Debates
01 de julho de 2015

Novos Rumos da Economia e da Política Externa Chinesas

“Na China, os ventos sopram a partir de políticas definidas pelo governo em Pequim. De tempos em tempos, a direção do vento muda. Perceber qual é essa direção é o principal desafio para quem opera na (ou com a) China”, falou o diplomata brasileiro Marcos Caramuru de Paiva.

Esta é a dica essencial que o diplomata brasileiro Marcos Caramuru de Paiva, um dos maiores especialistas do país em Ásia, tem a oferecer ao empresário brasileiro interessado em negócios da China. “Creio que agora o vento está soprando na direção de as empresas chinesas olharem os países estrangeiros como mercados em si e não apenas como locais onde produzir bens ‘Made for China’, ou seja, para serem reexportados para a própria China”, completou Paiva ao final de sua fala de abertura em palestra na Fundação FHC em 2 de junho.

Segundo Marcos Caramuru, que já foi embaixador na Malásia (2004-2008) e cônsul-geral em Xangai (2008-2011), a visita do premiê chinês, Li Keqiang, ao Brasil em maio último, durante a qual foram anunciados investimentos de mais de US$ 50 bilhões e assinados 35 acordos bilaterais, terá impacto na percepção do empresariado chinês em relação ao país. “No Brasil, as pessoas se perguntam se os negócios vão se materializar, mas, ao acenar com a possibilidade de investimentos, Li soprou um vento. Os homens de negócio chineses saberão ouvir e daí poderão surgir iniciativas concretas”, afirmou.

Para Paiva, até pouco tempo atrás a ideia central dos investimentos chineses no exterior era abastecer o imenso mercado chinês. Mas, com o desaquecimento da economia no gigante asiático, os chineses passaram a olhar os mercados externos com a ideia de conquistá-los.

“Isso é muito recente e abre uma nova porta para empresários de países como o Brasil, que tem grande mercado interno. Quem souber aproveitar esta oportunidade, entrando em um diálogo produtivo com os empresários chineses e fazendo as associações corretas, terá muito a ganhar tanto no mercado local quanto no externo, pois a possibilidade de exportar para a China e outros países asiáticos sempre existirá”, disse.

“É uma mudança de perspectiva. Enquanto os empréstimos para investimentos dentro da China estão cada vez mais limitados, os empréstimos de bancos chineses para investimentos no exterior estão cada vez mais liberados. Faz parte da nova estratégia chinesa.”

Os dois grandes objetivos econômicos chineses

De acordo com Marcos Caramuru de Paiva, a China, apesar de sua rápida ascensão como potência mundial (é hoje a segunda maior economia, atrás apenas da norte-americana), não possui atualmente um projeto político internacional, mas sim dois grandes objetivos econômicos. “Toda vez que se pergunta a uma autoridade chinesa se Pequim almeja desenhar uma nova ordem mundial, a resposta é não. E creio que, de fato, a China não tem nesta fase de sua história uma ideologia a vender”, afirmou.

Para o palestrante, que vive em Xangai desde 2008, onde é sócio e gestor da KEMU Consultoria de Negócios, o projeto econômico do regime chinês está centrado na internacionalização de sua moeda, o Renminbi (RMB), e na exportação de serviços de infraestrutura.

“A internacionalização da moeda chinesa é mais complicada. A China obterá acordos bilaterais cada vez mais expressivos que permitirão que, no comércio direto com outros países, o Renminbi se torne referência. Mas o sonho de transformar o RMB em uma moeda realmente internacional ainda está longe de acontecer”, disse Paiva.

“Já na área de infraestrutura, a China sabe que existe um grande déficit no mundo e tem uma capacidade extraordinária de suprir esta demanda, pois suas empresas têm experiência em realizar obras de infraestrutura numa proporção muito superior à de qualquer outro país na história recente.”

Como exemplo, ele citou o investimento de 800 milhões de libras (mais de US$ 1,2 bilhão) no aeroporto de Manchester (Reino Unido), o projeto de um gasoduto que atravessará o Canadá, diversas linhas de trem-bala ao redor do mundo e a realização de grandes obras de infraestrutura na Rússia e em países vizinhos da Ásia Central (que integrarão a Nova Rota da Seda). “A intenção das autoridades chinesas em todas as suas viagens internacionais é abrir mercado para a imensa capacidade das empresas chinesas de gerar infraestrutura ao redor do mundo”, disse o palestrante.

“Isso pode ser ótimo porque os países poderão incorporar empresas chinesas a grandes projetos de infraestrutura a custos bem inferiores do que os praticados atualmente, o que provocará conflitos com empresas locais”, alertou. “Num processo de licitação nacional, é possível criar regras tão complicadas que só uma empresa local possa vencer, mas em uma licitação internacional isso não é possível. Vence quem tem melhor qualidade e preço.”

“O desafio para as nossas empresas e as de outros países é encontrar um caminho porque, em situações normais, as empresas chinesas, com sua experiência e o apoio governamental de que dispõem, deverão conquistar a maioria das licitações internacionais na área de infraestrutura”, enfatizou.

