público. Comentando o debate público sobre a primeira, criticou a ausência de uma preocupação distributiva com a reforma tributária (não se trata apenas de simplificar a vida das empresas, mas também de desonerar os mais pobres). Já sobre a redefinição das prioridades dos gastos públicos, chamou a atenção para o aumento indiscriminado de gastos do governo federal com subsídios – por exemplo, para apoiar empresas que não precisariam do BNDES para financiar-se – e com o pagamento de benefícios a indivíduos. Ressalvou de suas críticas o Bolsa Família, mirando em programas de transferência que não beneficiam os mais pobres e cujas despesas têm subido muito, às vezes sem motivo aparente, como no caso do seguro-desemprego. No lado do gasto, insistiu Afonso, também chegou a hora de enfrentar a discussão distributiva, por não ser mais possível adicionar mais despesas públicas às já existentes, a menos que o país aceite carregar uma carga tributária ainda maior. É preciso cancelar gastos em áreas, programas e ações de menor retorno para a sociedade para aumentar o gasto público em saúde, arrematou Afonso.
A quem caberia a maior responsabilidade por aumentar gastos nesse momento? Afonso lembrou a respeito que a contribuição dos municípios para o gasto em saúde vem aumentando desde a promulgação da Emenda Constitucional n° 29, em 2000, a qual fixou um percentual mínimo de gastos no setor para Estados (12% da receita líquida) e municípios (15% da mesma). Já a União, obrigada a incrementar suas despesas com saúde de acordo com a variação nominal do PIB a cada ano, tem reduzido a sua contribuição ao setor, à causa do baixo crescimento do PIB nos últimos quatro anos e do acúmulo de gastos não realizados. Mencionados por Afonso, cálculos do Tribunal de Contas mostram que, entre 2008 e 2012, a União deixou de gastar R$ 20 bilhões com a saúde.
O recuo do governo federal no financiamento à saúde faz com que não se corrijam as desigualdades nos serviços prestados aos cidadãos brasileiros nos Estados e municípios mais pobres e naqueles mais ricos. Além disso, como advertiu, o ex-ministro da pasta Barjas Negri, no debate que se seguiu às apresentações, as despesas dos municípios na área da saúde estão chegando ao limite do que os governos locais podem financiar. Em muitos deles, a despesa no setor já excede em muito os 15% da receita líquida. Esse quadro, concluiu Barjas, pode levar à interrupção dos serviços em certos municípios e colocar em xeque a própria descentralização da saúde pública observada nos últimos vinte anos. Seria um retrocesso.