Mudar a Itália para mudar a Europa: reformas para sair da crise
“Cerca de 50% dos italianos ainda não conhecem o conteúdo das reformas. Para que possam ter uma escolha consciente, precisamos informar a população”, falou Maria Elena Boschi, deputada e ministra das Reformas Constitucionais da Itália.
“Quando o Estado funciona de modo mais simples, a economia do país tem melhores condições de crescer.”
Maria Elena Boschi, deputada e ministra das Reformas Constitucionais da Itália
Em 4 de dezembro, os italianos farão um referendo para decidir se aprovam ou rejeitam um amplo pacote de reformas constitucionais proposto pelo governo do primeiro-ministro Matteo Renzi e já aprovado pelo Parlamento do país. As reformas visam resgatar a Itália de uma situação de instabilidade política, estagnação econômica e alto desemprego que já dura quase duas décadas e ameaça se tornar crônica.
“Diante de um mundo que está mudando com grande rapidez, temos duas alternativas. Podemos tentar conservar o que já é conhecido, fechando-nos em nós mesmos como uma pequena pátria. Ou colher a oportunidade da mudança e trilhar a via da abertura”, afirmou a jovem deputada italiana Maria Elena Boschi em palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Uma nova geração no poder
Matteo Renzi, do Partido Democrático, se tornou primeiro-ministro em fevereiro de 2014 quando tinha apenas 39 anos, o mais jovem chefe de governo da história da Itália. Ex-prefeito de Florença, capital da Toscana (centro-norte), representa uma nova geração de políticos que chegou ao poder decidida a fazer uma mudança estrutural no país.
“Ser jovem não basta, queremos mudar o modo de fazer política”.
Com apenas 35 anos, Maria Elena é ministra das Reformas Constitucionais. “Diferentemente da tradição italiana, faço parte de um grupo que acredita que a política tem um prazo. Pretendemos governar por um período e, depois, deixar o lugar para outros. Por isso, é preciso aproveitar ao máximo o tempo de que dispomos”, disse.
Devido à urgência em obter resultados, o governo Renzi apresentou ao Parlamento um “plano de reformas completo já no primeiro mês”, incluindo projetos que alteram a Constituição e outros tipos de leis.
Dois anos e meio e mais de 5 mil votações depois, com um percentual médio de 58% de aprovação entre os parlamentares, parte das reformas já está em vigor. A outra parte, que implica mudanças na Constituição e no modo de organização e funcionamento do Estado,será submetido a referendo em dezembro. “O objetivo é recuperar um atraso de 20 anos, marcados por imobilidade e falta de coragem e determinação”, afirmou.
“Ver que outros países, como a Itália, têm sido capazes de produzir novos líderes políticos como o premiê Renzi e a deputada Maria Elena Boschi, aqui presente, é algo impressionante e muito inspirador para os brasileiros”, disse o cientista político Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC.
As principais mudanças
Segundo Maria Elena, a reforma inclui um amplo espectro de mudanças, algumas delas já postas em prática, enquanto outras, as que alteram a Constituição, dependem do resultado do referendo. Conheça algumas delas:
1. Voto de confiança – A Itália continuará a adotar o parlamentarismo, mas, a partir de 2018, apenas a Câmara dos Deputados terá a prerrogativa de dar um voto de confiança (ou desconfiança) ao governo. Atualmente, tanto a Câmara como o Senado, que são eleitos a partir de bases eleitorais diferentes, podem decidir pela derrubada do premiê e de seu gabinete. “Essa instabilidade tem um preço muito alto. Basta dizer que, desde que a Itália se tornou uma república em 1946 (após a queda do governo fascista de Benito Mussolini, a derrota na Segunda Guerra Mundial e o fim da monarquia), o país já teve 63 governos. Com um novo governo a cada ano e meio, é impossível planejar a longo prazo”, afirmou a deputada.
2. Redução em ⅓ do número de parlamentares – Atualmente, o Parlamento italiano tem 945 cadeiras, que serão reduzidas em um terço. “Vocês podem imaginar que não foi fácil convencer os parlamentares, pois, com menos cadeiras disponíveis, muitos ficarão de fora nas próximas eleições”, disse a ministra.
3. Novo papel do Senado – A câmara alta representará as 20 regiões da Itália e as mais de 8 mil comunas (equivalente a municípios). As atuais províncias (110) deixarão de existir. A câmara alta manterá algumas funções de controle, mas deixará de dividir com a Câmara o poder de decisão sobre projetos de interesse nacional. “Atualmente, o pingue-pongue entre a Câmara dos Deputados e o Senado pode continuar por anos e, com esta falta de prazos e limites, fica difícil dar satisfação à população”, explicou.
