Os desafios à gestão da saúde no Brasil
Participaram Gonzalo Vecina Neto, primeiro diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), e Paulo Modesto, professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia, especialista em parcerias público-privadas na área da saúde.
No dia 16 de setembro, a Fundação FHC recebeu especialistas para o segundo encontro dedicado ao debate sobre a saúde pública no Brasil. O primeiro teve como título “Os desafios de financiamento à saúde pública no Brasil”. Já o segundo abordou os desafios à gestão da saúde pública no país. Deste último, participaram Gonzalo Vecina Neto, primeiro diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no governo Fernando Henrique, Secretário Municipal de Saúde, na gestão de Marta Suplicy, e atual superintendente do Hospital Sírio-Libanês; e Paulo Modesto, professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia, especialista em parcerias público-privadas na área da saúde. Mais uma vez, o mediador foi Januario Montone, secretário municipal de saúde da prefeitura de São Paulo, nas gestões de José Serra e Gilberto Kassab.
Montone abriu o seminário apresentando um breve quadro histórico da saúde pública no Brasil, dividindo-o entre o período anterior e posterior à criação do Sistema Único de Saúde, pela Constituição de 1988. Antes o acesso integral à saúde pública encontrava-se limitado à população com carteira de trabalho. Depois do SUS, o acesso tornou-se universal, um dever do Estado e um direito de todo e qualquer cidadão. O universo da saúde pública se expandiu e os desafios de gestão, assim como os de financiamento, aumentaram. Ao mesmo tempo, advertiu Montone, diminuiu o leque de instrumentos à disposição do gestor público na área da saúde, com o fim de fundações e autarquias que, no passado, davam maior flexibilidade no emprego de recursos humanos e financeiros. Dentro das regras rígidas da administração pública, ele acredita ser difícil aumentar e melhorar a oferta de saúde no Brasil. Daí a importância das parcerias com o setor privado, em especial sob a forma das organizações sociais, que recebem recursos públicos, mas operam de acordo com regras mais flexíveis.
Essas parcerias têm motivado grande controvérsia jurídica e político-ideológica. Segundo o especialista em direito administrativo Paulo Modesto os embates resultam de uma visão anacrônica sobre a relação entre o Estado, a sociedade e os indivíduos. Bebendo na tradição francesa, explicou, o direito administrativo brasileiro no século 20 desenvolveu-se sob uma dupla premissa: de um lado, o Estado deveria ser dotado de autoridade para impor-se legalmente à sociedade e aos indivíduos; de outro, para evitar o abuso da autoridade pelo agente estatal, a burocracia pública deveria estar submetida a regras formais que restringissem meticulosamente sua liberdade de ação. Mantida a tradição, à medida que o Estado se tornou um prestador de serviços, o direito administrativo revelou-se uma camisa de forças para o gestor estatal interessado em imprimir maior eficiência e eficácia no atendimento ao cidadão. Montone ilustrou o raciocínio de Modesto dando o exemplo do tempo consumido em um hospital público para a reposição de um aparelho, pela necessidade de realização de uma licitação para compra de um novo.
Como manter o caráter público da saúde e simultaneamente libertá-lo da camisa de força da tradição do direito administrativo brasileiro? Segundo Modesto, a própria Constituição de 1988 aponta o caminho a ser percorrido ao não limitar o conceito de serviço público ao de serviço prestado diretamente pelo Estado. É este o caminho que tem sido percorrido por vários governos estaduais, de diferentes partidos, mediante diferentes formas de parceria entre o Estado e o setor privado, entre elas a adoção de um contrato de PPP para construção e gestão de um hospital pertencente ao governo da Bahia, na administração de Jaques Wagner.
Com a experiência de quem já ocupou diferentes cargos na administração pública e hoje dirige um dos melhores hospitais privados do país, Gonzalo Vecina Neto ancorou o debate na nova realidade epidemiológica da população brasileira: “Não conseguimos perceber as transformações pelas quais a sociedade passou. Se antes doenças como a tuberculose e a diarreia eram letais, hoje as pessoas morrem de hipertensão, câncer e violência, 70% da mortalidade brasileira está concentrada nessas três causas. O modelo da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 1 médico por mil habitantes era eficiente para o atendimento de doenças como a tuberculose, não é suficiente para atender pacientes hipertensos que requerem 1 médico para cada 300 habitantes”. Doenças cardiovasculares e cânceres são enfermidades crônicas, com tratamentos longos, que levam os pacientes regularmente ao hospital, frisou Vecina Neto. Ele apontou também a queda na natalidade como outra mudança com efeitos importantes para o sistema de saúde. A oferta do sistema de saúde precisa adequar-se a um novo tipo de demanda pelos seus serviços: “É preciso fechar hospitais com menos de 50 leitos, aumentar o número de leitos com apoio de UTI, reduzir o número de maternidades, ampliar o número de médicos por habitante, etc”. Não se fará a transformação necessária sem a parceria do Estado com o setor privado. Dizem que isso é privatização, mas não é: o serviço será público, o Estado fiscaliza, regula, mas o setor privado pode fazer a entrega, porque em geral a faz melhor, concluiu.
Nenhum dos presentes advogou as parcerias como a panaceia para todos os males da gestão da saúde pública. E, mais de uma vez, bateram na tecla de que o Estado precisa aparelhar-se muito melhor para exercer as suas funções de regulador e fiscalizador dos serviços públicos de saúde.