O enfrentamento da crise hídrica: um debate com Jerson Kelman, presidente da Sabesp
“Precisamos ter uma válvula de escape, mesmo que isso signifique trazer água de mais longe, o que custa caro”, disse Jerson Kelman, presidente da Sabesp.
As medidas de emergência colocadas em prática desde o início de 2014 reduziram em 58% a utilização de água do Sistema Cantareira em abril deste ano e devem ser suficientes para que a população da Região Metropolitana da Grande São Paulo “enfrente o deserto de 2015” sem a necessidade de rodízio, disse o presidente da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), engenheiro Jerson Kelman, em palestra na Fundação FHC em 28 de maio.
De acordo com Kelman, que assumiu o cargo em março deste ano e é professor de recursos hídricos da Coppe-URFJ, tudo deve ser feito para evitar o rodízio de água: “Não posso afirmar que ele não será implementado, mas é altamente indesejado”, disse. O motivo é que, com a despressurização das redes por um período longo, existe o risco de contaminação pela entrada de água do solo através de fissuras na tubulação. “Em 2014, houve muita pressão para que o Governo de São Paulo decretasse o rodízio, mas é algo que deve ser evitado”, insistiu.
Segundo gráfico mostrado durante a palestra, a produção de água no Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de pouco menos da metade dos 22 milhões de habitantes da Região Metropolitana da Grande São Paulo, era de 31,90 m³/s (metros cúbicos por segundo) em janeiro de 2014. Em abril de 2015, foi de 13,48 m³/s, uma economia de 18,3 m³/s. Cada 1 m³ (um metro cúbico) corresponde a 1.000 (mil) litros de água.
“Se não fosse esta economia de quase 20 m³/s, o nível do Sistema Cantareira estaria caindo sem parar, mesmo durante o período de chuvas deste ano”, afirmou. Segundo Jerson, em janeiro de 2015 o volume de chuvas foi inferior à média histórica do mês, mas em fevereiro e março as chuvas foram acima da média. Mesmo assim, o nível de água do Sistema Cantareira permaneceu “no vermelho”. No final de maio, o Sistema Cantareira contava com aproximadamente 193,7 milhões de m³ de água, o equivalente a 15,3% de sua capacidade total ou – 9,6%, se descontada a reserva técnica (também conhecida como volume morto) utilizada a partir de meados de 2014.
O que foi feito até agora
A estratégia de enfrentamento da crise hídrica no curto prazo, lembrou o presidente da Sabesp, foi composta de quatro ações: utilização da reserva técnica, diminuição da pressão nas tubulações, programa de bônus (e ônus) e transferência de água entre os sistemas de armazenamento da região metropolitana.
Segundo números apresentados, em abril houve 83% de adesão ao programa de incentivo à redução do consumo de água entre os usuários atendidos pelo Sistema Cantareira. Deste total, 65% dos usuários reduziram o consumo em pelo menos 20% (bônus de 30%), 5% diminuíram de 15% a 20% (bônus de 20%) e 5% consumiram de 10% a 15% a menos (bônus de 10%). Outros 8% dos usuários reduziram o consumo, mas não atingiram o bônus; 17% dos usuários consumiram acima da média, mas apenas 10% pagaram “multas” (os demais são beneficiários de tarifa social e isentos de pagamento de ônus). Em toda a região metropolitana, a adesão foi de 82%. “O programa de bônus deu resultado. É um sucesso”, afirmou Jerson Kelman.
Dos 18,3 m³/s de água retirados a menos do Sistema Cantareira em abril, 7,6 m³/s foram economizados graças à diminuição da pressão nas tubulações. De acordo com Jerson, esta medida prejudicou cerca de 1% da população atendida pela Sabesp, em geral habitantes de regiões mais elevadas ou localizadas no fim das linhas de distribuição. “A maior parte deste 1% é de baixa renda e, com frequência, não tem caixa d’água. Estamos resolvendo esse problema com a distribuição de reservatórios”, afirmou. O maior aproveitamento da água de outros sistemas da Grande São Paulo resultou em economia de 6,6 m³/s no Cantareira e a redução de consumo (bônus) contribuiu com 3,5 m³/s. Outras reduções somaram 0,6 m³/s.
Kelman rebateu críticas de que a rede da Sabesp teria um percentual muito elevado de perda de água. “Em dez anos, houve uma redução da perda total de 40,5% (2004) para 28,9% (2014), equivalente a 1% de diminuição ao ano, semelhante ao ritmo de países mais desenvolvidos. Esta redução não acontece de um dia para outro”, afirmou. Segundo ele, dos 28,9% de perda total de água na rede da Sabesp, 19% é resultado de furto ou fraude. O restante é causado por vazamentos na rede.
Jerson também rejeitou acusações de que a crise hídrica atual seria consequência da falta de investimentos por parte do Governo de São Paulo e da Sabesp nos últimos anos. De acordo com ele, o motivo da crise é o fato de a região estar enfrentando em 2014/2015 a maior seca em 84 anos de monitoramento. “É um evento raro, que só acontece em média a cada 250 anos”, disse.
Obras de curto prazo
“Ainda temos um deserto para atravessar em 2015”, alertou o novo presidente da Sabesp. “De onde podemos trazer água no curto prazo?” Além do aumento da produção de água no Sistema Guarapiranga, que já vem ajudando a fornecer água para áreas da cidade antes abastecidas apenas pelo Sistema Cantareira, o governo realiza obras para trazer água do Rio Grande (braço limpo da Represa Billings) para o Sistema Alto Tietê, que também abastece a região metropolitana. Inicialmente prevista para maio deste ano, esta interligação deve estar concluída em setembro, informou o jornal Folha de S.Paulo em 2 de junho.