4. Decisões mais rápidas – A Câmara dos Deputados terá de decidir sobre novos projetos de lei no prazo máximo de 90 dias. “Se tiver que rejeitar algo, é melhor decidir logo. Do jeito que funciona atualmente, perdemos muitas oportunidades”, explicou.
5. Projetos de iniciativa popular – O Parlamento será obrigado a analisar e votar projetos de lei apresentados pelos cidadãos, desde que cumpram as condições pré-estabelecidas.
6. Revisão do grau de autonomia das regiões – Atualmente, cinco das 20 regiões possuem ampla autonomia financeira, legislativa e administrativa, que em alguns casos entra em conflito com o governo central. Com frequência, a decisão vai parar na Corte Constitucional, que leva meses ou anos para decidir. Quando necessário, esta autonomia será revista para eliminar competências sobrepostas. “Um dos critérios para definir o grau de autonomia de cada região será o equilíbrio de suas finanças”, disse.
7. Prerrogativas do governo central – O Estado italiano, sediado em Roma, terá autoridade para definir questões como política energética, obras de infraestrutura e que envolvam compromissos firmados com a UE, entre outras. “Algumas escolhas precisam valer para todos os italianos, como no caso dos acordos firmados com a União Europeia, que devem ser respeitados e seguidos por todas as regiões do país”, afirmou.
8. Menos burocracia – Um exemplo prático da confusão e da burocracia vigente atualmente no país é a dificuldade para transportar produtos de uma região a outra. “No sistema atual, se uma empresa precisar levar um produto de Milão (ao norte) a Palermo (na Sicília, no sul), precisa pedir autorização para cada região no caminho. Não temos procedimentos administrativos únicos. Uma fábrica em Florença tem regras diferentes de uma em Milão. Para trabalhar, um artesão tem que pedir 15 autorizações para nove órgãos públicos diferentes. Isso tem que acabar para que a Itália funcione melhor”, disse.
Além das reformas acima, que têm a ver com a segunda parte da Constituição italiana (funcionamento do Estado), o atual governo também propôs outras importantes mudanças:
9. Educação – O objetivo foi criar uma maior sinergia entre o que se aprende na escola e as exigências do mercado de trabalho.
10. Estatuto do trabalhador – Adequação das normas de trabalho à realidade do século 21 para incentivar novas contratações e reduzir o desemprego, especialmente entre os mais jovens. O desemprego atualmente no país é de 11,4%, mas chega a 39% entre os jovens.
11. Medidas fiscais – Intenção foi reduzir o peso dos impostos sobre as empresas e incentivar o investimento privado.
12. Redução dos prazos da Justiça civil – Antes da reforma, o Judiciário italiano possuía 5 milhões de causas pendentes, que, com as recentes alterações, já caíram para 3 milhões.
13. Legislação eleitoral e financiamento dos partidos – “A Operação Mãos Limpas (uma ampla investigação de corrupção realizada nos anos 90 e que serviu de inspiração para a Operação Lava Jato, no Brasil) levou a uma profunda reflexão sobre a política italiana e o financiamento dos partidos. Desde então, fala-se em mudar essas regras, mas só agora conseguimos fazer isso”, disse a deputada.
14. União homossexual – Embora não tenha impacto direto sobre a economia, a aprovação da lei neste ano mostrou a força política da atual coalizão. “Muitos diziam que seria impossível aprovar a união entre pessoas do mesmo sexo em um país com forte tradição católica como a Itália, mas nós conseguimos”, disse a palestrante.
Segundo a ministra, os primeiros efeitos da reforma, embora ainda tímidos, já se fazem sentir: “Quando assumimos há dois anos e meio, o PIB estava caindo quase 2% e a Itália perdia mais de 900 mil empregos. Agora, o PIB deve crescer 1% e foram criados 580 mil novos postos de trabalho. A economia não está andando tão rápido como gostaríamos, mas já começou a se mexer.”
Por que um referendo?
Mesmo diante dos resultados adversos, para os respectivos governos, de dois referendos realizados recentemente no Reino Unido e na Colômbia, Maria Elena disse não temer o resultado da consulta que será realizada em dezembro. ‘Não podemos ter medo da política”, disse.
“Há dois anos e meio, quando apresentamos nosso plano, nós tínhamos os ⅔ de votos no Parlamento para aprovar a reforma sem a necessidade de um referendo. Mais tarde, alguns grupos que nos apoiavam acabaram deixando a coalizão e, então, a oposição poderia ter força para exigir um referendo. Para evitar problemas, nos antecipamos e desde o início assumimos o compromisso político de consultar a população”, explicou a ministra.
