O que podemos esperar do acordo de paz com as FARC?
“Fechar um acordo com as FARC não significa o fim dos problemas da Colômbia. Paz é convivência, é construção de confiança”, disse o general colombiano Óscar Naranjo.
“É preciso construir a paz, fazer a paz e manter a paz” – General Óscar Naranjo
Após cinco tentativas, quatro delas fracassadas, a Colômbia está em via de assinar um acordo de paz com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que, se bem sucedido, colocará fim ao último e mais longo conflito armado da América Latina, com 52 anos de duração. Mas o caminho é longo e cheio de percalços. “Fechar um acordo com as FARC não significa o fim dos problemas da Colômbia. Paz é convivência, é construção de confiança”, disse o general colombiano Óscar Naranjo, da Comissão de Negociações com o grupo guerrilheiro, em palestra na Fundação FHC.
Desde 2012 o Estado colombiano, sob a liderança do presidente Juan Manuel Santos (eleito em 2010 e reeleito em 2014), optou pelo caminho da negociação em vez do enfrentamento puro e simples. “O presidente Santos decidiu bancar a construção da paz porque chegou à conclusão de que guerra é instrumento, não fim”, explicou o general.
Santos foi ministro da Defesa durante o Governo Álvaro Uribe (2002-2010), período em que o Exército colombiano, com apoio dos Estados Unidos (Plano Colômbia), empreendeu uma guerra total contra os grupos armados, principalmente as FARC, e os cartéis da droga. Eleito presidente com apoio de Uribe, deu uma guinada na política oficial e, com a mediação de Cuba e da Noruega, iniciou a nova fase de negociações com os guerrilheiros, tendo sido muito criticado pelo antecessor.
Evolução
A guinada de Santos não significou, no entanto, uma rejeição da política anterior de enfrentamento ou da aliança militar entre a Colômbia e os EUA, ambas descritas como necessárias naquela fase do conflito contra o narcoterrorismo. “O presidente Uribe teve sucesso em levar as forças de segurança a regiões do território colombiano onde só se escutava a voz dos crimes e da guerrilha”, afirmou Naranjo, para quem a decisão de negociar representa uma evolução.
O atual processo de paz também só se tornou possível com base no aprendizado das tentativas fracassadas anteriores, a última delas realizada pelo presidente Andrés Pastrana (1998-2002). Na época, Pastrana cedeu uma grande área do território colombiano às FARC em troca do compromisso de iniciar as negociações de paz. Mas a guerrilha não cumpriu o combinado e aproveitou o período de trégua para se fortalecer militarmente.
Por esse motivo, o atual processo de paz não teve cessar-fogo nem cessão de um milímetro sequer de território aos guerrilheiros. A paz vem sendo negociada em reuniões secretas em Havana ao mesmo tempo em que militares e guerrilheiros lutam nas selvas da Colômbia, embora a intensidade do enfrentamento tenha se reduzido. “O processo de paz só está tendo êxito a partir da revisão do que deu errado nas tentativas anteriores”, explicou Naranjo.
Ciente de que as negociações estão quase concluídas, mas ainda são um processo delicado, o general rebateu a ideia de que as FARC finalmente resolveram negociar por estarem enfraquecidas após a guerra total dos anos Uribe. “Não recorro ao argumento simplista de que só conseguimos sentar à mesa porque derrotamos as FARC. Esta não é uma negociação de capitulação”, afirmou.
De acordo com Naranjo, as atuais negociações têm como base o fortalecimento do Exército e da polícia nos últimos anos, mas também da Justiça e da democracia. “Vivíamos um dilema: queríamos ser um Narco-Estado ou uma democracia? Os colombianos tiveram de escolher. Por isso, este é um processo histórico para a Colômbia, a América Latina e o mundo”, afirmou.
Eixos temáticos
O processo de paz foi construído em torno dos seguintes eixos temáticos:
Reforma rural integral
Uma das principais bandeiras das FARC desde os anos 1960, a reforma do campo, onde vivem cerca de 14 milhões de colombianos (7 milhões em áreas de conflito), é uma questão central no acordo. Segundo Naranjo, o objetivo é combinar a necessidade de uma economia rural camponesa com a realidade da agropecuária do Século 21, em que a competitividade, a tecnologia e a produção em escala para os mercados doméstico e internacional são essenciais. Além disso, a reforma prevê maior presença do Estado nas áreas rurais, com a oferta de bens e serviços, segurança e justiça. A propriedade privada será respeitada e cerca de 500 mil pessoas devem receber reparações por terras perdidas durante as décadas de conflito armado. “A população rural, em especial os mais jovens, necessitam que o Estado atue de forma mais criativa, próxima e eficaz”, disse o general.
Participação política dos ex-guerrilheiros
Depois de assinado, o acordo prevê que as FARC entreguem suas armas e as substituam por ideias e votos, integrando-se ao processo político democrático. “Não pode haver paz armada”, disse Naranjo. Para monitorar a entrega das armas, o governo colombiano já solicitou a colaboração da ONU, o organismo internacional com mais experiência em processos do gênero.