Além disso, o governo pretende realizar a transposição entre as Represas Jaguari (na bacia do rio Paraíba do Sul) e Atibainha, que deve garantir mais 8.500 m³/s de vazão no Sistema Cantareira. A obra, cuja primeira fase estava prevista para ficar pronta em 2016, deve estar concluída no início de 2017.
O atraso, segundo informou a Folha, ocorreu devido a problemas burocráticos e financeiros, como o questionamento do edital de licitação pelo Tribunal de Contas do Estado e a demora na aprovação do empréstimo por parte do BNDES. Também houve uma disputa entre os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e, em menor grau, Minas Gerais pela água do Rio Paraíba do Sul, já parcialmente solucionada.
De acordo com nota da Sabesp, a interligação das Represas Jaguari e Atibainha, que também deverá reforçar a segurança hídrica da região de Campinas, será feita “no menor prazo possível”. A previsão é iniciar as obras em agosto deste ano, com prazo de execução de 18 meses (primeira fase).
E se o rodízio for necessário?
Apesar de sustentar que o rodízio “deve ser evitado a todo custo”, Jerson Kelman disse “não ter bola de cristal” para afirmar com 100% de certeza que ele não será necessário: “Estamos torcendo pelo melhor, mas nos preparando para o pior.”
Entre as medidas de contingência já em andamento está o prolongamento da rede da Sabesp em até 91 km para garantir o fornecimento prioritário de água a hospitais, prontos-socorros, grandes centros de hemodiálise, presídios, centros de detenção e unidades da Fundação Casa.
Ele não garantiu, entretanto, atendimento prioritário a escolas. “São milhares distribuídas pela cidade, não há como fazer isso. Se houver rodízio, as escolas terão de se adaptar”, afirmou o presidente da Sabesp.
Obras de médio e longo prazo
De acordo com Jerson Kelman, o governo de São Paulo e a Sabesp precisam pensar em projetos de médio e longo prazos para garantir o abastecimento da Região Metropolitana da Grande São Paulo no caso de a atual seca se prolongar ou se repetir no futuro. É preciso haver uma “torneira” disponível que possa ser aberta quando o abastecimento pelos reservatórios existentes estiver em risco. Em analogia com o setor elétrico, Kelman fez referência ao papel que desempenham as termelétricas, acionadas quando as hidrelétricas não conseguem gerar sozinhas quantidade suficiente para responder à demanda por energia. A energia produzida pelas termelétricas é mais cara e mais poluente, mas sem elas o racionamento seria inevitável em períodos de seca prolongada, como o que atinge hoje toda a região Sudeste.
“Precisamos ter uma válvula de escape, mesmo que isso signifique trazer água de mais longe, o que custa caro”, afirmou. Segundo ele, há estudos em andamento para trazer água do Vale do Ribeira e do Rio Paranapanema, ambos no Estado de São Paulo, mas distantes em até 300 km da capital.
Kelman também levantou a possibilidade de aproveitar a “água da vertente atlântica”, formada pelos rios que nascem na Serra do Mar e correm em direção ao litoral paulista. Seria possível redirecionar parte dessa água para a Grande São Paulo. “Fiquei muito interessado na água desses rios, que tem ótima qualidade, mas eles ficam no meio da Mata Atlântica e o licenciamento ambiental para as obras de captação seria muito complicado”, disse.
Neste momento da palestra, o presidente da Sabesp criticou a atitude obstrucionista do Ministério Público frente a obras que teriam impacto ambiental pequeno e resultariam em grande benefício da população da região metropolitana, na sua visão. Em seguida, ele defendeu uma maior integração entre as políticas de abastecimento de água e preservação ambiental, assim como de coleta e tratamento de lixo e produção de energia. “Todas essas questões estão interligadas e deveriam ser pensadas conjuntamente, como acontece em países como a Holanda”, sugeriu.
Kelman mencionou também a possibilidade de uso das águas hoje contaminadas dos rios Pinheiros e Tietê para consumo na região metropolitana. “A limpeza dos rios que atravessam a cidade é uma alternativa de mais longo prazo para melhorar a oferta de água em São Paulo”, lembrando os exemplos dos rios Sena, em Paris, e Potomac, em Washington, que eram poluídos há algumas décadas e foram recuperados.
O projeto de tratamento do rio Pinheiros e sua reversão para a represa Billings, na região do ABC, e de lá para os Sistemas Guarapiranga e Alto Tietê, com o objetivo de reduzir a dependência de quase metade dos habitantes da região metropolitana do Sistema Cantareira, é uma possibilidade que já foi levantada, mas acabou por ser colocada de lado porque os testes de flotação, técnica que consiste em aglutinar a sujeira do rio em grandes grãos para então removê-los, não deu os resultados esperados em termos da qualidade da água obtida. “Creio que não deveríamos, no primeiro tropeço, desistir da ideia de aproveitar o rio Pinheiros”, afirmou.
De acordo com Kelman, a atual crise hídrica tem sido um aprendizado mesmo para um engenheiro com ampla experiência na área como ele. “Para resolver este enorme desafio não apenas em 2015, mas também para os próximos anos, temos de pensar fora da caixa”, afirmou. Kelman foi diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), de 2001 a 2004 (Governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva), e diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), de 2005 a 2008 (Governo Lula). Em 2003, recebeu o King Hassan II Great World Water Prize por escolha do Conselho Mundial de Água.
Otávio Dias é jornalista especializado em assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.