Paiva lembrou também que não faltarão recursos para empréstimos de instituições financeiras internacionais nos quais a China já exerce ou exercerá um papel central como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), o Banco Asiático de Desenvolvimento e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), mais conhecido como Banco dos Brics, criado em 2014 por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, com sede em Xangai.

“O Banco Asiático de Desenvolvimento espera alcançar um volume de empréstimos de US$ 700 bilhões em 2020”, afirmou Caramuru, que foi diretor executivo do Banco Mundial (1993-1996). Para ele, as gestões chinesas para obter mais influência no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial são objetivos tópicos que não devem ser vistos como uma disputa por maior hegemonia política mundial.

As fragilidades da nova potência

Marcos Caramuru de Paiva iniciou sua palestra de 45 minutos com uma descrição bastante detalhada da atual situação econômica, social e política do país: “Não tenho a pretensão de explicar a China porque ela é inexplicável. Darei apenas a minha visão e, em vez de falar dos êxitos, que todos conhecem, prefiro falar de algumas fragilidades presentes no atual quadro chinês.”

Segundo Paiva, a economia chinesa enfrenta um período de desaquecimento por um conjunto de razões. O PIB (Produto Interno Bruto) da China vem crescendo abaixo de 8% ao ano desde 2012, ao passo que até 2011 quase sempre superou a taxa de 9%. Em 2007, chegou a 13%. Em 2014, cresceu 7,4%.

Em primeiro lugar, a demanda internacional está baixa, e a China é um país eminentemente exportador. Em segundo lugar, a taxa de consumo interna não atingiu os níveis esperados pelo governo quando decidiu estimular o gasto por parte dos chineses, estacionado na faixa de 30% do PIB.

Em terceiro lugar, toda a estratégia de crescimento traçada nos últimos anos, baseada no investimento por parte dos governos locais, tem encontrado entraves. “Na crise mundial de 2008, o governo criou um fundo de 4 trilhões de Renminbis (RMBs), equivalente a US$ 640 bilhões, para ajudar as municipalidades a realizar projetos de infraestrutura. Elas, como se faz em todos os lugares do mundo, tiraram das gavetas seus piores projetos. Os burocratas de Pequim sabiam disso, mas, como não havia alternativa, foram adiante. O resultado é que muitos projetos não tiveram o resultado esperado e as municipalidades se endividaram”, explicou.

O último fator é a maior resistência de bancos chineses em conceder empréstimos ao setor privado, um efeito colateral da campanha de combate à corrupção conduzida pelo atual governo. Ela atinge principalmente oficiais do Partido Comunista da China, funcionários públicos e de grandes estatais, mas também empresários. Desde o final de 2012, quanto o atual presidente Xi Jinping chegou ao poder, mais de 400 mil oficiais do partido já sofreram punições e cerca de 200 mil foram processados.

“Este é um entrave psicológico e, de certa forma, inesperado: os administradores dos bancos estão com medo de repassar recursos para o setor privado e se verem envolvidos em escândalos de corrupção. Quem conversa com empresário chinês hoje ouve a reclamação constante de que há falta de recursos para investimento”, disse Paiva. Como consequência, as empresas públicas estão vendo sua participação na economia aumentar enquanto o setor privado se enfraquece, justamente o contrário do desejado pelo regime recentemente.

A contradição chinesa

Segundo Marcos Caramuru, existe hoje uma contradição entre as expectativas da sociedade e dos empresários chineses. Por um lado, o cidadão de classe média urbana teve aumentos salariais na faixa de 7% no último ano, enquanto a inflação foi de apenas 1,5%. Além disso, a Bolsa de Valores de Xangai tem tido bom desempenho. “O resultado é que nós vemos os chineses viajando mais, tendo uma vida mais confortável e podendo desfrutar de prazeres que não estavam ao alcance deles anteriormente”, disse o palestrante.

O empresário chinês, no entanto, se sente inseguro. “Antes, quem tivesse ‘guanxi’, um bom relacionamento com as autoridades, tinha acesso a recursos para investimento. Agora eles não estão sendo liberados como anteriormente. Além disso, o empresário vê o Partido Comunista Chinês dividido, em grande parte em função do combate à corrupção. Tudo isso gera insegurança”, explicou Caramuru. Já a população aprova fortemente a campanha anticorrupção.

De acordo com Paiva, a ausência de regras institucionalmente estabelecidas e a desconfiança em relação à economia faz com que os empresários tenham menos propensão a investir: “É curioso porque há uma desconexão entre o cidadão de classe média urbana, que continua de certa forma enriquecendo, e o meio empresarial chinês, que se sente com a corda no pescoço.”