Solução para o problema do narcotráfico
Condição ‘sine qua non’ foi o reconhecimento por parte das FARC de que o grupo se aliou aos cartéis de droga para financiar a luta armada, e o compromisso de romper esta aliança de forma inequívoca. Também deve haver compensações às famílias que produzem folhas de coca e terão de buscar novas formas de sobrevivência. “Foi muito difícil sentar em uma mesa com representantes de uma organização que se beneficiou do narcotráfico, mas seria um erro omitir essa questão”, afirmou.
Uma Justiça para a paz
O acordo prevê a criação de uma justiça transitória em dois níveis. Crimes de lesa-humanidade, como tortura, execuções, sequestros e desaparecimento de pessoas, serão punidos de acordo com as convenções internacionais, das quais a Colômbia é signatária. Por outro lado, poderá haver anistia para casos menos graves. A ideia é fazer uma justiça não apenas punitiva ou vingativa, mas reparadora. “Não pode haver acordo que desconheça o direito das vítimas. Ele deve ser baseado no estabelecimento da verdade, em reparações justas e na garantia de que a violência não se repetirá”, afirmou Naranjo.
Por fim, o acordo de paz terá de ser aprovado por meio de um referendo. “Quando houver mais certezas que incertezas e o debate estiver mais baseado na razão do que na emoção, os colombianos poderão dizer sim ou não. O referendo sobre a paz será a grande oportunidade para aprofundarmos a democracia na Colômbia”, disse o general.
Riscos
Apesar de otimista, o general Naranjo não minimizou os riscos ao processo em curso, entre eles a possibilidade de outros grupos armados menos importantes, como o ELN (Exército de Libertação Nacional), tentarem sabotá-lo. A melhor forma de evitar retrocessos é investir na construção de confiança. “Uma imagem muito forte que vimos recentemente foi a de militares trabalhando ao lado de guerrilheiros para retirar minas terrestres”, ressaltou. Depois do Afeganistão, a Colômbia é o segundo país do mundo em quantidade de minas terrestres espalhadas por seu território.
O acordo com as FARC deverá ser monitorado pela CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos). “Também é essencial o apoio dos países vizinhos, em especial o Brasil”, disse o general.
“A América Latina precisa mostrar que é capaz de resolver seus problemas entre nós, sem a interferência de outros”, afirmou o ex-presidente chileno Ricardo Lagos, presente ao evento. Segundo ele, se o acordo for bem-sucedido, o continente sul-americano será “uma zona de paz em um mundo cada vez mais convulsionado”.
Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também presente, o desmantelamento do aparato do narcotráfico ligado à guerrilha é um grande avanço, mas também representa uma ameaça aos países amazônicos que fazem fronteira com a Colômbia. “Essa gente vai buscar outros caminhos, devemos fazer o que for necessário para impedir que os narcotraficantes colombianos venham para o Brasil e outros vizinhos”, afirmou.
Oportunidade para rever guerra às drogas
Após a palestra do general Óscar Naranjo, o jovem senador colombiano Luiz Carlos Galán defendeu a reforma das convenções da ONU sobre entorpecentes e a regulamentação das drogas. “A Colômbia pagou o mais alto preço pelas políticas proibicionistas em relação às drogas, com a morte de milhares de civis, policiais, militares, camponeses, juízes, políticos e jornalistas”, afirmou. Seu pai, Luiz Carlos Galán, foi assassinado a mando dos traficantes em 1989, quando era candidato a presidente.
“Antes ninguém questionava essa política, mas pouco a pouco cresce a percepção de que a guerra às drogas tem causado mais prejuízos do que benefícios. Está na hora de parar de criminalizar o produtor rural e o consumidor e focar em desmantelar as organizações criminosas do narcotráfico”, disse.
Segundo ele, existe um falso dilema quando se fala de forma simplista em substituir a proibição pela liberação. “Somos a favor da regulação de todas as drogas, da maconha à cocaína, da heroína às drogas sintéticas. Todas devem ser reguladas”, defendeu.
Galán defendeu o maior envolvimento dos Poderes Legislativos latino-americanos no debate e a criação de uma Rede Parlamentar sobre Política de Drogas, envolvendo também a sociedade civil, as universidades e a imprensa. O senador também defendeu que a Europa e a América Latina assumam a vanguarda desse debate, já que a Ásia e a África estão praticamente ausentes.
FHC, que nos últimos anos tem atuado no plano internacional em prol de revisão da política de drogas, elogiou a fala do senador.
Por uma América Latina menos violenta
Antes do final da palestra, o general Óscar Naranjo comentou a fala do presidente Lagos de que, com o acordo de paz na Colômbia, a América Latina se transformaria numa ilha de paz em um mundo dominado por conflitos. “É verdade que nosso continente pode ser uma zona de paz, mas segue sendo a região mais violenta do mundo. A paz também precisa se traduzir em redução da violência ligada à criminalidade comum”, afirmou.
Ele criticou o alto nível de encarceramento e as condições precárias dos presídios latino-americanos. “É preciso rever os sistemas prisionais de nossos países, que não estão servindo para nada. Quem estamos prendendo? E onde estão os que deveriam estar presos?”, questionou.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.