Mercados Ilícitos e Desenvolvimento no Brasil
“No Rio de Janeiro, as milícias, que vendem segurança e são formadas por policiais, ex-policiais e políticos, são ainda mais violentas do que os traficantes”, disse a cientista social Carolina Grillo.
A Polícia Militar é responsável por cerca de um terço das mortes violentas no Rio de Janeiro, que, após o fracasso das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), vive uma fase de intensificação dos conflitos armados entre policiais, traficantes e milícias. Em São Paulo, a taxa de letalidade policial é mais baixa, mas o que chama atenção é o encarceramento em massa. “São modos distintos de lidar com os mercados ilegais, ambos com consequências trágicas”, disse a cientista social Carolina Christoph Grillo no debate de lançamento da 2ª edição do Journal of Illicit Economies and Development, inteiramente dedicada ao Brasil, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.
Durante o evento, foram apresentados resumos de quatro artigos publicados no Journal, uma iniciativa da London School of Economics (LSE) e do CEBRAP (saiba mais abaixo). Professora assistente e pesquisadora de pós-doutorado em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense, Carolina apresentou o trabalho “Movimento e Morte: Os Mercados de Drogas Ilícitas nas Cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro”, escrito com Daniel Veloso Hirata.
Baseados em dois anos de pesquisa de campo, os autores refletem sobre a relação entre mercado ilegal de drogas e violência, a partir da comparação do mercado varejista de drogas em favelas e bairros de periferias das duas maiores capitais brasileiras. No Rio, traficantes exercem controle intensivo sobre territórios urbanos, com a figura do “dono do morro”. Em SP, o “patrão das biqueiras” não mandam em um bairro inteiro, os criminosos não afrontam diretamente a polícia e não há território onde esta não possa entrar.
Em comum às duas cidades, há o fenômeno de organização da criminalidade a partir das prisões. “Inicialmente, os presos se organizaram para exigir melhorias dentro dos presídios, depois passaram a regular mercados fora do espaço prisional”, disse.
Enquanto em São Paulo, a hierarquia do tráfico não corresponde exatamente à do PCC, que controla as prisões e tem se disseminado pelo país, no Rio o tráfico de drogas é central para o modo de organização das facções criminosas, que compõem alianças políticas e, quando estas se desfazem, resultam em guerras. “Em SP a concorrência é extraterritorial, no Rio ela é intraterritorial”, afirmou.
‘Entra e sai da cadeia’ é parte da vida dos jovens da periferia paulistana
“É fato que a letalidade policial em SP é menor, mas não é tão baixa assim. Na capital, a PM é responsável por cerca de um quarto dos homicídios e, no estado, por cerca de um quinto”, disse o antropólogo Maurício Fiore, pesquisador do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). “Os jovens pobres e negros, moradores da periferia paulistana, não têm morrido tanto em combates entre a polícia e o tráfico, mas em situações que envolvem roubo e mortes não esclarecidas”, disse.
“É muito improvável ser um jovem de periferia paulistana nos dias de hoje e não ter o pai, um tio, um irmão ou um amigo preso, quando não estar pessoalmente inserido nessa dinâmica de entra e sai da cadeia, fator primordial nas relações entre a juventude periférica e a criminalidade”, afirmou Fiore, para quem o dossiê recém-publicado contém elementos para levar a discussão para o campo político, além do acadêmico.
“Em SP, o extermínio praticado pela polícia está mais relacionado à proteção patrimonial, ou seja, ladrão morre mais do que traficante”, concordou Carolina Grillo. Já no Rio, destacou a pesquisadora, a taxa de mortalidade é ainda mais elevada nas áreas controladas pelas milícias do que pelo narcotráfico. “As milícias, que vendem segurança e são formadas por policiais, ex-policiais e políticos, são ainda mais violentas do que os traficantes”, disse.
Apreensões pequenas congestionam sistema de justiça
“Mal Orientada e de Baixo Impacto: Por que a Política de Drogas de São Paulo é ineficiente e pouco efetiva” é o título do artigo assinado pelos pesquisadores Leonardo de Carvalho Silva e Bruno Langeani, baseado em levantamento das apreensões de drogas (maconha, cocaína e crack) realizadas no mais populoso estado brasileiro nos últimos anos.
Entre 2015 e 2017, as 100 maiores ocorrências resultaram na apreensão de 178 toneladas de drogas, enquanto mais de 80 mil ocorrências apreenderam apenas 166 toneladas. “Por que direcionar recursos para prender microtraficantes ou usuários em vez de focar esforços em investigações e ações de inteligência para ter mais impacto na estrutura de distribuição e no funcionamento do crime organizado?”, perguntou Leonardo Silva, coordenador de projetos do instituto Sou da Paz.
Luiz Guilherme Paiva, co-editor da edição brasileira do Journal, apresentou os principais pontos de seu texto “Drogas e sistema de justiça criminal: decidindo com base em miragens”, uma revisão de diversas pesquisas sobre a aplicação da legislação de drogas no Brasil desde a entrada em vigor da Lei de Drogas de 2006. “A quantidade monumental de apreensões minúsculas congestiona o sistema de justiça e reforça a burocratização do Poder Judiciário, que na maioria das vezes reproduz sentenças padronizadas quando não fictícias”, disse.
“Precisamos discutir a eficiência real da política judicial, pois o preço da droga no varejo continua estável ou caindo enquanto as polícias, o aparato judicial e o sistema prisional estão voltados para prender e condenar o pequeno traficante. O fato é que a ação do sistema de justiça simplesmente não altera a realidade dos mercados ilícitos”, continuou.