Segundo Caramuru, existe atualmente na China excesso de oferta para uma demanda bastante baixa, com empresas vendendo apenas 10% ou 20% de sua capacidade de produção. “Muitas são empresas novas, que foram dimensionadas na expectativa de uma demanda muito mais elevada e foram pegas no contrapé pelo desaquecimento da economia internacional. Elas não são fechadas porque tem uma relação com o sistema financeiro público, que atende a um mandamento maior: a ideia de não gerar desemprego”, afirmou.

A pergunta decorrente é até quando essa situação poderá continuar: “É sustentável a sociedade achar que terá salários cada vez maiores, enquanto muitas empresas estão vendendo abaixo de sua capacidade e os empresários não conseguem obter recursos para financiamento?”, perguntou Marcos Caramuru.

Segundo ele, se a economia internacional se recuperar de forma definitiva, tudo não passará de um período de transição. Mas, se isso não acontecer, a China terá de passar por um período de ajuste. “Mas não é algo que deva acontecer num curtíssimo prazo, pois a China ainda é um país pobre, levando em conta o tamanho de sua população, e bem administrado. Tem, portanto, uma grande capacidade de crescimento. Este ajuste não é algo que terá de ser enfrentado amanhã, no mês que vem ou mesmo no ano que vem, mas nos próximos anos”, concluiu.

A queda de braço entre Pequim e os governos locais

“Já falamos da sociedade e das empresas. E como vejo o governo?”, seguiu o palestrante. Segundo Paiva, Xi Jinping, que acumula os três principais cargos do regime chinês _presidente da República Popular da China, secretário-geral do PC e chefe das Forças Armadas_, e o premiê Li Keqiang assumiram em 2012 com uma ousada plataforma de reformas, que inclui a modernização do sistema financeiro, a desejada redução de participação das estatais na economia e as reformas fiscal e do “sistema Hukou”, que liga as famílias à sua localidade de origem e não garante os mesmos benefícios sociais quando elas se mudam para uma nova localidade.

Segundo Paiva, a necessidade de reformas é uma discussão política permanente, mas nem sempre Pequim consegue fazer com que elas caminhem na proporção e no ritmo desejados. “Para que vinguem, as reformas precisam descer ao nível local, o que envolve uma disputa de poder. Os governos locais resistem a transferir ao governo central uma autoridade que é deles”, explicou.

Desde o começo, a dupla Xi Jinping e Li Keqiang teve amplo apoio político e militar, diferentemente de seus antecessores Hu Jintao e Wen Jiabao (2002-2012), que enfrentaram dificuldades iniciais. “A partir de 2012, pela primeira vez a China tem um governo com pessoas que falam línguas estrangeiras e têm formação de economistas ou advogados, sendo que os líderes anteriores eram basicamente engenheiros. Assumiram com a proposta de imprimir força às reformas, mas essa agenda implica mudanças em nível local, onde as autoridades não têm a mesma visão”, explicou Caramuru.

“Na prática o governo central diz ‘Vamos reformar as estatais abrindo o capital dessas empresas’. Aí as autoridades locais dizem ‘Muito bem, vou interpretar isso de acordo com minha realidade’. E não abrem o capital de empresas estratégicas”, exemplificou. Além disso, as estatais chinesas são como holdings de empresas que se espalham por várias províncias e municípios, com a ausência de um comando central em Pequim.

Por fim, as municipalidades também têm uma meta de crescimento econômico a cumprir, que é de cerca de 7% neste ano. “A meta de crescimento garante às autoridades municipais certa margem de manobra. Um dia o governo diz claramente que as municipalidades estão endividadas e exige reformas. No outro, os líderes municipais argumentam que necessitam entregar a meta de desenvolvimento e conseguem barrar as medidas de ajuste”, explicou.

Liberalizar o regime político não faz parte dos planos da liderança chinesa. “Não creio que o caminho democrático faça parte da tradição chinesa. Até mesmo em jantares familiares é o chefe do clã que decide o que todos vão comer”, afirmou Caramuru. Para ele, a ideia de que o crescimento econômico resultará mais cedo ou mais tarde em democracia e liberdade individual não é parte do imaginário chinês.

Duro recado sobre a China dirigido a autoridades e empresários brasileiros

O auditório da Fundação FHC no centro de São Paulo ficou lotado de professores, diplomatas, economistas e empresários.

Ao ser perguntado sobre as perspectivas da exportação de commodities como minério de ferro, soja e carne bovina do Brasil para a China nos próximos anos, Caramuru disse que elas devem seguir fortes, mas fez um alerta: “Não devemos ter uma postura de tranquilidade. A China está estimulando outros países a produzir soja e carne e não há mercado garantido para os produtores e exportadores brasileiros.”

Marcos Caramuru de Paiva encerrou sua palestra com uma forte crítica às autoridades e aos diplomatas e empresários brasileiros. “O Brasil não tem musculatura para lidar com a China. Não tem estratégia de conquista de mercados. Para entrar no mercado chinês, é preciso investir tempo e energia de forma permanente e continuada. A maior parte dos empresários brasileiros vai para a China para comprar e não para vender.”

Otávio Dias é jornalista especializado em assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.