“Como a reforma muda toda a arquitetura institucional do país, é justo que os cidadãos tenham o direito de decidir”.
Em julho deste ano, os britânicos decidiram pela saída do Reino Unido da União Europeia, levando à renúncia do premiê David Cameron. Em outubro, por estreita margem os colombianos disseram não a um de acordo de paz com as Farc (grupo guerrilheiro mais antigo da Colômbia), uma iniciativa do presidente Juan Manuel Santos que lhe rendeu o prêmio Nobel da Paz neste ano.
O referendo de 4 de dezembro será um momento decisivo. Se a maioria dos italianos que forem às urnas optar pelo sim, as mudanças constitucionais entrarão em vigor paulatinamente até 2018, quando devem ocorrer novas eleições parlamentares. Se optar pelo não, ela será abandonada, o que significará o bloqueio do processo de mudança da Itália e o possível fim do atual governo.
“É uma grande responsabilidade. A escolha será entre mudar ou deixar tudo como está. O que está em jogo é o futuro do país ao menos pelos próximos 30 anos. Queremos dar uma nova oportunidade para a Itália voltar a ser a Itália”, disse Maria Elena.
Para ela, o maior desafio das próximas semanas será informar a população sobre as mudanças propostas. “Cerca de 50% dos italianos ainda não conhecem o conteúdo das reformas. Para que possam ter uma escolha consciente, nosso trabalho agora é o de informar a população”, disse a palestrante.
Relançar a Europa
Além de dar maior estabilidade ao sistema político italiano e mais dinamismo à economia do país, a reforma constitucional pretende ser um exemplo para a União Europeia, que desde a crise financeira global de 2008/2009 vive um período de grande incerteza, agravado nos últimos dois anos por atentados terroristas em diversos países europeus e pela onda de imigração do Oriente Médio e norte da África.
“Este ano de 2016 está sendo crítico. Além do terrorismo islâmico e das crises migratória e econômica, há o risco de outros países decidirem seguir o Reino Unido, o que colocaria em risco o projeto europeu. Com a reforma que estamos propondo, a Itália dá sua contribuição para o relançamento da Europa”, disse. Segundo Maria Elena, frente aos desafios acima, “a solução é mais Europa, não menos”.
“É hora de buscarmos soluções juntos, não de nos isolarmos. Quando erguemos muros físicos ou ideológicos, nunca saberemos as oportunidades que estamos deixando de fora”, afirmou a jovem deputada, que criticou os “empresários do medo que exploram o sentido de insegurança (criado pelo terror) e fomentam o ódio em relação aos estrangeiros.”
“É preciso dizer a verdade: diversos ataques terroristas ocorridos recentemente foram praticados por jovens nascidos na Europa, que freqüentaram nossas escolas e vivem em nossas periferias. Se fecharmos nossas fronteiras, fecharemos os terroristas do lado de dentro”, disse.
Para Maria Elena, a solução para o terrorismo é investir em um serviço de inteligência europeu e na integração das forças policiais dos países-membros. “Também sugerimos que a Europa faça o que fizemos na Itália na última lei orçamentária: para cada euro gasto em segurança, investimos um euro em cultura e educação. Afinal, se esses jovens, muitos deles filhos de imigrantes, são europeus, eles devem se sentir parte de nossa cultura”, afirmou.
A deputada também defendeu uma resposta unitária e compartilhada da União Europeia à questão da imigração. A costa italiana é destino de barcos clandestinos que partem do norte da África lotados de imigrantes ilegais e, com frequência, naufragam ou ficam à deriva em pleno Mar Mediterrâneo. “A Itália tomou a decisão corajosa de salvar cada vida humana em risco nesses barcos. Faremos isso contando ou não com recursos europeus”, disse.
Finalmente, Maria Elena defendeu que a União Europeia deve enfrentar a crise econômica não apenas exigindo austeridade dos países-membros, mas se atualizando e adotando políticas sociais e de combate ao desemprego modernas e eficazes.
“As reformas que fizemos na Itália incluem cláusulas que preveem um certo grau de flexibilidade no orçamento para investimentos. Também é preciso levar em conta problemas específicos enfrentados pela Itália como os gastos com os imigrantes ilegais que cruzam o Mediterrâneo e os terremotos que nos atingem com freqüência. A Itália não é a Alemanha”, concluiu a ministra.
Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.