Construir pontes entre autoridades e estudiosos
“Não é agradável ouvir que seu trabalho tem sido irrelevante, mas as autoridades policiais e judiciais, de um lado, e estudiosos da economia do tráfico, de outro, deveriam construir pontes e aprofundar o diálogo para que a política de drogas tenha, de fato, maior impacto sobre a operação do crime organizado no país”, propôs Paiva.
Uma das consequências dessa falta de diálogo é a explosão do encarceramento, que aumentou mais de 80% no país de 2006 a 2016, sendo que a maioria dos presos são primários, de baixa escolaridade e oriundos das periferias ou áreas mais pobres; 40% deles são provisórios e ainda não foram condenados, mas já estão à disposição do narcotráfico dentro das prisões.
Fábio Bechara, promotor de Justiça em São Paulo, concordou com o diagnóstico da ausência de diálogo. “Esse esforço de interlocução é muito desafiador. Aqueles que tomam as decisões na esfera pública têm receio dos pesquisadores. Como colocar em prática um diálogo construtivo no dia a dia de nossas atividades, tão diferentes entre si?”, perguntou.
Bechara também alertou para problemas de governança e de arcabouço institucional dos sistema de justiça, “com conflitos e sobreposições intermitentes e excessivamente lento e burocratizado”. “Se nossa maneira de agir e atuar não está fazendo diferença para o cidadão comum, indefeso diante do crime organizado, há algo de muito errado”, concluiu.
O dilema moral das agentes comunitárias
A socióloga Marcella Araújo, autora do artigo “Interações entre os trabalhos sociais e os mercados ilícitos”, pôs uma lupa na complexa interação entre agentes comunitárias responsáveis pela implementação de políticas de habitação social em comunidades e loteamentos no Rio e líderes do tráfico e das milícias.
“Ao negociar com traficantes e milicianos para afastar ameaças contra trabalhadores e elas mesmas, as agentes comunitárias têm consciência de que frequentemente ajudam a consolidar ou mesmo a expandir o domínio desses grupos nas comunidades onde atuam. Trata-se de um grande dilema ético e moral e um exercício constante de pragmatismo”, disse a professora-adjunta da UFRJ.
“Enquanto representantes do Estado, essas agentes às vezes são forçadas a ‘omitir’ dos moradores detalhes de acordos com a milícia ou o tráfico, mas enquanto moradoras daquela mesma comunidade ou de uma comunidade vizinha sofrem com essas pequenas ‘mentiras’ que acabam por endossar para levar adiante projetos de reurbanização”, contou.
A pesquisadora alertou para a existência de um “movimento migratório” de moradores de favelas sob controle do tráfico para áreas de milícia. “Mesmo sabendo que os milicianos são violentos, andam armados e praticam ‘cossas’ cotidianas mesmo contra moradores não envolvidos com o tráfico, muitos pessoas buscam ‘tranquilidade’ em regiões de milícia para tentar fugir da imprevisibilidade existente nos territórios sob domínio dos traficantes”, relatou.
Drogas não são ‘questão isolada’
“É importante refletir sobre a natureza interconectada dos diversos mercados ilícitos e como eles se articulam entre si. As drogas não são uma questão isolada”, disse o britânico John Collins, diretor-executivo da International Drug Policy Unit da London School of Economics (LSE), uma das mais prestigiosas universidades da Inglaterra.
Lançado em 2019 pela LSE e a Global Initiative Against Transnational Crime, o Journal of Illicit Economies and Development pode ser baixado gratuitamente. A nova publicação não pretende apenas falar com a comunidade acadêmica, mas influenciar as discussões e a definição de políticas públicas. “Qualquer pessoa, não apenas acadêmicos, mas também ‘policy makers’ e outros envolvidos no assunto podem submeter artigos. Estamos abertos a todas as áreas do conhecimento, das ciências sociais e humanidades em geral às ciências exatas. Nosso único limite é o compromisso com o desenvolvimento sustentável”, disse Collins, que também é editor do Journal, .
A edição bilíngue (inglês e português) explora diferentes aspectos do funcionamento dos mercados ilícitos no país, suas conexões com o crime organizado e as respostas de política existentes e que, ao ver dos autores, deveriam existir. Além do prefácio, traz dez artigos baseados em pesquisas acadêmicas desenvolvidas no país, uma análise das perspectivas das políticas de segurança pública e combate à criminalidade diante da vitória da direita no Brasil e uma revisão de diversas pesquisas sobre a aplicação da legislação brasileira a casos de porte, consumo e venda de entorpecentes desde a entrada em vigor da Lei de Drogas de 2006.
Traz também um texto sobre a experiência de construção da ONG Movimentos, coletivo de jovens ativistas de favelas e periferias do Brasil, entre elas a rapper Sabrina Martina, do grupo Poetas Favelados e idealizadora do Slam Laje, que compareceu ao evento. “Tudo o que vocês falaram nesta manhã não mudará nada se nós, os jovens que somos as principais vítimas da guerra às drogas, não formos incluídos. Ou democratizamos essas discussões ou vamos continuar andando em círculos e nada vai mudar”, disse.
A próxima edição, que circulará em novembro, terá como tema a regulamentação de mercados por parte do Estado. “A partir de experiências em curso nos Estados Unidos, no Canadá e no Uruguai, por exemplo, buscaremos entender qual a linha divisória entre o lícito e o ilícito e os desafios de novas experiências de regulação”, explicou o editor. Todo artigo submetido é analisado por meio do processo de peer review.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.